O mausoléu de Lênin em Moscou |
O que inicialmente nos surpreende é a intensa produção livresca e intelectual do personagem, seguindo os passos de Marx e Engels, Lênin se debruçou sobre seu contexto histórico e produziu uma das mais extensas bibliografias da história. Um dos trabalhos mais conhecidos, e com grande destaque nessa obra foi o Estado e a Revolução, a doutrina do marxismo e as tarefas do proletariado na revolução, escrito antes da tomada do poder pelos bolcheviques em agosto e setembro de 1917. Um trabalho que ainda cobra da esquerda e dos neo liberais uma reflexão mais apurada, do que é o Estado, algo subordinado a sociedade, ou que a subordina? Publicado em 1918 após a revolução, mas escrito antes dela como já assinalado, no qual Lênin descreve o Estado como um órgão de dominação dissimulada de classe, algo que segundo os hegelianos representaria o interesse de todos, e que segundo Marx deveria ser suprimido numa sociedade sem classes. E, o fato de que a verdadeira tarefa da revolução socialista era a destruição do Estado, como uma instituição criada pela burguesia, não para a conciliação das classes, mas como um poder supostamente neutro colocado aparentemente por cima da sociedade, que atendia sobretudo aos seus interesses. O contexto no qual o texto é escrito são as reflexões de Karl Kautsky, e Bukhárin de caráter reformista e anti revolucionário, de revalorização do papel do Estado, e, por outro lado, a presença dos sovietes, como instituições de representação direta, ou de supressão da representação profissional na democracia burguesa. Há uma clara tensão entre utopia e pragmatismo, um documento que apresenta uma luta contínua entre a realpolitik, e uma construção proativa de um novo aparato, ainda inexistente, materializado de baixo para cima.
Nada em Lênin é muito confortável, e segundo KRAUSZ 2017 ele nunca acreditou que o socialismo do autogoverno democrático dos trabalhadores, ou a democracia dos sovietes poderia ser instalada com facilidade na Russia autocrática. Na verdade KRAUSZ 2017, destaca um artigo escrito por Lênin, antes da Revolução de Outubro de 1917;
"Em "Conservarão os bolcheviques os poderes de Estado", Lênin afirma: "Nós não somos utopistas. Sabemos que um operário não qualificado e uma cozinheira não são capazes, neste momento, de começar a dirigir o Estado. Nisso estamos de acordo [...] com os democráticos-constitucionalistas [...]. Mas diferenciamo-nos desses cidadãos porque exigimos a ruptura imediata com o preconceito de que administrar o Estado [...] é algo que só ricos ou funcionários provenientes de famílias ricas podem fazer." KRAUSZ 2017 página253
O mesmo autor também assinala uma diferenciação fundamental entre a sociologia burguesa de por exemplo, Max Weber, e a marxista, que enfatiza a impossibilidade da neutralidade científica, enquanto a primeira persiste acreditando nela. É interessante, que KRAUSZ 2017 também destaca duas interpretações antagônicas de O Estado e a Revolução, de um lado àqueles que identificaram a obra como a semente do autoritarismo do Estado soviético, como A. J. Polan e Robert Service*, e outros como, Neil Harding e Kevin Anderson** que veem na obra princípios libertários, negados pelo Estado Stalinista que se seguiu.
"Entre todas as obras de Lênin, o Estado e a Revolução foi a que sobreviveu de modo mais interessante. O flanco marxista e, na verdade, quase todos os movimentos anticapitalistas e críticos do Estado a tomaram para si. O texto pode se aplicar em oposição tanto aos conceitos capitalistas quanto aos stalinistas do Estado, na medida em que a meta marxista, a da extinção do Estado era, e é, objetivo declarado da Revolução Russa e da revolução socialista universal." KRAUSZ 2017 página250
Interessante destacar, que a crítica weberiana sempre apontou a unificação realizada pelo Estado soviético, em um órgão de trabalho do Executivo e do Legislativo, dominado por um partido único, como uma característica do Estado autoritário. O problema, segundo KRAUSZ 2017, que choca a concepção liberal é que O Estado e a Revolução sempre afirmou numa linguagem clara seu compromisso de classe, com uma fase intermediária da Ditadura do Proletariado, fato que causa calafrios a um oficialismo cientificista. Diante dessa questão há uma citação primorosa de KRAUSZ 2017, num outro texto denominado, As três fontes e as três partes constitutivas do marxismo, que delimita a forma de pensar de Lênin com clareza;
"Os homens sempre foram em política vítimas ingênuas do engano dos outros e do próprio e continuarão a sê-lo enquanto não aprenderem a descobrir por trás de todas as frases, declarações e promessas morais, religiosas, políticas e sociais, os interesses de uma ou de outra classe." Lênin citado por KRAUSZ 2017 página 251
Volta-se assim a questão da neutralidade axiológica, que tanto embasa a sociologia weberiana, que recalca os interesses de classe no preparo que as classes privilegiadas desfrutam, e, efetivamente possuem, pois estão além da sobrevivência. Na verdade, o problema será mais precisamente colocado por Luckács e Gramsci alguns anos depois, que fizeram uma distinção ao meu ver fundamental entre, Sociedade Civil e Estado, para tornar possível e operacionalizar a radicalização democrática. Inclusive, é importante destacar, que alguns gramscianos brasileiros, no contexto do fim da Ditadura Civil-Militar no país escreveram textos fundamentais, exatamente colocando a questão do aprofundamento da democracia, como um valor inestimável e revolucionário***. O problema persiste em nosso mundo contemporâneo, em nossa incapacidade de superar a diferenciação entre Estado e Sociedade Civil, ou domínio público do privado, ou ainda o político do econômico.
Na verdade, hoje nos parece que Lênin subestimou a capacidade do capitalismo de se renovar, com a própria Primeira Guerra Mundial, da qual o líder da revolução russa também tirou todo o proveito, a partir de sua caracterização como uma crise sem precedentes do imperialismo. Mas, ao seu término não há como negar, que o Estado nas democracias ocidentais conseguiram contornar a eminência da revolução na Europa, que acabou se restringindo a Russia. Sua própria teoria, do desenvolvimento desigual do capitalismo, seu posicionamento frente aos internacionalistas como Trótsky e Bukhárin, a questão das nacionalidades e a ideia da federação russa parecem hoje como posicionamentos estratégicos e pragmáticos, mais do que convicções ideológicas, adotadas pela premência do fazer. A questão fica clara ao se ler trechos da carta de Bukhárin para Lênin no outono de 1915, também pinçados por KRAUSZ 2017, onde se percebe a convicção do primeiro, de que os dias do Estado-Nação haviam se extinguido;
"Por que fomos sempre contra a Revolução Russa? Porque as precondições objetivas - país de economia agrária, imensa população camponesa, difusão da manufatura caseira (remelo) - não a permitem...Porém, em minha opinião (que ainda não posso declarar positivamente, mas me sinto cada vez mais inclinado a tal "anarquismo"), esse estado de coisas vai se estender enquanto entendermos a Rússia como Estado e economia isolados. Durante a Revolução de 1905, não havia maior esperança de uma revolução europeia. A situação agora é completamente diferente. Desta vez - senão hoje, amanhã - uma chama pan-europeia, senão mundial, está para arder. Mas a revolução social, a revolução do Ocidente, derrubará todas as fronteiras entre Estados-nação...Se esse for o caso, por que teriamos de preservar as particularidades locais e o poder da burguesia, que será um perigo maior amanhã (pois lider = imperialismo) para o Ocidente do que um tsarismo deteriorado?" citando carta de Bukhárin para Lênin KRAUSZ 2017 página255
Enfim, muito além de qualquer mistificação, a figura de Lênin merece uma reflexão mais aprofundada, apenas na questão do debate sobre o Estado burguês ou revolucionário, sua contribuição é muito importante. Ao final, a riqueza da reflexão de Lênin foi também tributária de uma interlocução rica e variada, que não necessariamente coincidia com suas posições, vale aqui a lembrança de um posicionamento do anarquista Mikhail Bakunim, que na verdade foi contemporâneo de Marx e Engels;
"Se você pegar o mais ardente dos revolucionários, e der a ele um poder absoluto, num ano ele será pior do que o próprio tsar." BAKUNIM, Mikhail
NOTAS:
* Os livros, que apontam a premissa autoritária da obra de Lênin são; POLAN, A. J. - Lenin and the End of Politics - Methuen, Londres 1984 e SERVICE, Robert - Lenin A political Life v3 The Iron Ring - Mcmillan, Londres 1994, ambos citados por KRAUSZ 2017 página249.
**Os livros que apontam a disposição libertária da obra de Lênin são; HARDING, Neil - Lenin´s Political Thought v.2 - Martin Press Nova York 1981 e ANDERSON, Kevin - Lenin, Hegel and the End of Politics - Methuen, Londres 1984
*** Ver aqui no blog, o texto A grave crise brasileira e dois textos esclarecedores, que são COUTINHO, Carlos Nelson - A democracia como valor universal - acessível no site https://www.marxists.org/portugues/coutinho/1979/mes/democracia.htm e VIANNA, Luiz Werneck -Volver Não sairemos deste mato sem cachorro sem a política e os políticos que nos sobraram - O Estado de S.Paulo 04 Junho 2017
BIBLIOGRAFIA:
AARÃO REIS, Daniel - A revolução que mudou o mundo: Rússia 1917 - Companhia das Letras São Paulo 2017
KRAUSZ, Tamás - Reconstruindo Lênin, uma biografia intelectual - Editora Boitempo 2017
LÊNIN, Vladimir Ilitch Ulianov - O estado e a Revolução, a doutrina do marxismo e as tarefas do proletariado na revolução - Editora Boitempo São Paulo 2017
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