terça-feira, 29 de outubro de 2019

Mais um debate do 21 Congresso Brasileiro de Arquitetos (21o CBA) sobre o ensino de projeto

No dia 10 de outubro de 2019, no âmbito do 21o CBA ministrei palestra sobre o ensino de projeto na Escola de Arquitetura e Urbanismo da UFF, junto com dois outros colegas, Carlos Eduardo Plens da Universidade do Contestado e William Moog do Programa de Pós Graduação da UFRGS. A minha palestra tinha o título de Apontamentos sobre as aulas de Projeto Executivo no âmbito da EAU-UFF, a do colega Carlos Eduardo Plens; Antártida como abstração de projeto e a de William Moog; Entre Vilas o percurso no ensino de projeto urbano. A diversidade de posicionamentos enriqueceu o debate, conformando um quadro rico e variado das experiências de ensino de projeto numa diversidade de contextos. Em termos sintéticos, minha palestra apresentava os desafios do ensino de projeto executivo, frente a recorrente prática das escolas de arquitetura de se limitar as entregas a fase de anteprojeto. Enquanto, a palestra de Carlos Eduardo Plens abordava o desafio de se projetar na Antártida, a Estação Almirante Ferraz, um ambiente inóspido que forçava aos alunos a pensar fora da zona de conforto. E a palestra de William Moog abordava o tema de vivenciar os espaços a serem projetados, na disciplina de Urbano, para se atingir uma maior compreensão da espacialidade real.

O ensino de projeto é de difícil abordagem teórica, por ser uma atividade intrinsecamente operativa e empírica, necessitando da experiência para ser apreendido pelo estudante, aonde a vivência do fenômeno conta mais que sua sistematização teórica. A prática é que traz mais segurança ao aluno, que consegue identificar seu caminho a partir de um experimentalismo recorrente, seja no campo do urbano, seja no arquitetônico. A academias francesas, que são a origem de nossas escolas de arquitetura, encaravam o projeto como um âmbito autônomo dos alunos, que na verdade selecionavam e elegiam o professor que os exercitava na cadeira de Composição de Projetos. Essa autonomia, e liberdade de escolha nos ateliers de projeto não deve ser reprimida, pois o ato de projetar se aproxima da concepção artística, sendo uma ato sempre autobiográfico. Abaixo publico a íntegra do meu texto, que apresentei nessa seção do 21 Congresso Brasileiro de Arquitetos.



APONTAMENTOS SOBRE AS AULAS DE PROJETO EXECUTIVO NO ÂMBITO DA EAU-UFF


A EXPERIÊNCIA DO PROJETO EXECUTIVO NAS ESCOLAS DE ARQUITETURA E URBANISMO, UMA REFLEXÃO

EIXO TEMÁTICO: FORMAÇÃO E O FAZER PROFISSIONAL


NOME DO AUTOR
– Pedro da Luz Moreira (EAU-UFF) - e-mail: daluzmoreira.pedro@gmail.com


Resumo: O presente trabalho apresenta a experiência atualmente desenvolvida no âmbito da Escola de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal Fluminense(EAU-UFF), em Niterói, decorrente das aulas de Projeto 5, que abordam o projeto executivo. A matéria de Projeto 5 na grade do currículo da Escola de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal Fluminense (EAU-UFF) acontece no esquema geral do curso no 6º período, antes da matéria de Projeto de Arquitetura de Restauração (7º período) e Projeto de Arquitetura de Habitação Social (8º período), sendo portanto a ante penúltima disciplina antes do Trabalho de Conclusão de Curso (TCC), que ocupa os dois últimos períodos. As escolas de arquitetura no Brasil tem se restringido a cobrar de seus alunos nas disciplinas de projeto, trabalhos no nível de Estudo Preliminar, ou no máximo de Anteprojeto. A experiência é fundamental na aproximação dos esforços didáticos da EAU-UFF com a prática profissional e com o processo de amadurecimento do aluno no enfrentamento do projeto.. Existe aqui um notável esforço da instituição de superar a vivência do projeto, apenas como criação e concepção inusitada, mas de conquista de um discurso mais técnico, descritivo de uma construção efetiva e materializada de forma concreta.

Palavras-chave: Projeto Executivo; Tectonia; Arquitetura; Cidade; Habitar; Edifício Multifamiliar.





1. Premissas Teóricas Gerais:

A matéria de Projeto 5 na grade do currículo da Escola de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal Fluminense (EAU-UFF) acontece no esquema geral do curso no 6º período, antes da matéria de Projeto de Arquitetura de Restauração (7º período) e Projeto de Arquitetura de Habitação Social (8º período), sendo portanto a ante penúltima disciplina antes do Trabalho de Conclusão de Curso (TCC), que ocupa os dois últimos periodos. A matéria pretende fornecer aos alunos a dimensão real do projeto de arquitetura, em sua integridade desde a concepção a seu detalhamento, enquanto representação de uma obra, que ele antecipa. A EAU-UFF sempre se caracterizou desde a sua fundação por ser um curso com preocupações sociais, buscando formar um profissional capaz de dar respostas às graves condições de precariedade habitacional, que afligem a população brasileira. Os temas como urbanização de favelas, produção de habitação de interesse social, projeto participativo são constantes nas bancas de TCC na EAU-UFF. Existe aqui um notável esforço da instituição de superar a vivência do projeto, apenas como criação e concepção inusitada, mas de conquista de um discurso mais técnico, decritivo de uma construção efetiva e materializada de forma concreta. Em sua ementa a disciplina de Projeto 5 define de forma categórica, que seu tema é o projeto executivo, buscando fazer com que o aluno vivencie os problemas de detalhamento e maior precisão na descrição do objeto. 
Figura 1: Croqui fornecido aos alunos da unidade 
simplex com núcleo de circulçao vertical







Na verdade, desde a década de setenta a EAU-UFF oferece um curso de arquitetura, que se destaca no panorama da cidade metropolitana do Rio de Janeiro por seu perfil vinculado ao debate dos problemas sociais das cidades e da arquitetura brasileira. Essa preocupação nunca foi tida como em contradição com a sofisticação do desenho e o aprimoramento técnico do projeto, como aliás está destacado por SANTOS 1988, na interação entre análises e sínteses que ocorre na proposição arquitetônica e urbanística;

O dilema se arma entre dois extremos. De um lado, estão ANÁLISES que não querem ou não conseguem interferir nas práticas urbanas cotidianas. Do outro, estão SÍNTESES impostas como corpos estranhos á vida real das cidades que não alcançam decompor em seus elementos e mecanismos fundamentais. SANTOS 1988 página44

E, mais não podemos nos refugiar no conforto das análises, mas se arriscar nas proposições e desenhos, que materializam o desejo, não só do projetista mas também e principalmente dos usuários. O arquiteto Carlos Nelson Ferreira dos Santos possui uma trajetória dentro da arquitetura brasileira bastante singular, ele foi o principal ideólogo da fundação da EAU-UFF e um polemista notável. Incomodado com o messianismo da produção arquitetônica brasileira pós-Brasília, formado em 1966 ainda pela Universidade do Brasil, logo após o Golpe Civil-Militar, fez seu mestrado no Massachuseffs Institut of Technology (MIT) nos EUA em 1971. Em sua trajetória, ele também se deixará contaminar pela antropologia social do Museu Nacional da UFRJ em seu doutorado defendido em 1979. Na verdade, desde 1964 militava na assessoria à Federação e Associação de Favelas da Guanabara (FAFEG), e num órgão deste mesmo Estado denominado Companhia de Desenvolvimento de Comunidades (CODESCO), afirmando de forma categórica seu desejo de inflexão da prática do ofício. Sempre esteve ligado a academia, primeiro como professor do Instituto de Economia Industrial da UFRJ, e depois como professor e ideólogo da EAU-UFF. O seu livro A Cidade como um jogo de cartas permanece um testemunho notável de uma época, mas também uma experiência que ainda está para ser vivida pela prática profissional brasileira. A explicitação do conflito, presente na nossa sociedade, e portanto, nos desejos aflorados no processo de projeto, não impedia o alcance do consenso, que jamais deveria suprimir o embate.

As cartas representam as várias formas de oposição ou conjugação. Cada naipe é uma classe: copas o clero, espadas a nobreza, ouros a burguesia e paus os camponeses. É fácil deduzir que, até a burguesia pudesse se impor e fazer sua revolução, o naipe superior era espadas. O predomínio de ouros é recente. A troca de precedências dá um suporte óbvio ao argumento. SANTOS 1988 página 12

As procedências nos apontavam as supremacias e dominações presentes nos desejos da cidade e da habitação que buscamos, mais do que um juízo de valores era bom que intenções fossem explicitadas para se compreender a amplitude do projeto. Havia uma crença na processualidade do plano e do projeto, que ao materializar formas e conceitos socialmente compartilhados estabelecia um jogo de longa duração, que era a cidade, numa transformação constante. A base deveria partilhar uma mesma estrutura ancestral e compreensível, por todos, um retorno à história da cidade e aos seus elementos primários; a rua, o lote e a quadra, um limite mais preciso entre esfera pública e privada. Mais também, do que um limite preciso havia uma proposta de retorno a uma certa proporcionalidade entre o público e privado, como entidades interdependentes que se auto regulavam. Mas longe da comodidade das análises comportadas Carlos Nelson dos Santos sempre fustigava na direção da síntese e da formulação concreta do projeto;

“O erro, porém, não está em materializar o desejo de intervir no espaço através de estudos preliminares que viram anteprojetos e projetos, se corrigindo sucessivamente. Não é pela renúncia a responsabilidade de dar formas aos lugares, caindo nas neutralidades cômodas dos diagnósticos e dos planejamentos que só cuidam de generalidades, que iremos construir saídas.“ SANTOS 1988 página 17

Havia aqui a clara interpretação do projeto como intervenção, síntese e prognóstico, muito além das neutralidades objetivas das análises e diagnósticos, uma atividade ou forma de conhecer o mundo intervindo. Muito além da mera dedução, o que se cobra dos alunos nos ateliers de projeto é um compromisso com a indução, transformação e imaginação com o vir-a-ser da cidade, e da sociedade. A atividade didática de projeto é em sua essência empírica e experimental, não podendo ser transmitida a partir de conteúdos teóricos, em suma; aprende-se fazendo e exercitando. A experiência confere musculatura e confiança ao aluno na sua capacidade de articular demandas, contexto, técnicas construtivas, orçamento e valores simbólicos conformando uma representação do objeto. A atividade é crítica, no sentido de que não se restringe a reproduzir uma experiência espacial já constituída, mas ao mesmo tempo é operativa, no sentido de uma síntese das experiências construtivas em andamento no conjunto da sociedade. Foi Manfredo Tafuri (1935-1994), um crítico de arquitetura italiano, que destacou um grupo específico de teóricos como promotores da “crítica operativa do real”[1]1[i].

Segundo TAFURI 1979, essa corrente aproximava a crítica da arquitetura do campo da projetação, uma vez que se interessava pela definição de um sentido para as construções humanas, capacitadora de uma ampliação da civilidade. Os pensadores dessa corrente procuravam intuir a partir da história ou da obra de determinados arquitetos, a construção de um sentido de civilidade, tanto da arquitetura, quanto da cidade. O campo do plano e do projeto de urbanismo ou de arquitetura sempre tiveram uma forte tendência pela operatividade, pois pretendem a materialização da transformação. Mas, também operam no campo da crítica, uma vez que apontam para transformações concretas nos hábitos e costumes humanos materializados na espacialidade proposta. Há no campo do plano e do projeto uma salutar tensão entre desejos de materialização e o alcance de premissas utópicas, transformadoras de práticas arraigadas na sociedade. A projetualidade é um conceito que envolve as complexas relações de custo e benefício, cultura e inovação, representando a capacidade de operar no sentido de um impulso de uma mudança, mas também de exercer uma crítica ao desenvolvimento social instaurado. O projeto é enfim, uma forma de se abordar o real é também uma forma de conhecimento, aonde o protagonismo está colocado no futuro, no vir-a-ser da sociedade.

A pretensão aqui é fazer o aluno encarar o caráter da arquitetura e do urbanismo como arte, entendida como força presente e sintética que coo habita com suas premissas; funcionais, ideológicas e construtivas. Neste sentido, a palavra arquitetura é esclarecedora quando dissecada, estando seu significado ligado a uma dualidade enriquecedora e potencializadora;

“Assim precedendo ao termo tektonicos (carpinteiro, fabricante, ação de construir, construção) acrescentou-se o radical arche (origem, começo, princípio)...A arche é o centro da esfera social daquele Mundo, e deverá ser traduzida nos edifícios, apresentando os deuses, a história e o espírito ético do povo grego.” BRANDÃO 1991 página22

O conceito de arche, princípio equilibrado do universo, ponto de equilíbrio entre o homem e o kosmos, como um signo síntese da ordenação do mundo pelo homem é a chave que abre para nós a compreensão das várias sensibilidades, que irão construir a idéia do homem moderno. A arche é um conceito que está além da materialidade do edifício, mas que só é possível ser desvendado pela sua própria materialidade. Como um mundo que a transformação humana da natureza torna visível quando é desempenhada com preocupação estética, portanto distinto da simples construção. Encontra-se neste conceito uma tríade explicadora; primeiro uma volta a origem, segundo uma unidade ordenadora e por último, uma expressividade que dá visibilidade ao mundo específico que a ele está vinculado.
2.  Premissas Teóricas Específicas da Disciplina:

A partir dessas premissas gerais, a disciplina de Projeto 5 estabelece com os alunos uma diferenciação conceitual fundamental para a compreensão do processo de projeto em sua totalidade; a partir do anteprojeto, consolidada uma solução, o projeto executivo irá se dedicar a descrever de forma precisa a construção do objeto arquitetônico. De certa forma, abandonando uma linguagem acessível a todos (leigos e especialistas) para se comunicar com profissionais que militam na obra, que portanto, compreendem plantas e cortes. A diferenciação, nessas duas formas de se comunicar do projeto é banal e corriqueira, mas de grande importância para sua expressão e linguagem. Afinal, o público que se debruçará sobre o projeto muda seu perfil com a aprovação do anteprojeto, passando os documentos a ter um caráter mais técnico e preciso.

Na verdade, um dos desafios da matéria Projeto 5 é no espaço exíguo de um semestre, quatro meses de aula ou 32 aulas de três horas desenvolver e aprofundar um projeto executivo, que além disso, não contará com o aporte das disciplinas complementares, tais como; estrutura, instalações elétricas, instalações hidráulicas e sanitárias, impermeabilização, etc... Aporte que se constitui num elemento fundamental do desenvolvimento do executivo, uma vez que a interação com as disciplinas complementares se constitui num efetivo aprofundamento das decisões de projeto, na prática concreta. A pretensão é fazer os alunos vivenciarem a fenomenologia empírica do projeto executivo, entendido como um conjunto de documentos coerente entre si, que descrevem uma construção de forma precisa e detalhada, além do estudo preliminar e anteprojeto. Essas duas etapas preliminares no desenvolvimento do projeto acabam sendo os produtos mais corriqueiros dos alunos nas escolas de arquitetura, pela exiguidade do tempo, pela impossibilidade da interação com as outras disciplinas complementares, e por uma certa comodidade geral. Tal situação, acaba gerando um profissional que sobrevaloriza o desenho, não o entendendo como representação de um ato construtivo. Aquilo que MARTINEZ 2000 aponta como a representação analógica do construído, uma descrição do objeto urbano ou arquitetônico, que se busca controlar e dimensionar de forma adequada. O desenho é meio, e não fim em si mesmo, no entanto ele possui um claro poder indutor e revelador, pois de certa forma aquilo que não é visto por ele, não será contemplado.

Para fazer frente a esses condicionantes, uma das hipóteses para alcançar esse aprofundamento era o desenvolvimento de projetos  pré desenvolvidos em matérias anteriores, escolhidos pelos próprios alunos. Outra hipótese, seria o oferecimento de um anteprojeto consolidado, que permitisse aos alunos o desenvolvimento do projeto executivo desde as primeiras aulas do semestre. Essas hipóteses não se revelaram aplicáveis, pois muitos dos alunos não reconheciam em suas experiências anteriores, experiências bem sucedidas, e por outro lado, um anteprojeto oferecido não produziria aquilo que todo militante no projeto, e em seu ensino reconhece como um; envolvimento emotivo efetivo[2] na matéria de Projeto 5. Ítem fundamental na obtenção de um engajamento efetivo na disciplina e no alcance de seus objetivos, uma vez que projeto é também expressão artística, aonde a expressão pessoal conta muito. Na verdade, a atividade de projeto se aproxima do ato artístico em sua essência, afinal ela envolve a ordenação espacial, a eleição de um sistema de proporções, uma particular relação orgânica e unitária entre parte e todo, uma definição de uma materialidade adequada, enfim um processo obsessivo de controle do objeto construído, que se aprofunda a medida que se desenvolve. As considerações técnicas e estruturais desse processo não estão em contradição com a criação e a concepção auto-biográfica, ou da expressão pessoal, mas fazem parte da obtenção de uma certa potência, que deve ser vivenciada pelo aluno a partir da experiência empírica, do aprender fazendo.

 







Figura 2: Croqui fornecido aos alunos das unidades duplex com núcleo de circulçao vertical, que pretendem a diversidade de extratos sociais na estrutura condominial








A saída encontrada pela matéria foi oferecer aos alunos uma série de croquis genéricos, de duas unidades habitacionais de sala e dois quartos, articuladas por um núcleo de circulação vertical, que deverá ser usado pelos alunos de forma livre em sua reprodução, a partir de terrenos concretos escolhidos por eles mesmos. Além dessa planta padrão é definido, que o térreo da edificação deve oferecer um contínuo comercial à cidade, a presença de módulos de loja, de forma a conformar uma edificação multifuncional. As especificidades de funcionamento desse espaço comercial não são definidas, devendo esse espaço ter flexibilidade para poder abrigar; um bar, ou um restaurante, ou um cabelereiro, ou uma padaria, ou qualquer outro comércio. Junto com a planta padrão e a loja genérica no térreo, é também apresentada uma unidade com a mesma projeção horizontal, mas que se desenvolve em dois pavimentos, uma unidade duplex. O argumento para inserção dessa outra tipologia, o duplex, pretende fazer crítica a uma forma inercial de desenvolvimento das cidades brasileiras, que estratificam de forma muito violenta, classes sociais distintas. Portanto, a ordenação condominial pretende se como multifuncional e com diversidade de extratos sociais, que são aproximados pelo núcleo de circulação vertical. A partir da estruturação de uma unidade condominial concreta, inserida num contexto urbano específico, o aluno conforma um edifício multifamiliar, com comércio no térreo e com unidades de metragens diferenciadas, com o claro objetivo de criticar a inércia do desenvolvimento da cidade brasileira contemporânea. Isto é, identifica-se na cidade brasileira características nefastas, que são a rigidez monofuncional, áreas habitação ou dormitórios separadas das áreas de trabalho ou serviços, e com a tendência de aglutinar extratos sociais diferenciados, guetos de pobres e ricos,e com a presença de rodoviarismo exacerbado..























 Figura 3 e 4: Croquis dos alunos explicitando os arranjos condominiais propostos a partir da utilização das unidades habitacionais de simplex e duplex

 



3. Crítica a cidade brasileira e a hegemonia modernista corbusieana:

Além dessa crítica a forma de reprodução da cidade brasileira, os terrenos devem ser procurados pelos alunos em áreas estruturadas e centrais, aonde já exista oferta de comércio e serviços abundante, inserindo o uso habitacional. A proposta claramente pretende fomentar o habitar no centro, aonde além da ampla oferta de comércio e serviços, também se faz presente as comodidades da ampla mobilidade urbana, que possibilitam rápido acesso a todas as partes do território metropolitano, sem a celebração do automóvel particular. Esse preenchimento habitacional nas áreas centrais de nossas cidades é uma efetiva ação de revitalização, pois o uso habitacional acaba por demandar o próprio comércio, impulsionando seu uso mesmo nos fins de semana e feriados, otimizando o uso de nossas infraestruturas, já instaladas. Portanto, a estruturação condominial não obriga a oferta de vagas de automóveis, buscando incentivar o uso dos diversos modais de mobilidade também presentes nessas áreas. A partir disso, há uma relativização da legislação urbanística imposta nessas áreas, liberando os alunos da configuração de pavimentos garagem, numa clara vertente crítica ao rodoviarismo imperante.

Na verdade, o que se busca é a diversidade e inclusão, numa clara crítica às premissas de reprodução da cidade brasileira, que segue com um território estratificado entre ricos e pobres. A inclusão é o maior desafio das cidades brasileiras, que possuem um passivo na sua história de contínua exclusão de pessoas e áreas, que permanecem como guetos da pobreza, desassistidos das infraestruturas mais básicas. Afinal, uma das características mais marcantes de nossa sociedade é a marcante concentração de renda. De uma maneira geral, nossos políticos e nossas políticas ainda não despertaram para o fato de que a distribuição territorial da população pode ser um fator capaz de distribuir oportunidades, e portanto renda de forma mais equânime. O simples acesso a uma centralidade mais fortemente constituída, pode significar a frequência em equipamentos culturais e ou educacionais de boa performance, mudando de forma substancial a perspectiva de populações vulneráveis. A simples implantação de saneamento básico em certas localidades afasta de maneira significativa a ocorrência de doenças como desarranjo e difteria, que podem nos primeiros anos de vida significar comprometimentos definitivos na capacidade cognitiva de indivíduos.



A diversidade é didática, atesta tal fato a estratégia adotada pelas universidades norte americanas, que há anos fazem um esforço sistemático para reunir na mesma sala de aula alunos de diferentes procedências e nacionalidades, na expectativa de que suas vivências compartilhadas formem uma massa crítica. A excelência da universidade norte americana possui um dos seus pilares nessa pré determinação, que possibilita uma vivência de compartilhamento de experiências, que acaba produzindo um aprendizado, onde a passividade dá lugar ao ativismo. A própria experiência da nação norte americana3[ii], que baseou seu desenvolvimento na atração de diferentes nacionalidades, e durante a passagem do século XIX para o XX representou uma promessa para a imigração de todos os povos. De certa forma, o Novo Mundo, da América em sua totalidade também representou esse local de forma emblemática, um local onde as oportunidades estavam abertas para pessoas do oriente e do ocidente. As operações urbanas precisam encampar esse objetivo, incentivando o intercâmbio entre diversidades.



A pedagogia de Paulo Freire, também aponta no mesmo sentido, a diversidade é didática, capacitada de nos fazer relativizar nossos valores, e portanto produz um impulso didático de relativização dos nossos valores. A teoria dialógica de FREIRE 1970 aponta a premissa básica do diálogo entre experiências de qualquer procedência como operação didática, contraposta a concepção binária da educação, que não gerava autonomia do pensar, mas dominação e colonização. Há aqui um nivelamento importante entre as culturas do colonizador e colonizado, do centro e da periferia, numa nova proposição de relação entre professor, aluno e sociedade. Trazer esses valores para a ordenação do espaço físico das cidades, dos bairros e vizinhanças imediatas é restaurar o sentido inicial das aglomerações humanas, onde a diversidade é didática.



Há também aqui uma clara indução de implantação, negando a cultura do modernismo corbusieano, que naturalizou a presença dos pilotis nos térreos, destruindo a limitação historicamente bem compreendida entre esfera pública e privada. Há uma clara pontuação por parte do professor, de que o tema habitacional em nossas cidades contemporâneas é bem resolvido a partir de uma graduação socialmente compreendida e compartilhada entre esfera pública e privada, nas suas diversas nuances. Importante salientar, que essas nuances e sua gradação na percepção dos usuários, que do espaço público genérico de amplo acesso, passa-se ao espaço condominial controlado, e desse para a intimidade da família e do lar. A limitação clara e objetiva desses espaços reforça a vitalidade das nossas cidades, uma vez que a interação social é ampla e diversificada, não se restringindo aos habitantes do condomínio, mas também envolvendo; visitantes, entregadores, enfim, estrangeiros a estrutura condominial. O que se enfatiza junto aos alunos é a obtenção de uma estrutura legível e clara dessas graduações, que seja socialmente compartilhada. Por outro lado, se identifica na postura do urbanismo corbusieano um certo hiper dimensionamento do espaço público, que acabou invariavelmente incentivando uma ocupação por perversões.








Figura 5 e 6: projeto de Bruno Taut  para o bairro de Karl Liegen Stadt, em Berlim. Um modernismo de continuidade com a cidade pré existente novecentista, apresentado aos alunos como alternativa ao modernismo corbusieano hegemônico no Brasil.






Na verdade, a crítica ao modernismo corbusieano busca ampliar o vocabulário dos alunos, mostrando que a sensibilidade moderna abriga uma grande diferenciação de posturas ideológicas e de leituras da cidade, que não só a de Le Corbusier. De acordo com FRAMPTON 2008, tomando-se os Congressos Internacionais de Arquitetura Moderna (CIAMs) percebe-se uma clara hegemonia dos alemães até 1930, que após essa data terão a supremacia corbusieana, e da sua visão urbana. As experiências de construções massivas habitacionais da Alemanha da República de Weimar e da Europa Central são apresentadas aos alunos, mostrando um modernismo de maior continuidade com a cidade novecentista. As intervenções de Bruno Taut em Berlim e de Karl Ehn em Viena, no período pré Hitler são apresentadas como ordenações que trabalham com a mencionada graduação entre espaço público e familiar ou íntimo, permitindo uma legibilidade da cidade socialmente compartilhada.








Figura 7: projeto de Karl Ehn em Viena  para o bairro de Karl Marx Hof. Um modernismo de continuidade com a cidade pré existente novecentista, apresentado aos alunos como alternativa ao modernismo corbusieano hegemônico no Brasil



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 4.    Pré definições modulares e estruturais:

Por último, é sugerido aos alunos a adoção do método construtivo da alvenaria armada, técnica que é apontada pelo Sindicato da Cosntrução Civil (SINDUSCON), como a mais barata por metro quadrado para os empreendimentos habitacionais. E, capaz de realização de edificações de até oito andares, impondo verticalmente a coordenação modular entre pavimentos. Tal adoção pretende induzir os alunos ao raciocínio da modulação dimensional, como um elemento fundamental para o controle técnico da construção. As possibilidades e limitações desse método construtivo pretende impulsionar nos alunos um maior compromisso com o raciocínio tectônico, aonde os desenhos se afastam do esquemático, adotando seu real caráter descritivo e de representação analógica do construído. É enfatizado o caráter dialógico e interdisciplinar do projeto, aonde as contribuições e insites aperfeiçoadores podem ser obtidos a partir da interação com as disciplinas complementares, tais como hidraulica, esgoto sanitário, iluminação, estrutura, impermeabilização, etc. O projeto de arquitetura é encarado como disciplina coordenadora e indutora das demais disciplnas de projeto, não se eximindo no entanto de interagir e se aprimorar com as informações técnicas. A dimensão dialógica da arquitetura é reforçada. A arquitetura como disciplina coordenadora das disciplinas complementares é definida como diretora das demais disciplinas, sem no entanto se recusar a ser induzida por elas. A analogia constantemente utilizada no Atelier é a da direção do filme, que não só determina, mas se deixa também induzir pelo iluminador, pelo cenógrafo, pelo figurinista, e outros. A estrutura, as instalações, as impermeabilizações são encaradas como um aprimoramento técnico, que efetiva a componente estética do projeto, não havendo contradição entre tectonia e beleza. A beleza está no construído e não no desenhado.









Figura 8: Croquis de explicitação construtiva do sistema de alvenaria armada.





O apoio dos computadores é bem recebido no atelier de desenho do projeto executivo, no entanto suas limitações e distorções são assinaladas no sentido de sensibilizar os alunos de que as complexas relações entre todo e parte são prejudicadas por essa forma de desenhar. E, que o projeto em sua complexidade, desde de suas fases preliminares de concepção envolve uma adequação e compatibilização extrema entre parte e todo, que se mantém importante no executivo. O desenho é encarado como um campo de consciência, aonde aquilo que não é desenhado não pode ser pensado e decidido, a representação do problema e do contexto precisa ser alinhavado para ser enfrentado. O processo de projeto é encarado como o cotejamento de hipóteses de desenho aonde só é possível ter uma escolha consciente na medida em que comparamos as opções. O fenômeno do raciocínio projetual é uma reflexão sobre uma série de escolhas que se demonstram coerentes entre si desde o início. Daí a importância de reforço sobre a dimensão autoral do projeto, que ao se identificar com uma expressão auto biográfica, se aproxima da arte e ao mesmo tempo da objetividade construtiva. São constantemente reforçados, no âmbito do atelier a importância do desenvolvimento do olhar, para soluções de detalhe consagradas pelo uso, enfatizando a dimensão de patrimônio de bem comum construído a partir das condições das intempéries no contexto da cidade do Rio de Janeiro, e das experiências pretéritas. A coleta e classificação das soluções de detalhe, a partir do olhar e da pesquisa dos alunos é uma dimensão constante, aonde a capacidade da edificação de resistir ao tempo é enfatizada e reforçada.


5.    Conclusões preliminares:

A partir desses apontamentos iniciais sobre o ensino do Projeto Executivo é possível inferir algumas questões para o impulsionamento e aprofundamento da formação no ofício de arquitetura e urbanismo.

·         A compreensão do projeto como uma forma propositiva de abordagem do real, recoloca a dimensão crítica desse instrumento para a sociedade, que na verdade pode utilizá-lo para pré figurar outras condições da forma inercial de reprodução histórica da cidade brasileira

·         A atual condição de reprodução da cidade brasileira nos confronta com um horizonte de exclusão continuada de amplas parcelas da população brasileira, incitar os alunos a refletir sobre essa condição transforma o atelier de projeto, dando-lhe uma dimensão crítica, que intensifica o envolvimento dos alunos.

·         A eleição dos terrenos por parte dos alunos, a partir de premissas locacionais inseridas em contextos centrais, traz uma dinâmica de macro crítica a cidade brasileira, que também aumenta o envolvimento dos alunos.

·         O fornecimento das plantas padrão abrevia o processo de concepção do objeto, dando-lhe um caráter de reunião e composição de elementos pré concebidos, permitindo uma definição rápida do objeto a ser construído, e não retirando dos alunos seu desejo de expressão auto biográfica.

·         O entendimento do desenho a partir de computadores como uma ferramenta de otimização das reproduções e repetições do projeto pretende afastar uma certa fetichização desse instrumental, que hoje povoa o senso comum das escolas de arquitetura.

·         O exercício quer reforçar o compromisso com o objeto efetivo e construído, entendendo o desenho como instrumento indutor e participante, mas como representação do mundo real, que deve ser sua referência.

·         Uma certa autonomização dos desenhos através das Tecnologias de Informação e Comunicação (TICs) com relação ao canteiro de obras é um fato no mundo contemporâneo, que seduziu fortemente as novas gerações. A crítica a essa condição é fundamento do atelier de projeto também.





1 TAFURI 1979 página ... Há uma clara analogia nesse autor entre a projetação e a crítica, entendida essa última como consciência da direção tomada pela história, a partir das iniciativas humanas. A definição do projeto como teoria crítica e operativa está nesse livro.

2[i] A categoria de envolvimento emotivo efetivo no projeto, desenvolvida por ROSSI ... no livro Auto biografia científica desenvolve a ideia de objetividade científica e expressão pessoal na fenomenologia do projeto, ítem considerado essencial para o envolvimento entusiasmado do arquiteto ou aluno com a disciplina e o conteúdo.

3[i] A referência para essa história americana é dada por TOTA, Antonio Pedro – Os americanos – Editora Contexto São Paulo 2009

 6. Referências:

BRANDÃO, Carlos Antonio Leite Brandão – A formação do homem moderno vista através da arquitetura – editora Ap Cultural 1991 Belo Horizonte.
FRAMPTON, Keneth – História Crítica da Arquitetura Moderna – Editora Martins Fontes São Paulo 2008
FREIRE, Paulo – A pedagogia do oprimido – Editora Paz e Terra Rio de Janeiro 1970
MARTINEZ, Alfonso Corona – Ensaio sobre o Projeto – Editora da UNB Brasília 2000, 200 páginas
MOREIRA, Pedro da Luz – Projeto, Ideologia e Hegemonia, em busca de uma conceituação operativa para as cidades brasileira – Tese de Doutorado apresentada no PROURB em 2007
ROLNIK, Raquel – Guerra dos Lugares: a colonização da terra e da moradia na era das finanças – Boitempo São Paulo 2015
ROSSI, Aldo – A arquitetura da cidade – Editora Martins Fontes São Paulo 1995
ROSSI, Aldo – Para uma arquitetctura de tendência, escritos 1956-1972 – Editorial Gustavo Gilli Barcelona 1977
ROSSI, Aldo – Autobiografia científica – Editorial Gustavo Gilli Barcelona 1984
SANTOS, Carlos Nelson Ferreira – A cidade como um jogo de cartas – EDUFF Niterói 1988
TAFURI, Manfredo - Teorias e História da Arquitetura - editorial Presença Lisboa 1979
TAFURI, Manfredo – The Sphere and the Labyrinth, avant-gardes and architecture from Piranesi to the 1970,s – MIT Press Bosto 1987
TOTA, Antonio Pedro – Os Americanos – Editora Contexto São Paulo 2009