sábado, 9 de abril de 2022

A Idade Média

Mapa da Península Ibérica no século VIII,
mostrando o domínio Islâmico nos atuais
territórios de Portugal e Espanha

Mais uma vez, no âmbito da disciplina de Teoria e História da Arquitetura 1, que faz parte do currículo da Escola de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal Fluminense (EAU-UFF) trago aqui um texto referente as aulas que abordaram o período da Idade Média. Um período que se estende de 476 d.C. com a queda do Império Romano do Ocidente, até 1453 com a queda de Constantinopla e a consequente queda do Império Romano do Oriente. A denominação Idade Média, é produzida pelo Renascimento, que com um olhar excessivamente europeu encara esse período de dez séculos, como algo indefinido e sem expressividade artística, denotando um claro euro centrismo. Esse imenso período só passa a ter uma expressividade artística digna de nota, a partir do século X, quando as cruzadas, o reaparecimento de uma cultura urbana exemplar e o declínio do feudalismo emergem. No entanto, acontecimentos e expressividades artísticas notáveis como; o Império de Bizâncio, a Expansão Islâmica no norte da África e na Península Ibérica, bem como o Império Carolíngeo, que precedem o ano 1000 passaram a margem dos registros históricos e hegemônicos do ocidente, até o período do século XVIII e XIX. Quando então, o Romantismo e nossa contemporaneidade vão se debruçar sobre a Idade Média, criando inclusive a figura do historiador medievalista, que nos remete a figuras que abordaram o período com grande brilhantismo, tais como; Jacques Le Goff (1924-2014), George Duby (1919-1996), Marc Bloch (1886-1994), Eugène Violet-le-Duc (1814-1879), dentre outros. Em nossa contemporaneidade, a reflexão sobre a Idade Média permanece aberta envolvendo muitas vezes o deslocamento do eixo da compreensão sobre esse período, que na verdade nos permite melhor compreender o nosso tempo, num processo de diferenciação e identificação que nos permite entender de onde viemos. Nesse aspecto, a compreensão do sistema feudal é fundamental, onde se nota a grande importância da posse da terra, articulada com o declínio das trocas monetárias, pela ausência ou declínio das moedas constituídas.

“Cada propriedade feudal tinha um senhor. Dizia.se comumente do período feudal que não havia “senhor sem terra, nem terra sem um senhor”, O leitor já viu, com certeza, fotografias dos solares medievais. É sempre fácil reconhecê-los porque, fosse um castelo ou apenas uma casa grande de fazenda, eram sempre fortificados. Nessa moradia fortificada, o senhor feudal vivia (ou o visitava, já que freqüentes vezes possuía vários feudos; alguns senhores chegavam mesmo a possuir centenas) com sua família, empregadas e funcionários que administravam sua propriedade.” HUBERMAN

As contínuas expansões dos califados árabes entre os séculos 
VII e VIII na Idade Média 

Na verdade, a expansão Islâmica no norte da África se inicia com a morte do profeta Maomé, provavelmente entre os anos de 622 e 632 da nossa era, ocupando a Península Arábica, depois se processa a expansão do Califado Ortodoxo entre os anos de 632 e 661, envolvendo os atuais Estados do Egito, Líbia, Irã, Iraque, até chegar no Califado Omíada, que vai de 661 a 750, quando atinge e domina grande parte da Península Ibérica, marcando fortemente as culturas de nossos colonizadores, Portugal e Espanha. O Emirado de Córdoba, irá gerar um dos objetos mais emblemáticos da História da Arquitetura a Mesquita da cidade de Córdoba (1) (785-987), por seu hibridismo de espacialidades muçulmana e cristã, assinalando uma das marcas de nossa vertente Ibérica. O Emirado de Córdoba será também um exemplo da convivência entre as três grandes religiões do ocidente, o judaísmo, o cristianismo e o islamismo, conforme atestam a citada mesquita, a Sinagoga de Toledo (século XII), e a Alhambra ou Medina de Granada (1248-1354). Além desses fatos urbanos concretos, percebe-se na arquitetura de Portugal, de Espanha e em suas colônias uma série de elementos e detalhes que constituem a personalidade do nosso construir, como as casas em torno de pátios, os alpendres, as gelosias e muxarabis de nossas esquadrias. O olhar sobre essas vertentes e forças culturais da história da cultura do construir ainda estão a demandar pesquisas e abordagens criativas sobre um patrimônio único e particular.

"Tome-se o Alhambra de Granada. Ele já não hospeda nem os reis mouros, nem os reis castelhanos, no entanto, se aceitássemos as classificações funcionalistas, deveríamos declarar que ele constitui a principal função urbana de Granada. É evidente que em Granada, experimentamos a forma do passado de um modo totalmente diferente do que podemos fazer em Pádua. (Ou, se não totalmente, pelo menos em grande parte). No primeiro caso, a forma do passado adquiriu uma função diferente, mas está intimamente ligada à cidade, modificou-se e nos faz pensar que ainda poderia se modificar; no segundo, ela está, por assim dizer isolada na cidade. nada lhe pode ser acrescentado, ela constitui uma experiência tão essencial que não se pode modificar (veja-se neste sentido a substancial falência do palácio de Carlos V, que poderia ser tranquilamente destruído); mas, em ambos os casos, esses fatos urbanos são uma parte insuprimível da cidade, porque constituem a cidade." ROSSI 1995 página53

La Alhambra de Granda na Espanha

Aqui, precisa-se destacar que além da polêmica entre funcionalismo e formalismo, típica dos anos sessenta de Aldo Rossi, emerge a presença particular de uma cultura deixada a margem pelo euro centrismo, que envolve no período da Idade Média, tanto a Expansão Islâmica, como o Império Bizantino, que florescem e geram fatos arquitetônicos dignos de nota, antes do século IX. Essa cultura extra europeia com a presença de sofisticados aparatos construtivos e citadinos nos mostram como o compartilhamento de conhecimentos funcionais, formais  e também tectônicos permaneceu operando no desenvolvimento humano. Por outro lado, a denominação Bizantina, segundo o historiador Ciryl Mango é incorreta, uma vez que nunca existiu um Estado com esse nome, na verdade os cidadãos dessa parte do mundo se viam como Romanos. A fundação da cidade de Constantinopla ocorreu em 324 d.C., que era mencionada como a nova Roma, e que segue sendo a capital do Império Romano do Oriente até 1453, quando ocorre a conquista pelos turcos otomanos. Na verdade, a cidade de Bizâncio será o cruzamento de várias vertentes culturais desse tempo da Idade Média; o Romano, o Românico, o Gótico e o Islâmico. Portanto, chama-se arquitetura bizantina aquela desenvolvida pelo Império Romano do Oriente, que passou a ser denominado modernamente de Bizantino em referência a Bizâncio, o antigo nome da capital imperial bizantina Constantinopla, atualmente Istambul, que convive com a Idade Média Europeia era muitas vezes, a Nova Roma. Sobre essa perspectiva, mesmo atualmente será mais correto denominar este período Antiguidade Tardia - a dita decadência romana, no qual se nota um desenvolvimento mais contínuo da arquitetura romana, sobre a influência do Românico, do Gótico e do Islã. O estilo caracteriza-se pelos mosaicos vitrificados e pelos ícones, pinturas sacras normalmente feitas sobre madeira, com disposição tríptica. A arquitetura é marcada pelo processamento das várias influências estéticas recebidas pelo Império Bizantino. Também destacou-se no desenvolvimento da tectônica e de processos construtivos arrojados, tendo sido responsável pela difusão de novas formas e tipologias de cúpulas. Sua obra mais emblemática é a Haia Sofia ou Santa Sofia, que foi construída pelo imperador Constantino em 360, mas com a ideia encomendada por Justiniano, que contratou dois matemáticos para realizarem o projeto, Antemio de Trales e Isidoro de Mileto.

"A única resposta que pode dar-se é que os historiadores, em sua necessidade de subdividir o passado em períodos razoavelmente coerentes e analisáveis, decidiram que o Império Bizantino começo com a fundação de Constantinopla em 324, e terminou com sua conquista pelos turcos otomanos em 1453 [...] Segundo essa definição, a arquitetura bizantina foi a arquitetura do Império Bizantino, e teve uma duração de onze séculos, descontando sua prolongação em países de fé ortodoxa até muito depois de 1453. Mas isto nos coloca uma nova questão; supondondo-se que essa divisão cronológica seja aceitável para os historiadores; ela também tem sentido, quando se fala de arqujtetura? Ou para dizê-lo de outro modo, os monumentos erigidos no Império Bizantino entre 324 e 1453; têm características comuns que permitem identificá-los como bizantinos e distinguí-los de outras culturas e estilos, tais como o romano, o românico, o gótico e o islâmico? " MANGO 1975 página 9

Interior da Mesquita de Córdobra, sincretismo
de culturas

Afinal, para nos restringirmos à construções específicas, materializadas nas proximidades dessa sensibilidade denominada Bizâncio; quais as distinções e semelhanças entre Santa Sofia em Constantinopla e São Marcos em Veneza? Ou, quais as continuidades e rupturas existentes na corrente da cultura do construir da Igreja Ortodoxa, que aproxima e distancia Istambul de Moscou? O desenvolvimento dos conhecimentos construtivos, das morfologias espaciais e das comodidades apresentadas por diversificadas construções e cidades se influenciam mutuamente, não obedecendo a rigidez dos ciclos históricos e dos limites geográficos. Aqui, o que é importante ressaltar é que a cultura além dos limites do ocidente permaneceu com manifestações dignas de referência, durante o período de adormecimento ou desaceleração - do século V ao IX - daquilo que consideramos; Ocidental. Mas é exatamente essa desaceleração ou adormecimento da sanha construtiva, que nos permite imaginar e pensar como se deram as estratificações dos conhecimentos construtivos, funcionais e estéticos no campo das cidades e da arquitetura. Apenas, para citar um dos mais emblemáticos exemplos da História da Arquitetura, a Catedral de Santa Maria del Fiori em Florença inicia sua construção em 1296, com o projeto de Arnolfo de Cambio, e terá o concurso para realização do seu Duomo em 1418, levando portanto mais de um século para se materializar na cidade medieval, palco maior do Renascimento. A desaceleração do tempo na Idade Média, de certa forma permitiu a estratificação de camadas formais, estruturais, funcionais e espaciais, no longo prazo. A riqueza das pequenas cidades da Itália, nos dias de hoje desde o sul até o norte, não estaria exatamente no desenvolvimento de tecnologias construtivas, arranjos funcionais e composição espacial e volumétrica estratificadas no longo prazo, ainda por cima alicerçada pelo renascer da cultura urbana, envolvendo; a observação, a fruição e a contemplação de soluções já construídas. Enfim, a longa tragetória da cultura do construir no Ocidente pode ser emblemáticamente contada pela evolução morfológica, funcional e tectônica da basílica paleo cristã.

“A basílica romana é simétrica relativamente aos dois eixos: colunatas em frente de colunatas, abside em frente de abside. Cria, pois, um espaço que tem um centro preciso e único, função do edifício, e não do caminho humano. O que é que faz o arquiteto cristão? Praticamente duas coisas: 1) suprime uma abside; 2) desloca a entrada para o lado menor. Desta forma, rompe a dupla simetria do retângulo, deixa o único eixo longitudinal e faz dele a diretriz do caminho do homem. Toda a concepção planimétrica e espacial e, por isso, toda a decoração, tem uma única medida de caráter dinâmico: a trajetória do observador.” ZEVI, 1977


A arquitetura paleo cristã em sua singeleza manifesta essa estratificação das decisões funcionais, técnicas e espaciais a partir da manipulação do vocabulário, da antiga linguagem da arquitetura do Império Romano, num longo processo. A transformação da basílica pagã em templo de reunião de fiéis da nova religião católica é um interessante debate, o descarte do antigo templo pagão e a eleição da basílica romana segue a lógica da sua sucessão de colunatas e naves, contrastantes com o espaço central da nave, que perde sua centralidade para se metamorfosear num caminho entre a entrada e o altar.
Em cima; planta baixa da Igreja Paleo Cristã de
Sta Sabina 422-432 Abaixo; Basílica de Ulpia
Roma século II

Programaticamente, o templo paleo cristão estabelece um claro direcionamento longitudinal, margeado por duas naves mais baixas, numa clara manipulação da entrada de luz pelo alto, numa ordenação que parece espelhar um culto em expansão, comprometido com a cidade e a comunidade. Esse vínculo entre espacialidade interna, - eixo longitudinal entre a porta urbana e o altar, - e o espaço da cidade se desenvolverá numa infinidade de arranjos e proposições, sempre orientados por um evangelismo expansionista. A singelez dos primeiros templos paleo cristãos nos mostram a casa de um Deus acessível, uma espacialidade que parece querer reforçar mais a reunião e comunhão dos fiéis, do que o distanciamento institucional do poder da igreja nascente. O caminhar em direção a uma revelação, contido na espacialidade do templo católico espelha de forma emblemática a transformação de um culto subversivo no Império Romano em culto oficial do mesmo império. O exemplar assinalado como notável é a igreja de Santa Sabina em Roma realizada entre 422 e 432, num local de martírio de uma cidadã romana convertida ao novo culto, que foi martirizada pelos pagãos. Em contraste, a grande catedral gótica seguirá essa ordenação de elementos, se posicionando nas pequenas cidades medievais com um destaque escalar impressionante, que nos mostra a permanência e transformação desse evangelhismo. 

(O termo Gótico) "... Foi aplicado a arquitetura e a arte medieval do ocidente por alguns escritores do século XV (Filarete e Manetti) e do XVI, especialmente por Vasari, para qualificar a barbárie da arte anterior aos séculos do Renascimento. A "maneira tedesca", ou "maneira Goti" é o contrário  da boa tradição antiga, a que retornam os séculos XV e XVI. Esta noção se propôs, pois, e se aceitou unanimemente no século XVII, com um sentido pejorativo, para expressar censura, e para explicar la por circunstâncias históricas (as invasões da alta Idade Média) e étnicas; conhecido poema de Moliére, La Gloire du Val de Gráce (1669), que alude ao "...insípido gosto dos ornamentos góticos. Estes monstros odiosos dos séculos ignorantes. Que tem produzido torrentes de barbárie..." No século XVIII, quando se esboça um primeiro movimento crítico que tende a valorizar a arte medieval, o termo gótico foi adotado de novo pelo Padre Laugier, por William Gilpin, ou por August Wilhelm Schlegel, com um conteúdo Positivo ou laudatório. E foi adotado pelo eruditos do século XIX e XX, não sem certa resistência, por certo; um grande número de escritores alemães viam nele, seguindo a Goethe, a expressão do gênio germânico (deutsche Architectur); e certo número, mais reduzido, de escritores franceses (como Camile Enlart) que propõe o termo arquitetura francesa; se apoiavam estes na paisagem da crônica de Burchard von Halle (1280), segundo o qual a construção da igreja de Wimpfen-im-Thal (1269-1274) se fez como "opere francigeno", " a maneira francesa". Ao final de tais querelas nacionalistas, que parecem ter terminado em nossos dias, o termo gótico tem sido adotado universalmente. Sua definição aparece hoje desembaraçada de toda referência as civilizações nômades, invasoras do Ocidente, durante a alta Idade Média, "godos", germanos ou francos, ainda quando determinados autores, Hans Seldmayr, entre os mais recentes, continuam descobrindo nele alguma raiz "antimediterrânea", oposta a civilização greco-romana. A princípios deste século atrás do Romanticismo, esta ideia se propagou em formas mais abruptas e ingênuas, por exemplo, por Wilhelm Worringer" GRODECKI 1977 página9

A sucessão de plantas de Saint Denis na França,
a longa estratificação da cultura do construir
na Idade Média

A arte gótica se desenvolveu fortemente na última fase da Idade Média, na França, a partir do século X, durante a dinastia dos Capetos na região de Saint Denis, ao norte de Paris. A reconstrução do coro da Abadia de Saint Denis entre 1140 e 1144, aonde se encontra um tipo de rocha calcáreo muito fácil de ser trabalhada é considerada o advento do gótico. Como já assinalado, o termo gótico provavelmente expressa um preconceito renascentista, que a classificou como a arquitetura dos godos, em contraposição a arquitetura românica, proveniente de Roma. Do ponto de vista da gênese da forma, da manipulação das técnicas construtivas e da sua funcionalidade há um claro esforço no gótico para supressão dos panos cegos do muro e ampliação das áreas de vitrais e entrada de luz. Uma ênfase na verticalização das composições nas naves centrais e laterais das Basílicas, numa concepção espacial que enfatiza o místico e o espiritual. O grande arquiteto do Brasil, Oscar Niemyer enfatizava em suas palestras de forma recorrente, exatamente essa dimensão mística na sua fruição da catedral de Notre Dame de Paris, dizendo; "Eu um materialista histórico, quando adentrava seu espaço, sentia que minha alma, independente de minha vontade, ajoelhava." Era a prova cabal da eficiência programática daquela espacialidade, aonde a captura da luz pelos vitrais, os encaixes dos arranjos de cantaria e a altura inusitada das naves nos remetem ao sagrado.

“A arte gótica desenvolveu-se na Europa na última fase da Idade Média (séculos XII e XIV), num período de profundas transformações em que se assistiu à superação da sociedade feudal e à formação de novos centros de poder: as primeiras monarquias, as grandes cidades, o clero, as classes ‘novas’ dos comerciantes e banqueiros.”
“A enfática verticalidade de tais edificações revela plenamente as transformações do gosto, do pensamento filosófico, dos ideais estéticos, traduzidas, no plano arquitetônico, por uma renovação das técnicas mediante a introdução de uma série de elementos originais típicos do estilo gótico: a abóbada sustentada por uma cruzaria ogival, a utilização do arco quebrado em vez do arco de volta perfeita (ou de volta inteira, arco românico), o emprego do arcobotante e dos contrafortes.” GOZZOLI (1994: 9)
 

Esse renascer da cultura urbana na Europa, no período que se convencionou de ser chamado de Baixa Idade Média, entre os séculos IX e XIII, quando se percebe o retorno do comércio, o retorno da cultura urbana, com a auto consciência da produção de seu futuro, e a construção da cidadania articulada ao combate a servidão e a escravidão mostra a retomada  do foco da historiografia eurocêntrica no fatos construídos. Nesse sentido, é emblemático se debruçar sobre os processos de longo prazo de construção das catedrais européias, invariavelmente elas nascem como pequenos templos paleo cristãos e vão se desenvolvendo continuamente com expansões e transformações. O caso de Notre Dame de Paris é representativo. O local da catedral contava já, antes da construção do edifício, com uma sólida memória relativo ao culto religioso de diferenciadas crenças. Os celtas teriam aqui celebrado as suas cerimônias onde, mais tarde, os romanos erigiriam um templo de devoção ao deus Júpiter. Também neste local existiria uma das primeiras igrejas do cristianismo de Paris, a Basílica de Saint-Etienne, projetada por Quildeberto I por volta de 528 d.C.. Em substituição desta obra surge uma igreja românica que permanecerá até 1163, quando se dá o impulso na construção da catedral gótica, que hoje está lá. Já em 1160, e em resultado da ascensão centralizadora do Império Sacro Franco Germânico, o bispo Maurice de Sully considera a presente igreja pouco digna dos novos valores e manda-a demolir. O gótico inicial, com as suas inovações técnicas que permitem formas até então impossíveis, é a resposta à demanda de um novo conceito de prestígio no domínio citadino.

“Uma vez que o sistema de construção gótico permite fazer com que o peso vertical da abóbada incida sobre os pilares e a pressão lateral sobre os arcobotantes e seus contrafortes (implantados diretamente no terreno do lado de fora do edifício), as paredes não têm funções estáticas e podem ser substituídas sem qualquer problema por uma série de arcadas e de grandes janelas: graças ao princípio das paredes francamente rasgadas, invenção exclusiva da arquitetura gótica, estas perdem toda a materialidade, transformando-se num como que leve diafragma de vidro multicolorido.” GOZZOLI (1994: 21)

Monastério de Batalha, Portugal 1385; a unificação
precoce do Estado Português e sua arquitetura gótica



Esse desenvolvimento da linguagem gótica vai assumir diferenciados sotaques e composições a medida que se afasta desse primeiro núcleo franco-germânico desenvolvendo e se articulando com variadas demandas e aspirações regionais. Em Portugal, o chamado gótico tardio ou mediterrâneo se desenvolve com especificidades inerentes ao pioneirismo da organização do Estado Nacional nessas paragens. Por exemplo, o Convento de Batalha, na cidade de mesmo nome em Portugal teve sua construção iniciada em 14 de agosto de 1385, perto da aldeia de Aljubarrota, onde Dom João I com o seu fiél condestável Dom Nuno Alvares Pereira derrotaram os Castelhanos, o que forjou a construção da nação portuguesa. Para agradecer a Deus por esta vitória, o fundador da nova e lendária dinastia de Avis manda construir um dos mais belos mosteiros da península ibérica: o Mosteiro de Santa Maria da Vitória, em Batalha. Sem dúvida nenhuma, uma construção única, que terá profundos rebatimentos no desenvolvimento da cultura lusa até o nosso presente, com claros rebatimentos no Estilo Manuelino, nas Construções Ultramarinas das Colônias de Portugal, até chegar ao ecletismo e modernismo português, que assim como em outras partes retomará o tema do Arts and Crafts (2). Na cidade do Rio de Janeiro, o Gabinete Real de Leitura Português é um exemplar dessa longa extirpe, inaugurado em 1887 faz parte dos estilos historicistas ecléticos, e é denominado Neo Manuelino.  A arquitetura e o urbanismo mesmo em seus momentos de importações de sensibilidades de outras paragens permanece sendo a expressão de um lugar, tanto pela materialidade, como também por sua comodidade e adequação climática e expressão.

“Na Espanha e na Itália, o gótico é menos puro, surge, por assim dizer, latinizado, perdendo as suas características mais puras. As manifestações mais extremas datam dos finais do século XV, com o chamado gótico flamejante, que, no entanto, não tem a vitalidade criativa anterior.” GOZZOLI (1994: 4)
Assim como o Monastério de Batalha teremos como representantes de um gótico mediterrâneo, ou flamejante; a Catedral de Milão na Itália (século XIV), a Catedral de Salamanca na Espanha (século XII ao XIV), e a catedral de Sevilha na Espanha (século XV). Exemplares, que latinizam o gótico dando-lhe uma acentuação clássica, que provocaram os debates já apresentados aqui sobre as especificidades do mundo europeu, na Idade Média, partida entre seu norte culturalmente mais bárbaro, e seu sul Mediterrâneo, mais clássico. Essa linha divisória não estará subdivida de forma rígida, mas apresenta gradientes e nuances diversificadas, que condicionarão o desenvolvimento futuro de países e regiões de forma tão característica.

Notas:

(1) Há um interessante debate em ROSSI 1995 páginas 49-58, sobre a natureza das permanências no contexto das cidades, que são caraterizadas em duas categorias como; monumentos isolados e aberrantes, ou monumentos persistentes, envolvendo exatamente a Alhambra de Granada e a Mesquita de Córdoba. O endereço da reflexão de ROSSI 1995 é o questionamento do funcionalismo, contrapondo a este a persistência da forma da arquitetura, sobre diferenciadas perspectivas; isolada e aberrante (Alhambra de Granada) ou persistente (Mesquita de Córdoba ou a Cidade de Pádua).

(2) O Tema do Arts and Crafts, literalmente; arte e artezanato envolvia o debate entre a arte mecânica e o arte liberal tão caro ao Renascimento Italiano, ao Romantismo Alemão e ao Modernismo Anglo Saxão, Catalão e Português.

Bibliografia:

GOZZAI, Maria Cristina – Come reconhecere l’arte gótica

GRODECKI, Louis - Arquitetura Gótica - edição Aguilar Madrid 1977

HUBERMAN, Leo – História da Riqueza do Homem, capítulo 7 Sacerdotes, Guerreiros, Trabalhadores 

MANGO, Cyril - Arquitetura Bizantina - Edição Aguilar Madrid 1975

ROSSI, Aldo - A arquitetura da Cidade - Editora Martins Fontes São Paulo 1995

ZEVI, Bruno – Saber ver a arquitetura – Arcadia Lisboa 1977