quinta-feira, 8 de fevereiro de 2018

A Mudança,o Estado e a Sociedade Civil

O mausoléu de Lênin em Moscou
Nos dias atuais, uma discussão redutora e linear vem mobilizando a imprensa, a sociedade civil e a opinião pública; a questão do Estado, da democracia e do bem estar público. Alguns neoliberais acusam a esquerda de estatizante, e essa muitas vezes assume o papel da defesa do Estado, como o único lugar de resguardo do interesse público. Mas tal posição é uma novidade histórica, pois no começo do século XX, e até meados do século XIX, a esquerda marxista não via o Estado dessa forma. O livro Reconstruindo Lênin, uma biografia intelectual de Tamás Krausz é uma oportunidade de conhecer uma das figuras mais notáveis da passagem dos séculos XIX ao XX, o marxista que comandou a Revolução Comunista na Russia de 1917, Vladimir Ilitch Ulianov, e uma forma de ilustrar esse posicionamento. Um personagem que foi fruto de uma enorme mistificação pelo regime oficial soviético, tendo tido seu cadáver embalsamado, e seu corpo é até hoje exposto junto ao Kremlim, em Moscou, permanecendo como uma das figuras mais populares da Russia atual, só perdendo para Pedro, o Grande. A ideia de uma reconstrução me pareceu desde o inicio vinculada a sua humanização, como uma pessoa, apesar de toda a mística existente em seu entorno. 

O que inicialmente nos surpreende é a intensa produção livresca e intelectual do personagem, seguindo os passos de Marx e Engels, Lênin se debruçou sobre seu contexto histórico e produziu uma das mais extensas bibliografias da história. Um dos trabalhos mais conhecidos, e com grande destaque nessa obra foi o Estado e a Revolução, a doutrina do marxismo e as tarefas do proletariado na revolução, escrito antes da tomada do poder pelos bolcheviques em agosto e setembro de 1917. Um trabalho que ainda cobra da esquerda e dos neo liberais uma reflexão mais apurada, do que é o Estado, algo subordinado a sociedade, ou que a subordina? Publicado em 1918 após a revolução, mas escrito antes dela como já assinalado, no qual Lênin descreve o Estado como um órgão de dominação dissimulada de classe, algo que segundo os hegelianos representaria o interesse de todos, e que segundo Marx deveria ser suprimido numa sociedade sem classes. E, o fato de que a verdadeira tarefa da revolução socialista era a destruição do Estado, como uma instituição criada pela burguesia, não para a conciliação das classes, mas como um poder supostamente neutro colocado aparentemente por cima da sociedade, que atendia sobretudo aos seus interesses. O contexto no qual o texto é escrito são as reflexões de Karl Kautsky, e Bukhárin de caráter reformista e anti revolucionário, de revalorização do papel do Estado, e, por outro lado, a presença dos sovietes, como instituições de representação direta, ou de supressão da representação profissional na democracia burguesa. Há uma clara tensão entre utopia e pragmatismo, um documento que apresenta uma luta contínua entre a realpolitik, e uma construção proativa de um novo aparato, ainda inexistente, materializado de baixo para cima.

Nada em Lênin é muito confortável, e segundo KRAUSZ 2017 ele nunca acreditou que o socialismo do autogoverno democrático dos trabalhadores, ou a democracia dos sovietes poderia ser instalada com facilidade na Russia autocrática. Na verdade KRAUSZ 2017, destaca um artigo escrito por Lênin, antes da Revolução de Outubro de 1917;

"Em "Conservarão os bolcheviques os poderes de Estado", Lênin afirma: "Nós não somos utopistas. Sabemos que um operário não qualificado e uma cozinheira não são capazes, neste momento, de começar a dirigir o Estado. Nisso estamos de acordo [...] com os democráticos-constitucionalistas [...]. Mas diferenciamo-nos desses cidadãos porque exigimos a ruptura imediata com o preconceito de que administrar o Estado [...] é algo que só ricos ou funcionários provenientes de famílias ricas podem fazer." KRAUSZ 2017 página253

O mesmo autor também assinala uma diferenciação fundamental entre a sociologia burguesa de por exemplo, Max Weber, e a marxista, que enfatiza a impossibilidade da neutralidade científica, enquanto a primeira persiste acreditando nela. É interessante, que KRAUSZ 2017 também destaca duas interpretações antagônicas de O Estado e a Revolução, de um lado àqueles que identificaram a obra como a semente do autoritarismo do Estado soviético, como A. J. Polan e Robert Service*, e outros como, Neil Harding e Kevin Anderson** que veem na obra princípios libertários, negados pelo Estado Stalinista que se seguiu.

"Entre todas as obras de Lênin, o Estado e a Revolução foi a que sobreviveu de modo mais interessante. O flanco marxista e, na verdade, quase todos os movimentos anticapitalistas e críticos do Estado a tomaram para si. O texto pode se aplicar em oposição tanto aos conceitos capitalistas quanto aos stalinistas do Estado, na medida em que a meta marxista, a da extinção do Estado era, e é, objetivo declarado da Revolução Russa e da revolução socialista universal." KRAUSZ 2017 página250

Interessante destacar, que a crítica weberiana sempre apontou a unificação realizada pelo Estado soviético, em um órgão de trabalho do Executivo e do Legislativo, dominado por um partido único, como uma característica do Estado autoritário. O problema, segundo KRAUSZ 2017, que choca a concepção liberal é que O Estado e a Revolução sempre afirmou numa linguagem clara seu compromisso de classe, com uma fase intermediária da Ditadura do Proletariado, fato que causa calafrios a um oficialismo cientificista. Diante dessa questão há uma citação primorosa de KRAUSZ 2017, num outro texto denominado, As três fontes e as três partes constitutivas do marxismo, que delimita a forma de pensar de Lênin com clareza;

"Os homens sempre foram em política vítimas ingênuas do engano dos outros e do próprio e continuarão a sê-lo enquanto não aprenderem a descobrir por trás de todas as frases, declarações e promessas morais, religiosas, políticas e sociais, os interesses de uma ou de outra classe." Lênin citado por KRAUSZ 2017 página 251

Volta-se assim a questão da neutralidade axiológica, que tanto embasa a sociologia weberiana, que recalca os interesses de classe no preparo que as classes privilegiadas desfrutam, e, efetivamente possuem, pois estão além da sobrevivência. Na verdade, o problema será mais precisamente colocado por Luckács e Gramsci alguns anos depois, que fizeram uma distinção ao meu ver fundamental entre, Sociedade Civil e Estado, para tornar possível e operacionalizar a radicalização democrática. Inclusive, é importante destacar, que alguns gramscianos brasileiros, no contexto do fim da Ditadura Civil-Militar no país escreveram textos fundamentais, exatamente colocando a questão do aprofundamento da democracia, como um valor inestimável e revolucionário***. O problema persiste em nosso mundo contemporâneo, em nossa incapacidade de superar a diferenciação entre Estado e Sociedade Civil, ou domínio público do privado, ou ainda o político do econômico.

Na verdade, hoje nos parece que Lênin subestimou a capacidade do capitalismo de se renovar, com a própria Primeira Guerra Mundial, da qual o líder da revolução russa também tirou todo o proveito, a partir de sua caracterização como uma crise sem precedentes do imperialismo. Mas, ao seu término não há como negar, que o Estado nas democracias ocidentais conseguiram contornar a eminência da revolução na Europa, que acabou se restringindo a Russia. Sua própria teoria, do desenvolvimento desigual do capitalismo, seu posicionamento frente aos internacionalistas como Trótsky e Bukhárin, a questão das nacionalidades e a ideia da federação russa parecem hoje como posicionamentos estratégicos e pragmáticos, mais do que convicções ideológicas, adotadas pela premência do fazer. A questão fica clara ao se ler trechos da carta de Bukhárin para Lênin no outono de 1915,  também pinçados por KRAUSZ 2017, onde se percebe a convicção do primeiro, de que os dias do Estado-Nação haviam se extinguido;

"Por que fomos sempre contra a Revolução Russa? Porque as precondições objetivas - país de economia agrária, imensa população camponesa, difusão da manufatura caseira (remelo) - não a permitem...Porém, em minha opinião (que ainda não posso declarar positivamente, mas me sinto cada vez mais inclinado a tal "anarquismo"), esse estado de coisas vai se estender enquanto entendermos a Rússia como Estado e economia isolados. Durante a Revolução de 1905, não havia maior esperança de uma revolução europeia. A situação agora é completamente diferente. Desta vez - senão hoje, amanhã - uma chama pan-europeia, senão mundial, está para arder. Mas a revolução social, a revolução do Ocidente, derrubará todas as fronteiras entre Estados-nação...Se esse for o caso, por que teriamos de preservar as particularidades locais e o poder da burguesia, que será um perigo maior amanhã (pois lider = imperialismo) para o Ocidente do que um tsarismo deteriorado?" citando carta de Bukhárin para Lênin KRAUSZ 2017 página255 

A questão do Estado, que desde Marx e Engels mobiliza o pensamento de esquerda, foi por esses colocada de maneira precisa, vinculada ao monopólio da violência, a constituição da polícia, da repressão, do sistema carcerário, prisional e jurídico, que também não são isentos dos seus interesses de classe. Esse imenso aparato de repressão e controle, que, sejam as democracias burguesas e liberais, ou os regimes do socialismo (real) soviético monopolizaram, e nunca chegaram sequer a ser fragilizados por organizações da democracia direta, como os sovietes, ou os conselhos de fábrica. Aliás, KRAUSZ 2017 cita uma carta de Engels de 28 de março de 1875, na qual é sugerida a substituição da palavra Estado por comunidade no contexto socialista. Lênin irá adotar o termo comuna, e usará a figura da "associação livre de produtores", sublinhando as diferenças desses para os proprietários, como uma nova linguagem de retorno ao democratismo primitivo. No entanto, não há como negar, que na operação da revolução real de outubro de 1917, e não mais nas páginas de O Estado e a Revolução, Lênin acabará fortalecendo muito mais o Estado, do que os organismos da democracia direta. Inclusive, no trágico episódio de 1921, dos Marinheiros do Kronstadt, quando uma série de lideranças acabaram se retratando contra a repressão do nascente Estado Soviético. Trótski se referia aos marinheiros da base de Kronstadt como orgulho e a glória da revolução, e em relação à repressão classificou-a como, "uma necessidade trágica". O próprio Lenin reconheceu que os marinheiros de Kronstadt não eram nem brancos nem vermelhos. Bukhárin classificou o movimento dos marinheiros, como antes de tudo contra o não-comunismo de guerra. A questão permanece, reforçando a ideia da absoluta necessidade da presença do contraditório e da oposição, não como posicionamento desinteressado, científico ou imparcial, mas pela representação da diversidade.

Enfim, muito além de qualquer mistificação, a figura de Lênin merece uma reflexão mais aprofundada, apenas na questão do debate sobre o Estado burguês ou revolucionário, sua contribuição é muito importante. Ao final, a riqueza da reflexão de Lênin foi também tributária de uma interlocução rica e variada, que não necessariamente coincidia com suas posições, vale aqui a lembrança de um posicionamento do anarquista Mikhail Bakunim, que na verdade foi contemporâneo de Marx e Engels;

"Se você pegar o mais ardente dos revolucionários, e der a ele um poder absoluto, num ano ele será pior do que o próprio tsar." BAKUNIM, Mikhail

NOTAS:

* Os livros, que apontam a premissa autoritária da obra de Lênin são; POLAN, A. J. - Lenin and the End of Politics - Methuen, Londres 1984 e SERVICE, Robert - Lenin A political Life v3 The Iron Ring - Mcmillan, Londres 1994, ambos citados por KRAUSZ 2017 página249.

**Os livros que apontam a disposição libertária da obra de Lênin são; HARDING, Neil - Lenin´s Political Thought v.2 - Martin Press Nova York 1981 e ANDERSON, Kevin - Lenin, Hegel and the End of Politics - Methuen, Londres 1984

*** Ver aqui no blog, o texto A grave crise brasileira e dois textos esclarecedores, que são COUTINHO, Carlos Nelson - A democracia como valor universal - acessível no site https://www.marxists.org/portugues/coutinho/1979/mes/democracia.htm e VIANNA, Luiz Werneck -Volver Não sairemos deste mato sem cachorro sem a política e os políticos que nos sobraram - O Estado de S.Paulo 04 Junho 2017

BIBLIOGRAFIA:

AARÃO REIS, Daniel - A revolução que mudou o mundo: Rússia 1917 - Companhia das Letras São Paulo 2017

KRAUSZ, Tamás - Reconstruindo Lênin, uma biografia intelectual - Editora Boitempo 2017

LÊNIN, Vladimir Ilitch Ulianov - O estado e a Revolução, a doutrina do marxismo e as tarefas do proletariado na revolução - Editora Boitempo São Paulo 2017

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