quarta-feira, 6 de janeiro de 2016

Responsabilidade Fiscal, Irresponsabilidade Social e a Questão da Habitação

Ausência de políticas públicas no setor da habitação
impulsionam processos especulativos
A pauta da mídia brasileira não muda de assunto envolvendo sempre o equilíbrio entre arrecadação e gastos públicos, a responsabilidade fiscal, enfim, as pedaladas fiscais que são panfletadas como principal motivo para o impedimento da presidente. Constantemente se faz uma analogia entre o governo e os gastos domésticos, reafirmando-se a integridade orçamentária da dona de casa, que mantém seus gastos dentro de seu orçamento, enquanto que o Estado gasta mais do que arrecada. As virtudes de uma contabilidade familiar austera são celebradas, em contraposição a despesas perdulárias e descontroladas do governo, que só pensa em aumentar sua arrecadação via aumento de impostos. Me parece, que há uma simplificação interessada nesse posicionamento recorrente.

Na verdade, não é bem assim, ou melhor historicamente não foi sempre assim, havendo um tempo relativamente recente em que os gastos públicos eram encarados como importante fator para reverter tendências inerciais do capitalismo, evitando recessões cíclicas. Durante o segundo pós guerra, as democracias ocidentais mais desenvolvidas implantaram o que se convencionou chamar de Estado de Bem Estar Social, que atuava a partir de investimentos públicos em infraestruturas e benfeitorias sociais acabando por reverter tendências cíclicas depressivas da iniciativa privada. Cabe ainda enfatizar que durante esse periodo, de 1945 a 1970, o sistema capitalista distribuiu renda e apresentou crescimento constante, sem as crises recorrentes.

Mas, segundo dados do Banco Central o endividamento das famílias no Brasil não anda assim tão austero, tendo crescido muito, comprometendo quase 46,3% da sua renda em abril de 2015, quase a metade dos recebimentos domésticos. Grande parte dessa dívida é consequência do crédito habitacional, que ao ser retirado da conta faz essa média descer para apenas 27,94%, o que demonstra de forma inequívoca que é a compra da casa própria que rompe o equilíbrio orçamentário. Tais dados nos levam para uma reflexão sobre a capacidade de regulação dos governos sobre o preço da terra urbana no Brasil e no Mundo, e o debate sobre a financeirização geral da moradia, a partir da hegemonia neo-liberal. E, aqui parece que a simplificação interessada de parte da mídia começa a ser demonstrada, pois a interconectividade entre orçamentos público e privado é cada vez maior no mundo globalizado dominado pela ideia neo-liberal.

Tal hegemonia vem sendo construída no mundo, a partir dos governos da primeira ministra britânica Margareth Thatcher em 1979, e do presidente norte americano Ronald Reagan em 1980, que iniciam o esforço de adequação da produção e da manutenção da moradia social à lógica do mercado de serviços financeiros, com o argumento de equilibrar o orçamento público. E, essa atitude ainda se mantém dominante, apesar da recorrente sucessão de crises financeiras que passam a assolar o mundo, chegando ao ápice com a crise das hipotecas subprime de 2008 nos Estado Unidos, que levou a bancarrota instituições de crédito e de seguros da nação mais poderosa economicamente, gerando uma enorme insegurança, da qual o mundo ainda não se livrou.

O fato é que tal atitude e alinhamento ideológico acaba determinando como consequência inevitável uma sobre valorização da terra urbana, que atinge até países com ampla tradição de atuação pública para regulação do preço da terra, como a Holanda ou a Inglaterra. Segundo o Bauco Nacional da Holanda "no final dos anos 1990, metade do crescimento econômico do país teria se dado em função do aumento do valor da home equity e não do crescimento real." ROLNIK 2015 página72. Na Inglaterra, entre os anos de 1981 e 2012 o número de famílias locatárias, que migrou do setor social para o privado foi de 1,9 milhão. ROLNIK 2015 página50

Há muito que economistas e especialistas advertem, que se a propriedade privada do solo fosse socializada, desapareceria a dedução do lucro representada pela renda da terra, mas o capitalismo não só continuaria existindo, mas inclusive se fortaleceria. Pois o lucro imobiliário ou financeiro quando muito incrementado rouba recursos e energias da acumulação de capital investido na produção. O "capital" imobiliário é, portanto, um falso capital SINGER 1973 página65.

Efetivamente, o capital imobiliário e o capital financeiro possuem tendências especulativas claras, podendo ser conceituados como um valor, que se valoriza, mas a origem de sua valorização pode não ser uma atividade produtiva efetiva, mas a monopolização do acesso a uma condição indispensável àquela atividade, posse da terra ou posse de moeda. Esse caráter da propriedade imobiliária ou de ativos financeiros na economia capitalista não aparece de imediato, porque eles raramente se apresentam em sua forma "pura", ou seja, como propriedade de uma extensão de solo urbano, ou como base monetária intocadas por atividades humanas.

Na verdade, o modelo de financeirização da casa própria determina uma sobre valorização do mercado da terra no mundo todo, fazendo com que somas expressivas de capitais abandonem atividades produtivas, para se dedicar a especulação. O crítico literário inglês Frederic Jameson já havia identificado, que a terra e o dinheiro haviam deixado de ser meios, para passarem a ser fins em si mesmos, na nossa sociedade contemporânea.

"A relação entre valor real e final do objeto e sua representação por uma ação perdeu toda estabilidade. Isso mostra claramente a flexibilidade absoluta dessa forma de valor, uma forma que os objetos ganharam através do dinheiro e que os separou completamente de sua base real." JAMESON 2001 página178

Me parece cada vez mais claro, que a cidadania só pode ser alcançada na medida em que for garantido o direito a todos de habitar na cidade, essa responsabilidade social não pode ser suplantada pelo controle fiscal. O cidadão quando passa a ser encarado, como um mero consumidor ou tonador de crédito dispara um processo especulativo incontrolado, que transforma o meio em um fim em si mesmo. Portanto, a questão da habitação urbana para todos é responsabilidade de toda sociedade interessada em contar com cidadãos efetivos.

BIBLIOGRAFIA:
JAMESON, Frederic - A cultura do Dinheiro, ensaios sobre a globalização especificamente o ensaio O tijolo e o Balão: arquitetura, idealismo e especulação imobiliária - Editora Vozes Petrópolis 2001
 ROLNIK, Raquel - Guerra dos Lugares: a colonização da terra e da moradia na era das finanças - Editora Boitempo São Paulo 2015
SINGER, Paul - Economia Política da Urbanização - São Paulo: Brasiliense, 1973