segunda-feira, 27 de abril de 2020

ESCLARECIMENTO E BARBÁRIE, DEMOCRACIA E BOLSONARISMO

Nesses dias de pandemia do Covid-19 e de isolamento social voltei me para um livro A Dialética do Esclarecimento, fragmentos filosóficos de Theodor Adorno (1903-1969) e Max Horkheimer (1895-1973), que já tinha lido no começo da década de oitenta, quando viviamos o final da Ditadura no Brasil, no modo lento, gradual e seguro. Esse texto já foi comentado aqui no blog em 04 de maio de 2016, e o link é: http://arquiteturacidadeprojeto.blogspot.com/2016/08/a-dialetica-do-esclarecimento.html . Mas naqueles tempos, incentivado pelo meu pai, que talvez enxergasse naquele filho, um aguerrido combatente anti militarista, uma automática conexão mecânica, redutora e dogmática entre modernidade e consciência esclarecedora. E, realmente havia naquele jovem de vinte e poucos anos, uma crença de que a redemocratização do país traria de forma inevitável, uma imensa ampliação do esclarecimento de sua população. Ainda não haviam ocorrido as frustrações; com a perda da Emenda pelas Diretas Já (1983-84), a derrota eleitoral de Lula no segundo turno para Fernando Collor de Mello (1989), as subsequentes derrotas eleitorais para um governo dito social democrata, mas na verdade neo liberal e conservador, como o de Fernando Henrique Cardoso (1994 e 1998). Enfim, ainda havia em mim uma crença juvenil, de que o término da Ditadura representaria a redenção dos problemas do país, que finalmente se voltaria para um desenvolvimento com maior equidade. Logo no seu prefácio, o questionamentos dos autores explicitava de forma escancarada uma propensão ainda não realizada, aqui no Brasil, mas também no resto do mundo;

"O que nos propuséramos, era de fato, nada menos do que descobrir por que a humanidade, em vez de entrar em um estado verdadeiramente humano, está se afundando em uma nova espécie de barbárie. Subestimamos as dificuldades da exposição porque ainda tínhamos uma excessiva confiança na consciência do momento presente." ADORNO  e HORKHEIMER 1985 página11

Interessante assinalar, que o livro foi lançado pelos dois filósofos da Escola de Frankfurt, Adorno e Horkheimer em 1947, ainda exilados na costa oeste dos EUA, de certa forma envoltos pela enorme ampliação e difusão da indústria cultural de massas Estadounidense. A versão que li no sítio de meu pai em Caeté Minas Gerais, nas férias de um inverno frio de julho no começo dos anos oitenta, entre um semestre e outro de minha graduação na FAU-UFRJ, continua lá perto em BH, ou deve ter migrado para Okhlahoma, com meu irmão mais novo. A versão, que agora utilizo comprei-a em 2002 num sebo carioca, e utilizei a de forma periférica em minha tese de doutorado, Projeto, Ideologia e Hegemonia; em busca de uma conceituação operativa para a cidade brasileira, que escrevi em 2007 no PROURB na mesma FAU-UFRJ. Nessa ocasião da elaboração de minha tese releguei o livro, por considerá-lo excessivamente pessimista com relação ao operativo, ou ao projeto, duas dimensões de certa forma caudatárias do otimismo, e presentes em minha reflexão. De uma maneira geral, o livro segue envolto num pessimismo avassalador, principalmente no que se refere a indústria cultural de massas, que em seu tempo eram notadas no cinema, na música e no rádio. Mas, na Dialética do Esclarecimento, segundo os próprios autores, na sua formulação ainda manuscrita já anteviam o fim do terror nacional-socialista de Hitler, na Alemanha, que os tinha levado ao exílio. O livro na verdade foi também segundo os mesmos escritores reeditado em Frankfurt em 1969, tendo muito poucas mudanças em seu conteúdo efetivo, pela permanência da presença do que denominam por mundo administrado.

"Atualizar todo o texto teria significado nada menos do que um novo livro. A ideia de que hoje importa mais conservar a liberdade, ampliá-la e desdobrá-la, em vez de acelerar, ainda que indiretamente, a marcha em direção ao mundo administrado, é algo que também exprimimos em nossos escritos ulteriores... Semelhante reserva transforma o livro numa documentação; temos  a esperança de que seja, ao mesmo tempo, mais do que isso." ADORNO e HORKHEIMER 1985 página10

Minha edição, agora utilizada, é a da tradução de Guido Antonio de Almeida, dessa versão de 1969, que intitula o livro como, Dialética do Esclarecimento, e não mais como, Dialética do Iluminismo, que era a versão de meu pai, se não me falha a memória. É típica, do período do segundo pós guerra, a crítica ao iluminismo, ao esclarecimento e ao mundo administrado, racionalizado e burocratizado, indo de Foulcault a Marcuse, passando por Sartre e outros, sobre os controles totalitários da era moderna, na qual a Dialética do Esclarecimento, também se encaixa. Mas elas, não podiam prever, e nem poderiam, os enormes retrocessos impostos mesmo às democracias centrais do capitalismo, com a emergência da ideologia neo liberal, que foi conquistando o mundo a partir de Thatcher e Reagan, no mesmo começo dos anos oitenta. De qualquer forma, agora é interessante assinalar essa confluência inusitada entre um mundo que criticava as atrocidades do nazismo e identificava a permanência das instâncias de controle e administração, no primeiro pós segunda guerra, mas que ainda não tinha vivido os terríveis retrocessos nos ganhos sociais, que as democracias centrais iriam ser atingidas pelos fundamentalistas do mercado.

"Na Alemanha, o nazismo fora eleito determinando a perseguição aos judeus e aos intelectuais de esquerda, na União Soviética, Stalin havia assumido o controle do Partido Comunista calando vozes de diversos opositores. Mesmo nos EUA e na Califórnia, distantes das terríveis convulsões da Europa se iniciava a perseguição aos comunistas, que impuseram aos dois filósofos alemães uma série de constrangimentos. Consta, que Adorno, que não possuía o visto americano permanente, não podia se afastar mais de cinco quilômetros da Universidade e de sua casa, sem comunicar a polícia da Califórnia, o que já denotava o surgimento do Macartismo." MOREIRA 2016 disponível em http://arquiteturacidadeprojeto.blogspot.com/2016/08/a-dialetica-do-esclarecimento.html, coletado em abril de 2020


E, no contexto do Brasil, nos anos sessenta aonde o controle administrativo do Estado pela Ditadura Militar é operado não para promover o Bem Estar Social, dos países centrais, mas o achatamento salarial das classes populares, que adequava o desenvolvimento do país aos ditames das corporações internacionais e o crescimento de uma concentração de renda inusitada. E, em seguida se mantém na adequação de forma subalterna, colonizada e acrítica ao modelo dos fundamentalistas do mercado, nos governos de Sarney, Collor e FHC. E, logo após, vai usufruir de um intervalo de reformismo conservador, a partir de 2002, dos governos Lula e Dilma, aonde apesar do alinhamento social mais a esquerda, permanecem no campo da macro economia, os posicionamentos de celebração da concorrência e declínio da solidariedade, típicos do neo liberalismo hegemônico. Chegando em 2016 e 2018, aos conhecidos retrocessos dos governos de Temer e Bolsonaro, aonde ressurge uma mentalidade de desmonte do Estado, celebração do autoritarismo e alinhamento unilateral celebrando a ordem concorrencial de forma fundamentalista. Tais posicionamentos se confrontam com as condições de planejamento frente a pandemia do Covid-19, que estão demandando maior presença dos hospitais públicos, do SUS, e portanto do Estado brasileiro. Enfim, é sobre esse prisma que o livro é reencontrado, sobre a perspectiva de que a crítica contida no livro se refere a um Estado de bem estar social, que já abandonamos, e que de certa forma pode parecer para os tempos atuais uma representação mais civilizatória do que a que usufruímos hoje. E, principalmente frente aos retrocessos do Estado no Brasil contemporâneo produzidos por governos conservadores pró mercado, anti-estatais e com claros autoritarismos.

"O livro é composto por um breve Prefácio, que sistematiza a ideia de esclarecimento como destruidor dos mitos e ritos explicadores e instrumentador de uma ciência desmemorizada, simplificadora e unilateral. Seguido por O conceito de Esclarecimento, no qual a razão instrumental e tecnológica é vista como legitimadora da dominação e do poder sobre a natureza ou outros seres humanos, que passam a ser objetivados. Seguido por dois excursos, um sobre o mito de Ulisses na Odisséia grega - Excurso I: Ulisses ou Mito e Esclarecimento - visto como um testemunho precoce da civilização burguesa, onde sacrifício e renúncia prenunciam o domínio total da natureza humana e não-humana. E, o segundo excurso sobre Kant, Sade e Nietzche - Excurso II: Juliete ou Esclarecimento e Moral - onde emerge um sujeito autocrático, que descamba para uma objetividade cega, não admitindo mais o contraditório. Após esses dois excursos, que segundo alguns dicionários tem como significado; desvio, digressão, divagação, ou desvio do tema principal; seguem-se dois capítulos; A industria cultural e Elementos do Anti-semitismo, que são seguidos por Notas e Esboços, que anunciam pesquisas futuras. Por essa estrutura, o livro denota uma certa processualidade inconclusa, ou uma perplexidade diante da transformação do esclarecimento em barbárie, a sombra do nazismo e de suas atrocidades domina a reflexão, sinalizando que o aumento do consumo de bens materiais não elevou o padrão da sociabilidade.

"Numa situação injusta, a impotência e a dirigibilidade da massa aumentam com a quantidade de bens a ela destinados. A elevação do padrão de vida das classes inferiores materialmente considerável e socialmente lastimável, reflete-se na difusão hipócrita do espírito." ADORNO e HORKHEIMER 1985 página14 MOREIRA 2016 disponível em http://arquiteturacidadeprojeto.blogspot.com/2016/08/a-dialetica-do-esclarecimento.html, coletado em abril de 2020 

No agora distante século XVII, Kant formulou a máxima, "sapere aude", ou "ousa saber", projetando uma enorme expectativa na ampliação e disseminação do conhecimento e da ciência pelos seres humanos, que significaria sua redenção de todas as dominações e arbitrariedades. Uma promessa, que partia de sua definição do termo em alemão, Aufklärung, literalmente Esclarecimento, como um processo de superação da ignorância e da preguiça de pensar por conta própria, a partir da qual, se alcançaria uma maioridade consciente, afastando dominações e as relações de subalternidade. Tal superação libertadora viria da informação, que se generalizaria, impedindo todas as formas de dominação, inclusive de superiores hierárquicos como governantes, padres, poderosos e endinheirados. Realmente, o iluminismo varreu o mundo, com suas revoluções, o repúdio a colonização, o desenvolvimento da imprensa livre e vigilante, gerando um certo desencantamento do mundo, que se projetou em amplas direções. Mas, o livro em seu ensaísmo inacabado traz nos uma dimensão que ronda perigosamente a mesma ampliação da consciência, a expansão perversa de uma maioria silenciosa, que se sente órfã do mito e do encantamento da dominação mais torpe. A manipulação da informação, a disseminação do medo traz a eleição de trincheiras falsas e escamoteadas, que o desencantamento do mundo produz, como o anti-semitismo do nazismo, ou a luta anti-Ptista ou anti-corrupção do bolsonarismo captam essa insegurança que se dissemina fazendo as pessoas se apegarem a mitos simplificadores. O discurso anti-intelectual, anti-esquerdista, anti-libertinagem, anti-mudança do status quo, com forte conotação hierarquizante de fortalecimento da identificação do líder, como um mito, que desdenha das práticas democráticas dos acordos episódicos e estratégicos.

Ulisses amarrado ao mastro do navio, com os
remadores sem ouvir canto das sereias resiste

o assédio das sereias
"Uma das construções mais fundamentais do livro é a manipulação do duodécimo canto da Odisséia de Homero, quando é descrito o encontro de Ulisses com o mar das Sereias, durante sua longa viagem de volta à Itáca, após a vitória sobre a cidade de Tróia. Ulisses determina que seus companheiros na nau remem com todas as suas forças, e tenham seus ouvidos tamponados, evitando que ouçam os cantos das sereias. Ao mesmo tempo, se amarra ao mastro central da nave, pois quer ouvir, mas não quer se deixar levar pela sua sedução. Segundo Adorno e Horkheimer, esse entrelaçamento de mito, dominação e trabalho irá pelo sofrimento promover a emancipação, fazendo uma analogia com a obstinação dos burgueses, que recusavam a felicidade e o prazer em nome da ampliação de seu poderio. A arte quando não inserida na vida cotidiana tende a uma fruição regulada e neutralizada, onde a contemplação passiva se separa dos objetos assumindo um caráter de idolatria alienada, negando sua potência de conhecimento e auto-esclarecimento. Ulisses acaba suplicando a seus companheiros, que o soltem das amarras para se reunir ao belo canto das sereias, mas esses seguem remando, indiferentes e alienados. Há aqui uma clara identificação da arte com o prazer, o rito e o mito, que pela divisão social do trabalho guarda apenas para o senhor ou o líder a possibilidade exclusiva de sua fruição e deleite. A reprodução da vida do senhor, ou do líder é garantida pela distribuição das tarefas, não havendo possibilidades de escape do papel social pré-determinado, força física e repetição das remadas salvam e ao mesmo tempo mantém preso a Ulisses, que representa o espectador passivo e separado da beleza." MOREIRA 2016 disponível em http://arquiteturacidadeprojeto.blogspot.com/2016/08/a-dialetica-do-esclarecimento.html, coletado em abril de 2020 

"Aquilo que acontece a todos por obra e graça de poucos realiza-se sempre como a subjulgação dos indivíduos por muitos: a opressão da sociedade tem sempre o caráter da opressão por uma coletividade...As medidas tomadas por Ulisses quando seu navio se aproxima das Sereias pressagiam alegoricamente a dialética do esclarecimento." ADORNO e HORKHEIMER 1985 página35 e página45

Enfim, diante de um mundo talvez menos desencantado, mas certamente sobrecarregado de informações e de mensagens, igualmente manipuladoras produzidas pela ampliação e disseminação das Tecnologias de Informação e Comunicação (TICs) contemporâneos, aonde a qualquer momento podemos todos ser captados pela submissão ao mito emburrecedor, pelo medo. Aonde após uma sucessão de governos federais dominados por um reformismo conservador, que pela primeira vez gerou desenvolvimento com melhor performance na divisão de renda, houve um retrocesso em direção ao autoritarismo. Uma contemporaneidade no Brasil, envolta num espectro evangélico conservador, aonde a justiça atende apenas aos milicianos e poderosos, a educação pública quer ser doutrinada pelo discurso da eficiência da propriedade privada, a saúde privilegia os planos privados, a macro economia se alinha com rentistas especuladores e as Relações Internacionais são pautadas pela submissão às determinações dos EUA. São fundamentais as perguntas do livro; porque a barbárie, o ofuscamento e a regressão nos alcançam de forma recorrente, ao invés das luzes, da auto-consciência, e do esclarecimento, num mundo sobrecarregado de informação? Aonde germinou a celebração de um retorno ao autoritarismo da Ditadura Militar? Nas manifestações de 2013? Nas falas do impedimento da presidenta Dilma, em 2015? Adorno e Horkheimer, indignados com a regressão nazista da Alemanha em 1930, que acomete o país mais alfabetizado da Europa de então, nos trazem um depoimento sobre os paradoxos da ampliação do iluminismo, com uma certa perplexidade. Um discurso, aberto e interminado de dois filósofos do Instituto de Estudos Sociais, a Escola de Frankfurt, que não está alinhado com o comunismo de Estado da União Soviética, e que nos trazem uma crítica que ainda opera em nossa contemporaneidade. Na qual, o medo desempenha papel fundamental, quando parece que os homens se deram conta da sua finitude perante a natureza e da massacrante sociedade individualista burguesa, aonde todos lutam contra todos. De certa forma, esperam que, a qualquer momento o mundo complexo sem saída da naturalização concorrencial a todo custo seja incendiado, por uma totalidade que eles próprios constituem e sobre a qual não tem mais controle.

"O horror mítico do esclarecimento tem por objeto o mito. Ele não o descobre meramente em conceitos e palavras não aclarados, como presume a crítica da linguagem, mas em toda manifestação humana que não se situe no quadro teleológico da autoconservação. A frase de Spinoza: "Conatus sese conservandi primun et unicum virtutis est fundamentum." "O esforço para se conservar a si mesmo é o primeiro e único fundamento da virtude " contem a verdadeira máxima de toda a civilização ocidental, onde vem se aquietar as diferenças religiosas e filosóficas da burguesia. O eu que, após o extermínio metódico de todos os vestígios naturais como algo mitológico, não queria mais ser nem corpo, nem sangue, nem alma e nem mesmo um eu natural, constituiu, sublimado num sujeito transcendental ou lógico, o ponto de referência da razão, a instância legisladora da ação. Segundo o juízo do esclarecimento, bem como o do protestantismo, quem se abandona imediatamente à vida sem relação racional com a auto-conservação regride à pré-história." ADORNO e HORKHEIMER 1985 página41

Há uma certa analogia ou simetria entre Alemanha e Brasil na história do capitalismo mundial, como Estados nacionais que se constituem de forma tardia como estruturas articuladas ao sistema econômico concorrencial. A Alemanha se constitui como Estado Nacional entre os anos de 1866 e 1871, tardiamente com relação a Inglaterra, França e EUA, e tentará compensar isso com uma maior presença na  economia desse mesmo Estado. Há aí, a presença de um certo autoritarismo prussiano, que é o reino que promove sua unificação, mantendo sempre uma certa beligerância com relação aos Estados mais liberais da França e da Inglaterra, que eram sua proximidade imediata. Com o intuito de impor a supremacia prussiana sobre a nova Alemanha, Bismarck decidiu em 1871 fazer o rei da Prússia se tornar imperador, e que esse título lhe fosse oferecido pelos príncipes dos diversos reinos, e não viesse do Bundestag, como proposto em 1849 (1). O militarismo prussiano é um fato que marcará a história alemã como uma premissa que determina a subserviência incondicional do cidadão às determinações do Estado, tão cultuada pelos militares brasileiros. A historiadora Marin Kitchem menciona em seu livro, História da Alemanha Moderna, de 1800 aos dias de hoje;

"A coroação ocorreu no Salão dos Espelhos em Versalhes...O que mais chamava atenção era a ausência de parlamentares e civis. O Reich de sangue e ferro foi proclamado pelos militares, pelos príncipes e pela antiga elite, todos comprimidos em uniformes militares adornados com as medalhas de um exército vitorioso." segundo KITCHEN 2013 página 160 e 161 

O Brasil se constitui como Estado Nacional, com sua independência em 1822, também formando um Império monárquico, governado pelo filho do rei de Portugal, diferentemente de todos os seus vizinhos, que articulam suas libertações da metrópole espanhola, a partir de sistemas democráticos. Por outro lado, também permanecerá na margem da economia capitalista, pois mantém se centrado num escravagismo arcaico e retrógrado, o que lhe confere um posicionamento subalterno nesse sistema geral do mundo, como fornecedor de matérias primárias como café e açúcar, e sem mercado interno relevante. Logo também, com a proclamação da república, logo após a supressão da escravidão, o exército brasileiro assume uma posição central na política brasileira que não abandonará mais, enfatizando os componentes autoritários, conservadores e retrógrados do Estado. Além disso tudo, o exército brasileiro é profundamente marcado pela filosofia positivista de Augusto Conte, com um condicionamento lógico que absolutiza o conhecimento científico, dando lhe uma exclusividade na explicação dos fenômenos. Importante salientar, que Kant na sua caracterização do saber envolvia a reunião num sistema ético os diversos conhecimentos isolados. A maioridade kantiana aqui mencionada era justamente a capacidade de se servir do seu entendimento ou razão sem a direção de outrem; líderes políticos, superiores hierárquicos, padres, endinheirados, etc.. De todo modo parece que vivemos na verdade, uma ampliação desmesurada da alienação e da ignorância, a partir da crença emburrecedora de que ao termos acesso a alguma informação, obtida pela internet, nos tornamos propensos a uma pretensão imbecilizante. Ao final, na verdade a razão kantiana envolve a ética de que quanto mais estudamos, mais ganhamos consciência de nossa própria ignorância, e desenvolvemos uma certa modéstia esclarecedora, que nos permite ouvir o contarditório.

"... já se observou que a atitude de Adorno em relação ao iluminismo, também é, no fundo, ambivalente: uma tensão entre a apologia do espírito crítico, inseparável da negatividade libertadora, e a denúncia do imperialismo da razão tecnológica. A razão tecnológica, de instrumento à disposição do homem, se transforma numa investida tirânica contra a natureza, e contra o próprio homem. O instrumento, elevado a finalidade suprema, passa a usurpar os verdadeiros fins, esquecidos e ausentes. Com Adorno e Horkheimer, a crítica iluminista se desdobra em desconfiança quanto ao próprio iluminismo. A experiência do nazismo demonstrara quanto a razão pode ser inútil diante das forças da barbárie; o exílio nos Estados Unidos acabaria de persuadir os professores de Frankfurt, europeus enojados pelos aspectos imbecilizantes da sociedade de massa, da irracionalidade da razão tecnológica." MERCHIOR 1987 página 49 e 50

A crise na qual estamos inseridos é de extrema gravidade, a imbecialização dos seguidores cegos do autoritarismo, seja de Hitler ou de Bolsonaro demonstra como a barbárie vem se ampliando, apesar do enorme acesso às informações que desfrutamos. O desenvolvimento das TICs deu nos uma pretensiosa arrogância, que nos afastou da verdadeira ética do esclarecimento, de que a diversidade de posicionamentos é a única possibilidade de nos aproximarmos da verdade. A supremacia em nossa sociedade da razão tecnológica de cunho positivista é simplificadora, absolutizando campos restritos da técnica, que não se comunicam com a ética, única no meu entender capaz de relativizar a arrogância imbecilizante, que se engana imaginando que o autoritarismo nunca o alcançará.

NOTAS:

(1) Bismarck deu uma polpuda quantia ao rei Ludwig da Baviera do fundo guelfo para que esse indicasse Guilherme como futuro imperador da Alemanha. A corrupção é uma característica marcante da sociedade concorrencial, desde sua fundação.

BIBLIOGRAFIA:

ADORNO, Theodor e HORKHEIMER, Max - A Dialética do Esclarecimento, fragmentos filosóficos - Editôra Jorge Zahar Rio de Janeiro 1985

KITCHEN, Marin - História da Alemanha moderna de 1800 aos dias atuais - Cultrix São Paulo 2013

MERQUIOR, José Guilherme - O marxismo ocidental - Editora Nova Fronteira, Rio de Janeiro 1987

MOREIRA, Pedro da Luz - A Dialética do Esclarecimento - disponível em  http://arquiteturacidadeprojeto.blogspot.com/2016/08/a-dialetica-do-esclarecimento.html, coletado em abril de 2020

terça-feira, 21 de abril de 2020

Reflexões sobre o projeto urbano e arquitetônico em favelas, a partir de uma tese de doutorado

Planta do Projeto de urbanização implantado na favela de Parque Royal
Ilha do Governador Rio de Janeiro merece um destaque na tese de
Solange Carvalho
No dia 15 de abril de 2020 participei da banca de doutorado da aluna do PROURB FAU-UFRJ, a arquiteta Solange Carvalho, realizada de forma remota devido a pandemia do Covid-19, junto com outros professores; Pablo Benetti (FAU-UFRJ), Ana Brito (FAU-UFRJ), Guilherme Lassance (FAU-UFRJ) Rosana Denaldi (UFABC-SP), e a antropóloga francesa Alessia di Biase. O título da tese é Entre a Ideia e o Resultado: o papel do projeto no processo de urbanização de uma favela, uma reflexão que parte de meados dos anos noventa e chega até nossa contemporaneidade, problematizando as formas de atuação de arquitetos nas favelas. A Favela de Parque Royal na Ilha do Governador, na cidade do Rio de Janeiro, projeto da Archi5 arquitetos associados é uma personagem importante nessa reflexão, assim como tem sido em outros eventos acadêmicos, como dissertações de mestrado, dentre as quais destaco a de Carolina  Kroff defendida no PPGAU da EAU-UFF em 2018. Na ocasião, fiz uma série de anotações a partir da leitura e da apresentação de Solange Carvalho, que na verdade são apenas manuscritos inacabados, com algumas considerações críticas, que me parecem importante estarem disponíveis para um público mais amplo. As eventuais divergências, que apresento são apenas um registro, que nasce da alta consideração sobre um esforço notável e importante da reflexão de Solange Carvalho para nosso campo, da arquitetura e do urbanismo, na abordagem das favelas. De certa forma, as provocações feitas de forma particular á Solange, aqui se desdobraram em reflexões que foram aprofundadas pelos meus interesses particulares. Principalmente, em suas ações de plano e projeto para a transformação de realidades urbanas precárias, na tentativa de promover sua integração com o restante do tecido urbano e social, temas recorrentes nas cidades do mundo contemporâneo. 

1. A primeira questão é relativa ao campo, da Arquitetura e do Urbanismo, que me parece mau limitado e impreciso particularmente no contexto da Academia, de uma maneira geral, por uma dificuldade inerente ao meio universitário de se aproximar de um reflexão sobre o plano e projeto. Duas operações ou ações conformadoras do campo, que são menos objetivas e mais subjetivas, envolvendo componentes auto biográficos de expressão, que se aproximam do fazer artístico, tanto é assim, que as Escolas de Arquitetura estão estruturadas em torno do fazer empírico do plano e do projeto. E, que são ao meu ver fundamentais para a sua compreensão integral. Há uma dimensão auto biográfica nessas ações, que no meu entender se afastam de uma visão demiúrgica do arquiteto como portador de um traço genial, sintetizador do problema, mas que envolvem a coordenação e a instigação do processo por vários agentes. Como assinalei na minha fala, "o plano e o projeto não são produtos prontos na prateleira", mas são processos de auto esclarecimento, pois qualquer cliente ou arquiteto não sabem exatamente aonde o processo os levará. Invariavelmente, todos os agentes ao iniciar o processo de projeto não sabem definir aonde chegarão, apesar da formulação do programa, dos objetivos, das limitações de orçamento, não sabem aonde serão levados, mas no processo aperfeiçoam suas demandas e suas definições num processo de auto esclarecimento conjunto. Esse tipo de desenvolvimento demanda que todos os agentes estejam horizontalmente habilitados a participar , nas suas diversas responsabilidades e expertises, para poder expressar seus desejos e vontades. Habermas fala na construção da vontade, a partir de uma "racionalidade intersubjetiva", que seria um discurso além da pessoalidade e do personalismo, como se os agentes acessassem uma maioridade cidadã plena, a partir da discussão do seu vir-a-ser, reconhecendo em cada agente a possibilidade de expressão do interesse. Repare, que há uma especial preocupação com as responsabilidades, que precisam ser claramente distribuídas, e que me parece o verdadeiro descuido da Academia, que não consegue definir a atribuição do arquiteto frente o cliente, a favela, o Estado, o governo, a empreiteira, os peões, os grupos de interesse, etc... Habermas também fala da impossibilidade de alcance da "neutralidade axiológica" tão cara a Academia pois diz literalmente que não há conhecimento sem interesse. A neutralidade axiológica significa a dissociação entre fatos e valores, combatendo a ideia enfática do ente interpretativo que sintetiza interesses, desejos e valores, que não só lhe pertencem; 


"Entretanto, se compreendermos sob esse ponto de vista os impulsos e afetos com os quais os homens se envolvem na conexão de interesses através de uma práxis incerta e contingente, então a teoria pura recebe também um novo sentido, que promete precisamente a purificação desses afetos: a contemplação desinteressada assume assim manifestamente o sentido da emancipação. A desvinculação entre conhecimento e interesse não deveria purificar a teoria das perturbações da subjetividade, mas inversamente, submeter o sujeito a uma purificação extática das paixões." HABERMAS 2014 página 185. 

Importante salientar, que teoria para Jürgen Habermas, um membro da Escola de Frankfurt de filosofia é a teoria crítica da cultura, da sociedade, do Estado, do governo, da comunidade, da favela, entendidas como construções humanas, perpassadas por desejos e interesses. De certa forma, é a manutenção daquela ligação platônica entre a pura teoria e a práxis, que o mundo contemporâneo foi separando, impedindo a ligação entre conhecimento e esclarecimento, gerando ao mesmo tempo; um conhecer alienado e uma teoria empostada. Seria como a religação entre a metodologia e a ontologia, que se reconecta pelo sujeito cognoscente, que é disciplinado pela expressão dos interesses, desejos e aspirações de todos, conformando um novo vir-a-ser da comunidade ou da favela. O plano e o projeto são essa prática incerta e contingente, que conecta interesses e desejos, purificando subjetividades pela empatia que se generaliza. Na verdade, há nas ações de plano e projeto, quando comandadas como práxis incertas e contingentes, exatamente o potencial de efetiva realização de um aprofundamento da democracia e alcance da maioridade por parte das favelas e de seus agentes.

2. A segunda provocação que fiz a partir da tese foi sobre a concepção do Estado, que está implícita nela própria, que na minha visão; não pode ser compreendida como a representação da vontade do coletivo, dos interesses gerais e do público, algo que me parece ingênuo. O Estado é sempre a representação dos interesses de grupos sociais concretos, que disputam as narrativas, os discursos e as ideologias, e, que possuem uma visão da favela, da cidade, dos arquitetos, dos empreiteiros, dos servidores públicos, etc...No Programa Favela Bairro, concebido por um grupo, que se articulou no entorno do arquiteto Luiz Paulo Conde havia uma narrativa/ ideologia clara que conferia protagonismo ao projeto e não ao plano, quase como se fossem atitudes discordantes, um mais concreto e palpável, e outro, mais abstrato. Tal atitude, refletia uma certa ansiedade apressada para se atingir uma outra urbanidade para a cidade brasileira, que envolvia um compromisso maior com o tempo de curto prazo, assumindo uma certa incerteza com relação ao longo prazo. A celebração do novo planejamento estratégico envolvia o declínio do plano moderno totalizante, comandado pelo Estado, transferindo essa responsabilidade para setores de pressão organizada da sociedade. Tal atitude estava também profundamente articulada com a emergência do neo liberalismo nos anos noventa, que está abordado mais na frente, e que também reafirmava de forma celebratória a autonomia da cidade, frente a políticas mais sistêmicas dos Estados Nacionais. 

"Mas desde o início, como Theodor W. Adorno e Max Horkheimer(1) também teorizaram que o racionalismo, era uma mentalidade imediatamente apropriada e transmitida pelo alcance crescente e totalizador do capitalismo. De fato, o capitalismo não era simplesmente um processo de acumulação, mas um entendimento científico da inovação contínua desse sistema, sua revolução incessante de produção, consumo e finanças ...Para Hardt e Negri (2), o capitalismo atingiu um pico de desenvolvimento tal que não precisa mais de legitimidade nacional e se afirma como uma entidade imperial supranacional. No entanto, os mesmos meios que levaram a sua expansão precipitada - desenvolvimento tecnológico, trabalho "imaterial" ou pós-fordista e as técnicas subjugadoras do "biopoder" - também são as características de uma multidão dispersa que oferece uma forma de resistência política a essas entidades." AURELI 2008 página07

Mas, a conquista do governo municipal, no primeiro governo César Maia e no governo que o sucedeu de Luiz Paulo Conde significou a operacionalização de um certo protagonismo do projeto nas políticas públicas. Essa prática, no entanto não conseguiram convencer o conjunto da sociedade de sua relevância e importância para a ampliação da participação democrática na construção da cidade no seu vir-a-ser. Na verdade, o que cabe aqui destacar é a centralidade da importância do convencimento e da persuasão de práticas antecipadoras como o plano e o projeto são fundamentais em nossa contemporaneidade, para a radicalização da nossa democracia. Afinal, recuamos muito após esse momento, retrocedendo a uma luta corporativa redutora e simplista entre Sociologia e Projeto, que me parece uma perversão muito grande, como um anti-esclarecimento. O "componente social" (3) e de certa forma o orçamento passaram a protagonistas por absoluta incapacidade nossa, de arquitetos e urbanistas, de delimitar nosso campo de forma mais precisa. Pois, me parece fundamental reafirmar, que a partir das ações de plano e projeto é que será possível a ampliação e radicalização da democracia no que se refere a construção do nosso vir-a-ser, seja da cidade ou da comunidade.

3. A terceira questão é a espacial, que na tese me parece muitas vezes sub valorada, ou diminuída frente a posições de cunho sociológico reducionistas, como; "estética da pobreza" ou "projeto como registro de um momento" pg61, ou ainda "críticas à ênfase dada por estas políticas às melhorias físicas em detrimento do desenvolvimento econômico e social". Me parecem completamente equivocadas, como se houvesse uma competição entre a morfologia urbana e a social, aonde a espetacularização da primeira significaria um desdém pela segunda. A citação da postura do arquiteto Hector Viglieca com relação ao sistema viário, que segundo ele "deveria ser legível" rompendo com as pré existências me parece segue essa mesma linha. Aliás, Solange Carvalho foi responsável pelo Caderno do Sistema Viário, produzido pelo Programa Morar Carioca, que foi assinado pelas arquitetas, Tatiana Terry, Daniela Engels e a própria, e salvo algum engano meu, não registra uma celebração tão veemente das pré existências da favela, como elementos de celebração identitária a ser mantidos. Embora reconheça, que algumas identitades pré existentes possam ter sido violadas por alguns projetos insensíveis, e essa elegibilidade seja das mais importantes, e um critério para reconhecimento da qualidade da intervenção. No meu entender. o conceito desenvolvido por Kevin Lynch, no livro A Imagem da Cidade, que se refere a "legibilidade" é um valor universal, muito além das políticas atuais de reforço das identidades, do tipo; comunidade, favelas, e etc... 


"a hierarquização do tecido urbano, a circulação coerente com o transporte público, a localização das centralidades e a geografia, sempre subjacente ao solo urbanizado, formam um quarteto de reflexão, conjunto chave para estabelecer uma condição básica de inclusão física. Legibilidade significa precisamente a possibilidade de o indivíduo estabelecer mentalmente o mapa de sua localização no território. O reconhecimento dessa leitura contribui na reconstrução da cidadania, favorecendo a apropriação e a incorporação social e estabelecendo o sentido de lugar. (VIGLIECCA, 2012, p. 94).

Mas qual a largura ideal do sistema viário nas favelas para que se estabeleçam estas relações? Estariam os escopos dos programas de urbanização de favelas imbuídos em orientar projetos desta natureza? As orientações contidas nos escopos parecem indicar, como veremos no capítulo 2, ao contrário da ideia defendida por Vigliecca acima, o equilíbrio entre a preservação da morfologia típica das favelas, que trouxe identidade a estes territórios, e a dotação de melhorias urbanas que não pressupõem a reestruturação do tecido urbano da favela...Projeto é ainda o registro de um momento, um documento que marca um tempo específico, como se congelasse o contexto estudado para a representação de um futuro desejado." CARVALHO 2020 página44 e página61

Enfim, me parece que a questão espacial da cidade no Brasil é a dimensão mais concreta da lógica da super exploração e exclusão existente na sociedade brasileira, enquanto conceitos como classe, estamento ou até grupos sociais são abstratos e difíceis de serem compreendidos pelo conjunto de nossa população. A constituição física de nossa urbanidade é concreta e palpável. A espacialidade das cidades brasileiras é a dimensão mais concreta do plano e projeto de nossas elites para segregar e não incluir parcelas significativas da nossa população. Daí a importância da elaboração de projetos contra hegemônicos, como os de urbanização de favelas, que pretendem mudar a inércia de desenvolvimento da cidade brasileira. Se nos restringirmos ao exemplo do mercado imobiliário percebemos que 30% de nossa população não acessa a produção habitacional, tendo que auto construir sua própria habitação. Se cotejamos os investimentos em infra estrutura percebemos por exemplo o desnível existente entre áreas como São Gonçalo na cidade metropolitana do Rio de Janeiro e os bairros de Copacabana, Ipanema e Leblon, aonde o acabamento da cidade é visível. Se abordamos, os sistemas de mobilidade urbana percebe-se o mesmo projeto perverso de exclusão da imensa maioria de nossa população, condenada a perder seu tempo de vida em deslocamentos pendulares intermináveis. A espetacularização das intervenções urbanísticas e arquitetônicas, que nortearam projetos de requalificação ao longo do mundo, nos anos noventa e na primeira década do século XXI, comandadas pelo capital especulativo financeiro não são análogas as integrações do Favela Bairro, ou dos projetos de urbanização de favelas no terceiro mundo. A exposição na Bienal de Veneza no Pavilhão do Brasil em 2002 das diversas experiências no país, que incluíram Parque Royal e o Complexo do Sapê, e que ganharam o nome pomposo de Favelas up grading (4) são simbolicamente importantes e desmontam anos de indiferença do nosso campo a essas atuações. Não podendo ser qualificadas como estetização da pobreza.

4. Uma quarta questão emerge do debate da tese de Solange Carvalho, a precariedade e subalternidade celebradas como valores de especificidade cultural e impossibilidade de integração ao controle do nosso Estado ou da nossa Constituição Federal. Relegando imensas parcelas da nossa população a uma celebração da marginalidade, num conceito denominado "lógica da favela". Sem dúvida, o projeto de país e nação hegemônico envolve esse represamento a essa acessibilidade de amplas parcelas da nossa população à urbanidade. Sem dúvida, isso não será alcançado apenas com os projetos de urbanização de favelas, que apesar de realizados, não removem o estigma presentes nas concessionárias, na manutenção da urbanidade, na atitude geral e no dia a dia. Mas acho que a proposta não deve reforçar a identidade comunitária, frente a uma identidade societária mais geral, como duas dimensões que não se aproximam. Os termos sociedade e comunidade expressam de maneira emblemática essa contradição em nossa língua, apontando como o discurso sistêmico da macro escala, do conjunto totalizante vem sendo enfraquecido frente a lógica local, da identidade específica da micro escala e do localismo. A crise da modernidade identificada por vários autores é certamente a força motriz dessa tendência, que claramente privilegia o local, frente a lógicas globais estruturantes, que no entanto seguem operando e determinando perversões e dominações. Uma proposição de uma identidade planetária, como o conceito de Multidão de Hardt e Negri, ou a reconstrução do Comum de Dardot e Lacval aparecem aqui como antídoto;

"A privatização e a mercantilização dos elementos vitais para a humanidade e para o planeta estão mais fortes do que nunca. Depois da exploração dos recursos naturais e do trabalho humano, esse processo se acelera e se estende ao conhecimento, à cultura, à saúde, à educação, às comunicações, ao patrimônio genético, aos seres vivos e a suas modificações. O bem estar de todos e a preservação da Terra são sacrificados pelo lucro financeiro de uns poucos. As consequências desse processo são nefastas. Elas são visíveis e notórias: sofrimento e morte dos que não têm acesso a tratamentos patenteados e são negligenciados pelas pesquisas voltadas para o lucro comercial, destruição do meio ambiente e da biodiversidade, aquecimento climático, dependência alimentar dos habitantes dos países pobres, empobrecimento da diversidade cultural, redução do acesso ao conhecimento e à educação em razão do estabelecimento do sistema de propriedade intelectual sobre o conhecimento, impacto nefasto da cultura consumista." FSM Belém, citado em DARDOT e LAVAL 2017 página117

Além disso, o cosmopolitismo kantiano segue sendo um verdadeiro antídoto a essa posição, que me parece excessivamente contaminada pelas políticas identitárias, que são hegemônicas em nossa contemporaneidade. É interessante notar que o filósofo Imanuel Kant nunca saiu de sua cidade natal Konigsberg, na antiga Prussia, atual Russia, mas ele declarava a importância da construção de laços de identidade entre os diferentes povos, culturas e civilizações. E, via essa identidade cosmopolita como didática, na domesticação das dominações, fazendo nos se aperfeiçoar pelo convívio da diferença. È claro que a conceituação compartilhada pela tese de Solange Carvalho que envolve a ideia de "Sul Global", que também abarca essa questão, e com a qual também concordo, principalmente frente a um euro centrismo dominante. A questão me parece muito mais vinculada a um gradiente correto, aonde identidade local e global precisam e devem ser dosadas, para romper a dominação. Sem dúvida, há uma potência nas favelas, na sua resposta a ausência de uma política habitacional estruturada, por parte de nosso Estado. Mas acho que a precariedade e subalternidade não deve ser considerada como independente da lógica do desenvolvimento perverso brasileiro, mas colocado diante da absoluta necessidade de construção de um projeto contra hegemônico para o país, mais inclusivo. Enfim, uma construção de uma identidade mais geral e planetária, que reúna os despossuídos urbanos, que permanecem sendo a maioria em nossa contemporaneidade.

5. Uma quinta questão emerge dessa reflexão, a necessidade de um claro posicionamento, ainda que breve, sobre o neo-liberalismo e suas consequências para a estruturação do Estado, da Sociedade Civil, dos escritórios de arquitetura, dos funcionários públicos, do papel do plano e do projeto. Uma vez, que há no período, dos anos noventa a nossa contemporaneidade, que a tese aborda uma absoluta hegemonia dessa forma de estruturar o nosso pensar. A recorrência de um endemonizamento do Estado, em contraposição a uma celebração da Empresa privada estão aí manifestos e seguem operando sem abalos, apesar das constantes crises e solavancos. Nesse sentido, a estranha pandemia, que agora nos assola parece fazer emergir um outro discurso ou narrativa, aonde a estruturação das ações humanas parecem ganhar argumentos que declinam da ordem competitiva, passando a celebrar uma maior solidariedade. Aguardemos os desdobramentos.

"Este é o ponto principal da questão: como é que, apesar das consequências catastróficas a que nos conduziram as políticas neoliberais, essas políticas são cada vez mais ativas, a ponto de afundar os Estados e as sociedades em crises políticas e retrocessos sociais cada vez mais graves? Como é que, há mais de trinta anos, essas mesmas políticas vem se desenvolvendo e se aprofundando, sem encontrar resistências suficientemente substanciais para coloca-las em cheque? DARDOT e LAVAL 2016 página15


"A sociedade neoliberal em que vivemos é fruto de um processo histórico que não foi integralmente programado por seus pioneiros; os elementos que a compõem reuniram-se pouco a pouco, interagindo uns com os outros, fortalecendo uns aos outros... Na concepção marxista o capitalismo é, antes de tudo, um modo de produção econômico que, como tal, é independente do direito e gera a ordem jurídico-política de que necessita a cada estágio de seu autodesenvolvimento... O inconsciente dos economistas, como diz Foucault, que é na verdade o inconsciente de todo economicismo, seja liberal, seja marxista, é precisamente a instituição, e é justamente a instituição que o neoliberalismo, em particular em sua versão ordoliberal (5), quer reconduzir a uma posição determinante." DARDOT e LAVAL 2016 página25

E, não proclamemos vitória de antemão, pois o sistema vem demonstrando uma enorme capacidade de renovação inusitada, justamente a partir das crises mais dramáticas. Afinal, a crise de 2008 que parecia colocar em cheque a hegemonia do capital financeiro e especulativo representou seu fortalecimento, apesar da ampliação sem precedentes da concentração de renda. Aqui me parece, que a abordagem crítica do neo-liberalismo só será possível na medida em que a ordem concorrencial seja questionada pela solidariedade. E, o Comum,(6) que sempre existiu e sempre existirá resistir ao seu cercamento, principalmente no que se refere aos recursos ecológicos e esgotáveis do planeta, que já sinalizam uma crise ambiental sem precedentes.

6. Uma sexta questão, já abordada, mas de suma importância que seja melhor explicitada é aquela relativa ao localismo e ao pensamento sistêmico no Favela Bairro e na urbanização das favelas, sobre uma ótica mais geral das cidades como um todo. Essa questão, como já mencionado deve ser abordada a partir do Cosmopolitismo Kantiano e da menção ao caso de Medellin na Colômbia, que é mencionado na tese. A superação alcançada pela metrópole de Medellin veio da maior articulação entre urbanização de favelas e interesses, operações, planos e projetos gerais da metrópole e da sociedade como um todo. A referência e o suporte aos problemas e fragilidades de nossas mega metrópoles é fundamental para construção de um plano/projeto, que inclua todos dessa escala, que é a mesma do global, ou do sul global. E, aqui me parece fundamental registrar que um dos motivos maiores do sucesso da política do Favela Bairro, também assinalada por Solange Carvalho, tenha sido justamente a escala de sua operação, que na verdade atuou sobre todo o território do município, de maneira a sinalizar que todo assentamento urbanizável deveria ser enfrentado. O que trouxe a mensagem clara e territorialmente expressa de forma transparente, de que o projeto era para todos e incluía seus diferentes espaços e especificidades.


"Toda cidade é resultado do trabalho e da fantasia dos homens ao longo do tempo. Os espaços são construções coletivas: todos participaram, e participam, de algum modo de sua urdidura. Consolidar uma vida urbana orientada pela equidade e pela inclusão das diferenças é, portanto, um empreendimento amplo, que tem de envolver obrigatoriamente os governos, as instituições e a sociedade civil." CONDE e MAGALHÃES 2004 página 38

Enfim, a escala da metrópole é a mesma da escala global, ou do sul global, e na busca da equidade está presente o cosmopolitismo kantiano das diferenças.

7. Por último, a questão de um certo Positivismo filosófico, que se resguarda de fazer Política, pois perderia sua precisão científica, uma constante em nossas bancas acadêmicas. Há um profundo vínculo no Brasil entre Academia e Positivismo, na sua abordagem da ciência como algo independente da compreensão e do conhecimento socialmente compartilhado. Na Banca, a arguição da professora Ana Brito da tese de Solange Carvalho, como uma "tese militante" fala muito dessa questão, pois qualquer engajamento é percebido como um declínio do cientificismo. Minha fala, que talvez não tenha feito o menor sentido foi de que; "A tese não deve excluir o sujeito pensante.", que é uma máxima também de Kant. Além de uma menção a Revolta da Vacina no Rio de Janeiro em 1906, com as Reformas de Pereira Passos, que parecem foram o embrião da geração da primeira de nossas favelas, e que, envolvia um pseudo embate entre ciência e manifestações políticas, que também não deve ter parecido clara. O livro de Jaime Larry  Benchimol, Pereira Passos, um Hausmann Tropical menciona uma série de historiadores que discordam dessa denominação (Revolta da Vacina), que a mim também me parece tratar se de um outro tipo de rebelião, contra a exclusão recorrente de parcelas significativas de nossa população. O já mencionado, plano e projeto de nossas elites, que nunca procuraram incluir o conjunto de nossa população, pois não se apresentava como compreensível para ela mesma.  

"Havia uma clara vertente autoritária baseada na ciência médica e na salubridade, que se hegemonizava frente a outras narrativas, típica do Positivismo de Auguste Conte. É claro também, que não se trata de corroborar com um anti-cientificismo igualmente limitado e redutor, nem com um relativismo paralisante, mas de uma premissa fundamental de inclusão e promoção de coesão social, possíveis pelo projeto e pela política.

"O engenheiro... é o grande sacerdote e intérprete da natureza. O engenheiro, sempre em contato com a natureza, conhecedor de seu caráter, do seu hábito, chegou pela aplicação de sua força intelectual, a vencê-la e dominar sua força bruta, desviando, corrigindo, dominando sua força bruta, desviando, corrigindo, dominando essa força para servi-lo. A engenharia pode fazer tudo isto; dominando a superfície e as entranhas da terra, as ondas e o fundo dos mares e acaba de transpor os domínios da águia e da andorinha veloz." Saturnino de Brito citado em MOREIRA, F. D. 2010 página 47

"O eixo central da avenida foi inaugurado em 7 de setembro de 1904, em meio a grandes festas, já com serviço de bondes e iluminação elétrica. A derrubada de cerca de 640 prédios rasgara, através da parte mais habitada da cidade, um corredor que ia da prainha ao Passeio Público. Parte dos escombros ainda cobria os lados da avenida, facilitando seu uso para as barricadas. A inauguração se dava diante de um cenário de guerra e de terra arrasada, pouco convincente do ponto de vista celebratório, imagético e simbólico... A demolição dos velhos casarões, àquela altura já quase todos transformados em pensões e cortiços, provocou uma crise de habitação que elevou os aluguéis e pressionou as classes populares para os subúrbios e para cima dos morros que circundam a cidade. A implantação da modernidade no Brasil parecia querer excluir parcelas importantes da sua população, que assim como hoje se sustentam por pequenos biscates e não possuem vínculos fixos de trabalho(7). A modernidade assumia um caráter parcial e não era disponibilizada para todos, combinando aquilo que será a face perversa de nossa modernização incompleta e combinada, que sempre manteve o arcaico, para dele se beneficiar e super explorar." MOREIRA 2020 blog https://arquiteturacidadeprojeto.blogspot.com/ coletado em 20 de abril de 2020 

Aqui me parece fundamental compreender, que uma das formas de operar da ciência é atingir e conquistar a linguagem comum, dos mundos da vida fazendo-se presente no cotidiano e na práxis do cotidiano.

8.Para finalizar, não posso deixar de registrar minha discordância com relação a celebração na tese da especificidade do projeto em favela, pois acredito que não haja projeto genérico, cada experiência projetual é única, e precisa ter como premissa a valorização dessa mesma condição. Os termos de referência, editais e escopos seguem tentando nivelar essa experiência, que na verdade precisa ter sua remuneração modulada e regulada. É claro também, que diante da dinâmica da auto construção presente nas favelas, o projeto precisa declinar do rigor da precisão de suas pré definições, operando a partir de tendências, deixando se contaminar pela imprecisão do plano. Mantendo uma etapa privilegiada, que todo projeto deve ter, que seria a de acompanhamento de obra, aonde as adequações e compatibilizações são realmente realizadas. Mas continuo considerando, que o ensino de arquitetura não deve se pautar por suas temáticas, tais como; favelas, restauro, edificações de saúde, etc.., mas sim pela compreensão genérica do que significa o ato de planejar e projetar. Reconhecendo essas especificidades, mas não tergiversando com relação ao que significa planejar e projetar, atividades humanas essenciais de grande complexidade, que podem nos levar a uma maioridade cidadã.

Enfim, considero que essas formulações foram suscitadas pela profunidade do trabalho de Solange Carvalho, que me parece ter capacidade de ser um marco da revisão crítica do projeto nas favelas, apesar de nossas discordâncias.

NOTAS:

(1) Theodor W. Adorno e Max Hokheimer são também autores alinhados com a Escola de Frankfurt, assim como Jürgen Habermas, que o antecederam na construção da crítica cultural, típica dessa linha filosófica. Os dois autores criticaram fortemente a racionalidade sistêmica do capitalismo tardio, o que contrasta com as posições de Habermas, que de certa forma opera recuperando uma outra razão ligada ao debate e a construção inter subjetiva.

(2) Nichael Hardt e Antonio Negri são autores contemporâneos que criticam as novas formas de operar do capitalismo a partir dos conceitos de Império e Multidão.

(3) Componente Social passou a ser a denominação e a regulação da qualidade e intensidade da participação social nos projetos de urbanização de favelas, na terceira fase do PROAP-Rio, mencionado pela autora, que nas duas primeiras fases estavam subordinadas a coordenação dos escritórios de arquitetura.

(4) Favelas Up Grading é o nome dado a Exposição de Arquitetura da Bienal de Arquitetura de Veneza em 2002, que teve como curadora a arquiteta Elizabeth França, na qual uma série de projetos de urbanização de favelas foram mostrados, inclusive Parque Royal e Complexo do Sapê dos escritório Archi 5 arquitetos associados.

(5) Ordoliberais corrente do neoliberalismo nascida na Alemanha, que sempre deu êmfase a ordem constitucional e procedural. Segundo os mesmos autores citados; "Duas grandes correntes vão se esboçar a partir do Colóquio Walter Lippmann, 1938: a corrente do ordoliberalismo alemão, representada por Walter Eucken e Wilhelm Röpke, e a corrente austro-americana representada por Ludwig von Mises e Friedrich A Hayek." DARDOT e LAVAL 2016 página33

(6) O Comum é o conceito utilizado por DARDOT e LACVAL 2017 para denominar os patrimônios compartilhados de forma conjunta que o capitalismo possui uma certa dificuldade de cercar e privatizar, como os oceanos, as reservas naturais, a água, o patrimônio construído, etc...

(7) É conhecido o fato, e de certa forma folclorizado, de que parte desse precariado começou a criar ratos para conseguir prover seu sustento, uma vez que Oswaldo Cruz institui uma remuneração em dinheiro para quem os entregasse aos Serviços Sanitários da Capital Federal, no seu combate a Peste Bulbônica.

BIBLIOGRAFIA:

AURELI, Vittorio - The Project of Autonomy; politics and architecture within and against Capitalism - Pricenton Architectural Press Nova York 2008

BENCHIMOL, Jaime Larry - Pereira Passos: um Hausmann tropical - Biblioteca Carioca, Rio de Janeiro 1992

CONDE, Luiz Paulo e MAGALHÃES, Sérgio - Favela-Bairro: uma outra história da cidade do Rio de Janeiro -  Editora Vivercidades, Rio de Janeiro:  2004.

DARDOT, Pierre e LAVAL, Christian - A nova razão do mundo, ensaio sobre a sociedade neoliberal - Editora Boitempo, São Paulo 2016


DARDOT, Pierre e LAVAL, Christian - Comum, ensaio sobre a revolução do século XXI - Editora Boitempo, São Paulo 2017 

HABERMAS, Jürgen - Técnica e Ciência como "ideologia" - Editora UNESP São Paulo 2014

CARVALHO, Solange - Entre a Ideia e o Resultado: o papel do projeto no processo de urbanização de uma favela - 363 páginas PROURB Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal do Rio de Janeiro.

LYNCH, Kevin - A Imagem da Cidade - Editôra Martins Fontes São Paulo 1997

MOREIRA, Pedro da Luz - Cidade, moradia, salubridade, consciência, narrativas e pandemia do Covid-19https://arquiteturacidadeprojeto.blogspot.com/ 13 de abril de 2020, coletado em 20 de abril de 2020

KROFF, Carolina - Integração Favela-Cidade Oficial: reflexões mais de duas décadas após o programa Favela-Bairro em Parque Royal, na cidade do Rio de Janeiro -  306 páginas Dissertação (Mestrado em Arquitetura e Urbanismo) – Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo, Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2017.

domingo, 19 de abril de 2020

Haverão mudanças substanciais na forma de operar do mundo depois da Pandemia do Covid-19?

Corona Vírus e a Favela da Rocinha no RJ, recursos e benefícios mau
distribuídos. Até quando?
Em seu artigo de sábado, dia 18 de abril de 2020, o historiador Daniel Aarão Reis fala da distribuição diferenciada no sistema atual de operação do sistema capitalista da dor das pessoas no período e após a Pandemia do Covid-19. Apesar da contaminação pelo Corona Vírus se disseminar sem distinção de classe no tecido social, as previsões apontam para um maior impacto no âmbito das populações precarizadas e fragilizadas do mundo. A fragilidade econômica, social e cultural provavelmente será mais atingida, durante e após a pandemia do Covid-19, pela falta de recursos acumulados e pelas suas condições de existência. A falta de acúmulo de recursos de sustento, a inexistência de condições mínimas de salubridade nos bairros e moradias aonde habita, bem como, a precarização do seu trabalho e das suas condições de auto reprodução serão sentidas antes e depois dessa crise de forma dramática. O artigo se inicia com a descrição de uma prática absolutamente corriqueira, naturalizada, permitida e banal do nosso tempo contemporâneo, que capta as dramáticas diferenças de acessibilidade marcadas entre nós;

"Em artigo sobre a atual pandemia, Nick Paumgarten narrou a história de um capitalista que joga na Bolsa de Valores. O homem é esperto e descreveu sua última proeza. Ao perceber o ritmo de expansão do vírus na China, suspendeu as férias numa estação suíça de esqui, investiu firme em ações de uma fábrica de equipamentos médicos nos Estados Unidos, botou dinheiro em empresas cujas ações subiriam com a disseminação universal da doença, e se mandou para sua casa de campo, bem longe da cidade onde mora. No caminho para o autoconfinamento, comprou o que pôde de máscaras cirúrgicas e luvas para si mesmo e para a família — mulher e três filhos — dois bujões de oxigênio e uma sacola de cloroquina. A salvo, comentou que ficaria feliz e em segurança até o próximo mês de outubro, acompanhando pelo computador a valorização dos investimentos. Até o momento, seu lucro era de 2.000%. Tudo na perfeita paz, dentro da ordem, respeitando a lei." AARÃO REIS 2020 O Globo 18/04/2020 

Realmente os endinheirados, que multiplicam suas fortunas a partir de seus movimentos especulativos, agora caseiros e no isolamento social, da ciranda financeira das bolsas e das moedas, não só não serão impactados, pela atual pandemia, como também podem tirar benefícios polpudos para seus patrimônios. Sem dúvida, segue o articulista, a metáfora repetida pela grande mídia de que, "estamos todos no mesmo barco", não corresponde aos fatos, e não antecipam às possíveis mudanças que porventura terão de ocorrer. Dissimulados argumentam que poderosos foram igualmente atingidos, como o presidente do Santander da Espanha, que morreu acometido pela devastação da pandemia naquele país. Sem dúvida, nem a biologia, nem os desígnios sagrados possuem uma seletividade, que se aproxime da justiça, mas as estatísticas que apesar de manipuladas e recalcadas já estão aí, mostrando sua seletividade, principalmente no número de mortos. Nos EUA, o número de óbitos de afro-americanos é muito maior do que o de brancos, apesar de vários estados da nação mais poderosa do mundo não distinguirem nas suas estatísticas esses dados. O site de informação Nexo Jornal traz os seguintes dados;

"Vários estados e cidades americanas têm reportado uma desproporção de mortes afro-americanas devido à covid-19, doença causada pelo vírus. Na Louisiana, elas equivalem a 70% de todas as mortes, embora só 33% da população do estado seja negra. No Alabama, negros são 44% das mortes e 26% do total de habitantes. Na cidade de Chicago, 68% das mortes pelo vírus são de afro-americanos, sendo que eles perfazem 30% da população. As estatísticas são preliminares porque a maioria das cidades e estados americanos não inclui informações sobre raça." NEXO Jornal 15/04/2020

Impressionante perceber como em 2008, com a Crise cíclica do capitalismo, que foi mais dramática no mercado imobiliário dos EUA e da Espanha, como o mundo parece não ter percebido sua política necrófila. Aonde o acúmulo de riqueza por uma minoria, ampliava como consequência um número de precarizados pelo mundo de forma exponencial. Naquela ocasião, mais uma vez o sistema socializou as perdas e privatizou os lucros, seguindo com sua atitude de celebração da competição, e seu desdém pela solidariedade. E, apesar de algumas vozes, que explodem em protestos variados desde 1999, como as manifestações daquele ano em Seatle, ou em 2001, em Gênova na Itália, ou em 2009, em Belém do Pará no Brasil, na reunião do Fórum Social Mundial, a hegemonia do capital financeiro permanece inabalável. Uma irresponsabilidade assustadora, que segue distribuindo de forma desigual o acesso a saúde e a vida, repetindo o discurso da eficiência da empresa privada e da competição de todos contra todos, em detrimento da inclusão e da distribuição de recursos, benefícios e renda. Com relação ao Brasil, os dados diferenciados da pandemia, também começam a chegar, segundo a rede Brasil atual; o Covid-19 se espalha mais rapidamente nos bairros ricos, mas mata em muito maior proporção nas áreas pobres, mostrando de forma mais flagrante as nossas desigualdades sociais.

"Dados divulgados pela Secretaria Municipal de Saúde de São Paulo nesta sexta-feira (17) mostram que a epidemia de coronavírus torna ainda mais flagrante os efeitos da desigualdade social na capital paulista. De acordo com as informações referentes à situação epidemiológica, os distritos que têm mais casos oficiais de covid-19 estão entre os mais ricos do município, enquanto regiões periféricas lideram em número de óbitos. A cidade tinha um total de 9.356 casos registrados até as 14 horas desta sexta-feira (17). Em termos de localização, os distritos administrativos do Morumbi, com 297 casos; Vila Mariana, com 207, e Jardim Paulista, com 200 casos, eram os que tinham maior número de contaminações registradas por coronavírus. Em relação aos óbitos, que chegaram a 1.935 de acordo com os dados coletados, sendo 743 confirmados e 1.192 suspeitos, os distritos de Brasilândia, com 54 mortes, e Sapopemba, com 51, eram os mais atingidos. Na sequência, aparecem São Mateus, com 41 óbitos, e Cidade Tiradentes, com 37." Rede Brasil Atual, coletado no site em 22/04/2020

Sem dúvida, alguma coisa precisa mudar. Mas será que a injustiça de nosso sistema social será finalmente colocada em debate? Ou permaneceremos privilegiando a minoria que acumula recursos de forma irresponsável, improdutiva e fazendo dinheiro a partir de mera moeda, se esquecendo da miséria e penúria de grande parte dos humanos? A carga tributária, que no Brasil continua reproduzindo nossas injustiças cotidianas, se quer tem coragem de mencionar a taxação de grandes fortunas, ou o incremento da tributação sobre lucros especulativos e financeiros. Recentemente, o economista ex fundamentalista do mercado, André Lara Resende, em entrevista no Globo defendeu a transformação do "Estado cartorial e patrimonialista, num Estado eficiente e a favor da população". Mas quando perguntado, sobre uma taxação mais equânime, se quer mencionou a taxação de fortunas, ou de capitais financeiros especulativos, alegando  não ser o momento propício para aumento de impostos. Realmente cabia a pergunta, sobre seu posicionamento em relação a recente reforma da previdência, ou o corte de recursos do SUS, capitaneado pelos mesmos paladinos da pseudo modernização neo liberal. Nesse momento, me parece fundamental considerar, que não estamos no mesmo barco, mas que, há uma minoria endinheirada que ocupa fortes barcos de aço, outros em frágeis barquinhos de papel, e ainda alguns lançados ao mar e agarrados a tábuas de madeira. Esse reconhecimento me parece fundamental para iniciar qualquer mudança, e a humanidade e o planeta parecem não suportar mais a manutenção dessa situação, aonde recursos e benefícios cada vez mais se concentram.

BIBLIOGRAFIA:

Link para matéria do NEXO JORNAL: https://www.nexojornal.com.br/expresso/2020/04/15/O-impacto-do-racismo-estrutural-nas-mortes-por-covid-19


segunda-feira, 13 de abril de 2020

Cidade, moradia, salubridade, consciência, narrativas e pandemia do Covid 19

Precariedade habitacional e pandemia
Com a pandemia do corona vírus se espalhando pelo mundo de uma maneira geral e ampla, cresce uma vinculação ligeira e superficial entre espacialidade urbana e territorial e disseminação da doença, o episódio ainda é muito recente para conclusões apressadas, mas aqui trago algumas reflexões preliminares. Agora, precisamos ter uma certa humildade diante dos índices, contaminações e mortes da pandemia, pois ainda temos surpresas pela frente, com muitas variáveis. O texto aqui desenvolvido é de um arquiteto e urbanista, que nada entende dos aspectos biológicos e médicos dessa pandemia, pretendendo trazer reflexões sobre o arranjo espacial e demográfico do Brasil, suas regiões e cidades, com vistas a saúde em geral, e ao Covid-19.  Aqui mesmo nesse blog foi publicado o texto, GESTÃO URBANA, SAÚDE, HABITAÇÃO E MODELOS DE CIDADE, trabalho que foi submetido e aceito ao Seminário da Fiocruz, GESTÃO URBANA E SAÚDE, apresentado como palestra em 28 de junho de 2019 (o link do texto vai abaixo). Nesse texto, a partir da oportunidade do Congresso Mundial UIA2020Rio, que ocorreria na cidade do Rio de Janeiro em 2020, e que foi transferido para 2021, em função também da pandemia do Corona Virus, expressava a necessidade de se debater princípios orientadores para a reprodução da cidade contemporânea no Brasil, a partir de premissas da saúde. Uma vez, que a fixação de modelos rígidos não é muito bem aceita pelo conjunto de nossa sociedade no presente, por seu caráter impositivo e discricionário, havendo uma forte demanda pela participação e cooptação de diferentes agentes na formulação de nossos arranjos espaciais. No texto portanto, apresentava quatro princípios básicos, que deveriam nortear o desenvolvimento de nossas cidades, sem a pretensão de impô-los, mais como uma provocação inicial ao debate e à mobilização de diferentes atores. Agora diante do cenário da Pandemia, penso que o debate é fundamental não apenas com vistas a ações imediatas, mas também no sentido de mudar o desenvolvimento inercial da cidade brasileira, que tradicionalmente sempre excluiu parcela considerável de nossa população. Já, no texto mencionava a importância de mudarmos o projeto da cidade brasileira, que sempre excluiu parcela significativa de sua população, não inserindo-a na produção de habitações dignas.

O link do texto é https://arquiteturacidadeprojeto.blogspot.com/search?q=gestão urbana, habitação e modelos de cidade

O tema sanitário e epidemiológico já esteve muito mais articulado com a ordenação espacial, particularmente com a configuração das cidades durante todo o século XIX e começo do século XX, alguns autores identificam mesmo a consolidação do urbanismo como ciência, a partir dessa demanda. Intervenções emblemáticas, em cidade importantes, sejam tecidos pré-existentes ou novas estruturas, como Barcelona, Espanha (1848), Paris, França (1853), La Plata, Argentina (1882) e Belo Horizonte, Brasil (1897) mostram uma paradigmática recorrência formal e em suas dimensões, que então assinalam uma preocupação sanitária. Creio que a desvinculação entre saúde e espaço se deu a partir da descoberta das vacinas, mas principalmente, a partir dos modernos antibióticos, que forneceram a humanidade uma certeza arrogante e pretensiosa vitória sobre os micro organismos invisíveis, independente da espacialidade que ocupavam. A vinculação entre espaço e doença advinha, então da teoria dos miasmas, que foi formulada ainda no século XVII, e que vinculava as doenças aos odores fétidos de matéria orgânica em putrefação presente em solos e nos lençóis freáticos. Importante mencionar que as cidades, que ainda não tinham as dimensões atuais eram os locais aonde mais aconteciam áreas e territórios produtores de miasmas. As condições de salubridade de Londres, a cidade de mais forte desenvolvimento capitalista, em meados do século XIX, podem ser atestadas pela história da família de Karl Marx, o autor do Manifesto Comunista junto com Friedrich Engels. Jenny Marx, a mulher de Marx contraiu varíola, e o único filho homem, Edgar Marx, o Musch, morreu em maio de 1855 acometido pelo cólera provavelmente devido as condições insalubres no bairro do Soho Theater, na Dean Street, aonde moravam desde 1853.


"Marx descreve seu lar como um verdadeiro hospital, e temia que o que ganhava não lhe permitisse comprar o tipo de alimento que a família precisava para se manter saudável. Ele estava especialmente preocupado porque, o cólera surgira novamente em Londres, e o epicentro era no Soho. Só na Bond Street, um minuto a pé da Dean Street, 115 pessoas haviam morrido da doença (quase 11 mil morreriam de cólera em Londres naquele ano)" 1853. Como muitos outros, Marx acreditava que o motivo eram os canos de esgoto que atravessavam um trecho onde vítimas da peste de 1665 estava enterradas. O verdadeiro motivo, descoberto por um médico do Soho, John Snow, eram vazamentos do esgoto para dentro de poços de onde os londrinos tiravam sua água potável. Um desses poços era na Broad Street GABRIEL 2013 página323, grifo meu

Londres, que no final do século XVIII é a maior cidade do mundo com 1 milhão de habitantes, chega em meados do século XIX a 2,5 milhões de habitantes, um crescimento explosivo e diferenciado com bairros novos e bem projetados, mas também áreas insalubres, como a área do Soho aonde a família Marx vivia. A partir de 1825 surgem novos meios de comunicação, como as estradas de ferro, que invariavelmente garantirão bairros idílicos mais próximos da natureza para os ricos, enquanto que os pobres se amontoam no antigo centro em casebres insalubres. A residência da família Marx na Dean Street 28 dispunha apenas de dois cômodos no último andar, um para frente e outro voltado para o fundo do lote, com apenas uma área sanitária, compartilhada com os outros andares e o comércio da rua, uma lavanderia, que estava no térreo. Era um edifício de térreo e mais três andares na Dean Street 28, colado nas duas divisas laterais, com três janelas para frente, e com um único banheiro no andar térreo. A necessidade de mudar essas condições já era clara para o movimento higienista, que muitos apontam como fundado pelo médico austriaco Johan Peter Frank, que escreve o livro,  A miséria do povo, mãe de efermidades, no começo do século XIX, após sua experiência na Lombardia como chefe da Divisão Sanitária. Era claro então que as condições de higiene do precariado europeu eram determinadas por sua condição de despossuídos nas emergentes metrópoles do século XIX. Fica também claro, na citação acima, a crença do próprio Marx na teoria dos miasmas, com a hipótese do terreno infectado por cadáveres da peste de 1665. Mas, as pandemias e sua disseminação envolvem também questões relativas aos hábitos cotidianos e corriqueiros no espaço, nesse sentido é exemplar também as condições da família Marx, descritas por um espião prussiano que vigiava o intelectual em Londres;


"Marx vive em um dos piores, se não o pior bairro - e, portanto, dos mais baratos - bairro de Londres. Ocupam dois cômodos... No apartamento inteiro não há nenhum móvel limpo e firme. Tudo está quebrado, manchado e rasgado, com dois dedos de poeira sobre cada canto, e em toda parte há desordem. No meio da sala há uma grande mesa antiga coberta com um oleado, e ali ficam os manuscritos dele, seus livros e jornais, assim como os brinquedos das crianças, e trapos e remendos do cesto de costura da esposa... É perigoso sentar em qualquer cadeira da casa. Aqui uma com três pernas, na outra as crianças estão brincando de cozinhar - essa por acaso tem quatro pernas. Esta é a que oferecem à visita, mas preciso limpar a comida das crianças antes de me sentar, para não sujar as calças." GABRIEL 2013 página318

Friedrich Engels em 1844 com 24 anos, o parceiro da família Marx descreveu as condições do proletariado inglês, em Manchester e Londres, como deploráveis num livro notável; A situação da classe trabalhadora em Inglaterra. Engels era o filho mais velho de um rico industrial da Renânia, cuja a família seguia práticas intolerantes da corrente pietista do cristianismo, e seu pai não enxergava com bons olhos as manifestações de rebeldia manifestadas pelo rapaz. A família Engels havia expandido os seus negócios além da Alemanha, fundando uma fábrica têxtil na Inglaterra na cidade de Manchester, junto com a família Ermen, - a Ermen & Engels - , que será gerida por Friedrich. Em 1842, quando Engels se transfere para Manchester começa a percorrer os bairros operários, aonde há uma grande proporção de irlandeses. Logo conhece, Mary Burns, uma irlandesa de dezenove anos, que trabalha na Ermen & Engels, com seu pai e sua irmã de apenas quinze anos, chocando-se com a forma como os pietistas donos de fábrica tratam seus funcionários. Mary o apresentou a Pequena Irlanda e outros bairros operários de Manchester, aonde casas baixas de dois cômodos, um porão e um sótão abrigavam 120 pessoas que compartilhavam um toalete externo. Engels descreve uma mudança espacial fundamental, que se espalhará pelo mundo de forma definitiva, chegando na contemporaneidade a nossa sociedade majoritariamente urbana. A partir do século XVIII, mais intensamente na Inglaterra, mas também na Europa, o cercamento dos campos comuns no ambiente rural inviabiliza a sustentação de amplas parcelas da população do campo, gerando um forte abandono da vida pastora e agrícola. Ao mesmo tempo, a industria implantada nas cidades demanda grandes contingentes de mão de obra, que no entanto não absorve a totalidade dessa população afastada da vida campestre, ocasionando grandes aglomerações e contínuos de pobreza no ambiente urbano. Tal fenômeno determina condições precárias de existência e saúde para essa população, que na verdade deve ser pensada do ponto de vista sanitário como potencial produtora de doenças e epidemias. Na verdade, o conceito de saúde adotado pela Organização Mundial de Saúde, que ultrapassa a ausência de doença e abrange a ideia de bem-estar físico, mental e social, que é dependente de condicionantes sociais, econômicos, políticos e culturais.

"Em Manchester, os bairros operários se espraiavam como ervas daninhas ao longo do rio, mas em Londres os cortiços eram verticais, e os pobres lotavam edifícios de quatro andares do porão ao sótão. Cada centímetro, inclusive as escadas era ocupado. Algumas pessoas alugavam apenas um lugar na cama, nem mesmo uma cama inteira. Outros alugavam vaga numa corda estendida ao longo de uma parede, junto à qual podiam dormir sentados." ENGELS 1975 página 40

No Brasil, o vínculo foi também amplamente debatido na passagem do século XIX para o XX, com a geração de engenheiros sanitaristas e com uma série de transformações que impactaram as cidades brasileiras naquela época. Cidades novas ou reformas urbanas amplas mudaram a face de nossas ainda pequenas aglomerações urbanas trazendo lhes um caráter higienista e de maior salubridade, que envolviam canalização de córregos, dragagem de alagados, abertura de avenidas largas, ampliação do espaço das ruas, mas também distribuição de água potável, canalização de esgotos, habitação ventilada com instalações sanitárias. São notáveis as intervenções nesse espírito em Belo Horizonte(1897),Vitória(1897),  Rio de Janeiro(1905), Santos(1909), Recife(1915) Essa arquitetura e urbanismo da Belle Époche, Higienista ou Neo clássica tinha a sua frente figuras como; Pereira Passos (1836-1913), Aarão Reis (1853-1936), Theodoro Sampaio (1855-1937), Paulo de Frontin (1860-1933), Saturnino de Brito (1864-1929) e se articulava fortemente com expoentes da área médica como Oswaldo Cruz (1872-1917) e Carlos Chagas (1878-1934)  ligando fortemente profilaxia e estética. A cidade do Rio de Janeiro, nos primeiros anos do século XX já possuía 1 milhão de habitantes e era assolada de forma recorrente por epidemias de febre amarela, febre tifóide, impaludismo, varíola, peste bulbônica e tuberculose. Havia um claro comprometimento da imagem internacional da cidade como porto seguro para mercadorias variadas, que eram exportadas e importadas pelo país, além disso sua eficiência portuária era reduzida, pois não havia calado para os maiores navios, os armazéns eram precários e as ruas estreitas para distribuir as mercadorias. Além disso tudo, havia uma clara deficiência habitacional representada pelos cortiços, que além das densidades extremas, possuíam poucas instalações sanitárias, como cozinhas e banheiros. Ficava claro que diferentes especialidades se somavam na formulação de um outro projeto para o desenvolvimento do país; medicina, gerenciamento do espaço, economia. É representativa dessa aproximação entre médicos e engenheiros, a Comissão constituída para determinar o melhor local para a nova capital de Minas Gerais, Belo Horizonte, capitaneada por Aarão Reis, mas envolvendo médicos e estudiosos de doenças tropicais. 

"A narrativa de Aarão Reis para justificar a escolha de Curral D´El Rei e Paraúnas como regiões adequadas para implantação da nova capital de Minas Gerais é sintomático do positivismo dominante em nossa república. A descrição para o Curral D´El Rey, a futura Cidade de Minas e a atual Belo Horizonte era representativa; '... local escolhido oferecia condições ideais: estava no centro da unidade federativa, a 100 km de Ouro Preto, rico em cursos d’água, clima ameno, numa altitude de 800 metros. A área destinada à nova capital parecia um grande anfiteatro entre as Serras do Curral e de Contagem, contando com excelentes condições climatológicas, protegida dos ventos frios e úmidos do sul e dos ventos quentes do norte, e arejada pelas correntes amenas do oriente que vinham da serra da Piedade.'" MOREIRA, P. L. 1997 PROURB página55

Todas essas experiências brasileiras tinham como base a filosofia positivista, dominante nos meios militares e na sociedade civil de então, que envolviam formas ingênuas de um dogmatismo cientificista, que reduziam a questão da salubridade das cidades a uma absolutização das ciências naturais, que sempre acabaram nos direcionando a um determinismo redutor. Era como se a realidade tivesse uma independência do ser que a interpreta, represando e bloqueando interpretações e análises mais sofisticadas relativas ao processo de conscientização. Essa atitude sempre endemonizou a política posicionando-a de forma equivocada como ação contrária a ciência, por estar amparada na questão do diálogo e na escuta de lógicas contraditórias. A Revolta da Vacina (0), no Rio de Janeiro 1904 envolve exatamente essa questão, contrapondo ciência ao senso comum e a exploração manipuladora da liberdade individual absolutizada. É interessante assinalar, que no comando das modificações por parte dos governos federal e municipal há uma predominância de positivistas, assim como na oposição, por exemplo do Apostolado Positivista, que apoia a revolta e conspira contra o governo do presidente Rodrigues Alves. Em novembro de 1904, data da revolta, a demolição de casas para abrir a avenida Central terminara e 16 dos novos edifícios estavam sendo construídos. Para tal, o engenheiro e prefeito Pereira Passos, exigiu plena liberdade de ação para aceitar o cargo, sem estar sujeito a embaraços legais, orçamentários ou materiais. Rodrigues Alves, presidente do país, através da lei de 29 de dezembro de 1902, criou um novo estatuto de organização municipal para o Distrito Federal, atribuindo ao prefeito amplos poderes. A lei previa que as autoridades judiciárias, federais ou locais não poderiam revogar as medidas e atos administrativos do município, nem conceder interditos possessórios contra atos do governo municipal exercidos por razões imperativas; acabava com qualquer controle ou adiamento burocrático das reformas e, nos casos de demolição, despejo ou interdição, haveria apenas um auto afixado no local, prevendo penalidades contra as desobediências; dispunha o despejo dos residentes nos prédios a serem demolidos, bem como a remoção dos respectivos móveis e pertences, que seriam feitos pela polícia(1). Havia uma clara vertente autoritária baseada na ciência médica e na salubridade, que se hegemonizava frente a outras narrativas, típica do Positivismo de Auguste Conte. É claro também, que não se trata de corroborar com um anti-cientificismo igualmente limitado e redutor, nem com um relativismo paralisante, mas de uma premissa fundamental de inclusão e promoção de coesão social, possíveis pelo projeto e pela política.


"O engenheiro... é o grande sacerdote e intérprete da natureza. O engenheiro, sempre em contato com a natureza, conhecedor de seu caráter, do seu hábito, chegou pela aplicação de sua força intelectual, a vencê-la e dominar sua força bruta, desviando, corrigindo, dominando sua força bruta, desviando, corrigindo, dominando essa força para servi-lo. A engenharia pode fazer tudo isto; dominando a superfície e as entranhas da terra, as ondas e o fundo dos mares e acaba de transpor os domínios da águia e da andorinha veloz." Saturnino de Brito citado em MOREIRA, F. D. 2010 página 47

O eixo central da avenida foi inaugurado em 7 de setembro de 1904, em meio a grandes festas, já com serviço de bondes e iluminação elétrica. A derrubada de cerca de 640 prédios rasgara, através da parte mais habitada da cidade, um corredor que ia da prainha ao Passeio Público. Parte dos escombros ainda cobria os lados da avenida, facilitando seu uso para as barricadas. A inauguração se dava diante de um cenário de guerra e de terra arrasada, pouco convincente do ponto de vista celebratório, imagético e simbólico. Na mesma data, estavam sendo alargadas as ruas do Acre (ex-Prainha), São Bento, Visconde de Inhaúma, Assembleia e Sete de Setembro. O morro do Senado no bairro da Lapa era arrasado para abertura da Avenida Mem de Sá, Praça da Cruz Vermelha, ligando o Passeio Público a rua Frei Caneca. A rua do Sacramento foi prolongada até a avenida Marechal Floriano Peixoto, recebendo a parte nova o nome de avenida Passos. Interessante assinalar que a Avenida Marechal Floriano foi alargada antes fugindo do padrão das ruas cariocas, era então chamada de rua larga, . A demolição dos velhos casarões, àquela altura já quase todos transformados em pensões e cortiços, provocou uma crise de habitação que elevou os aluguéis e pressionou as classes populares para os subúrbios e para cima dos morros que circundam a cidade. A implantação da modernidade no Brasil parecia querer excluir parcelas importantes da sua população, que assim como hoje se sustentam por pequenos biscates e não possuem vínculos fixos de trabalho(2). A modernidade assumia um caráter parcial e não era disponibilizada para todos, combinando aquilo que será a face perversa de nossa modernização incompleta e combinada, que sempre manteve o arcaico, para dele se beneficiar e super explorar. É claro também, que as classes populares se beneficiavam da reforma sanitária, pois ao final das contas eram muito mais expostas as epidemias de febre amarela, febre tifóide, impaludismo, varíola, peste bulbônica e tuberculose por não usufruir do recurso do isolamento (3), por suas condições de abrigo e do acesso aos serviços médicos e informações sanitárias. A modernidade, no contexto do Brasil daquele tempo, na transição da ordem escravocrata para a competitiva, assumia um caráter exclusivo, importada da Europa de forma ligeira sacralizava a ideia de progresso para usufruto de poucos;


"O partido dos modernos insurge-se contra a autocompreensão do classicismo francês, quando assimila o conceito aristotélico de perfeição ao de progresso, tal como este foi sugerido pela ciência natural moderna. Os 'modernos' questionam o sentido de imitação dos modelos antigos com argumentos histórico críticos, em contraposição às normas de uma beleza absoluta e atemporal, salientam os critérios do belo relativo ou condicionado temporalmente, articulando com isso a autocompreensão do iluminismo francês com a de um novo começo de época." HABERMAS 2000 página13, grifo meu

Mas, além das críticas ao urbanismo higienista e positivista é preciso reconhecer que o movimento representa um importante legado para a cultura urbana brasileira, e depois desse primeiro movimento demonstrou claramente capacidade de auto aperfeiçoamento, principalmente nos projetos de Saturnino de Brito(1864-1929). Saturnino se graduou na Escola Politécnica em 1886, atuou na construção de ferrovias no interior do Brasil, foi assistente de Aarão Reis na construção de Belo Horizonte, deixando essa função para se dedicar ao plano de extensão de Vitória em 1897. Desse momento em diante se dedicou a uma série ininterrupta de planos de extensão e saneamento de cidade, dentre as quais se destacam; Santos (1905-1909) e Recife (1909-1915). Quando nos debruçamos sobre essas atuações percebe-se um retrocesso positivo num formalismo geometrizante rígido e a adoção de uma maior adequação a topografia e as demandas de cada localidade. Saturnino recebeu até agora pouca atenção de nossa historiografia, principalmente no que concerne aos seus desenhos e soluções em cidades concretas, mas, que me parecem uma das mais sensíveis sistematizações nessa área. Seu entendimento do urbano como um processo, e não apenas uma transformação e modificação na cidade podem ser observados em Vitória, Santos e Recife. Tal atitude pode ser comprovada pela sua visão do organismo urbano como um todo, sua preocupação com o gerenciamento da reprodução da cidade no seu desenvolvimento, pensando a construção das casas e edifícios pulverizados nas diferentes partes da cidade, no longo prazo. Uma visão do projeto urbano como processo de interação com a cultura do construir pulverizada e diversificada da sociedade


"Brito produzia extensos relatórios para cada trabalho prático, nos quais discorria desde detalhes técnicos até suas concepções urbanísticas. Escrito para a conferência La Cité Reconstituée em 1916, seu livro Notés sur le tracé sanitaire des villes condensa sua principais ideias e pode ser considerado o primeiro esforço para se estabelecer uma teoria  do urbanismo no Brasil." MOREIRA, D 2010 página49

Essa página do urbanismo no Brasil é de forma recorrente esquecida, com arquitetos e urbanistas muitas vezes citando esses mesmos conteúdos a partir de autores estrangeiros, que parecem pela subalternidade interiorizada sempre mais elegantes que nossas reflexões particulares. Autores brasileiros, mais próximos de nossa contemporaneidade, como; Rodrigo Lefébvre, Sérgio Ferro, ou Carlos Nelson dos Santos, também tiveram reflexões importantes sobre o projeto e sua articulação com procedimentos democráticos de participação, e estão hoje igualmente esquecidos. O que me parece importante frisar, a partir de nossa experiência com a pandemia do Covid-19, no campo do projeto de nossas cidades brasileiras é a emergência de um processo Político que passa a considerar a necessidade de inclusão social e de geração de maior coesão entre os cidadãos. Efetivamente, não importa que apenas uma minoria tenha acesso a uma habitação em condições dignas para o isolamento social, isto é; com saneamento, instalações sanitárias adequadas, densidade de moradores salutar, presença de uma urbanidade civilizada e segura no seu entorno. É cada vez mais evidente, que a crise deflagrada pela propagação do coronavírus está nos mostrando, infelizmente de forma trágica, que as sociedades não podem prescindir de sistemas públicos e gratuitos de saúde, da previdência social, de um programa habitacional que inclua a urbanização, o saneamento das favelas, a produção de unidades habitacionais inseridas em contextos com saneamento, segurança e urbanidade. Que precisamos de legislação e políticas de proteção ao trabalho, de garantia do direito á habitação, de instrumentos de controle e correção sobre a valorização excessiva da terra urbana, de políticas de mobilidade inclusivas, de projetos aonde os excluídos são ouvidos e incluídos em suas demandas. Que a informalidade e a precarização dos vínculos trabalhistas, da moradia, do espaço urbano, da cidade, do direito a produção agrária e urbana constituem fragilidades nocivas a toda a sociedade, e não apenas aos grupos excluídos. Como colocado por SAFATLE em recente entrevista;

"Porque uma coisa que poderia nascer dessa experiência de uma luta coletiva contra a pandemia era um afeto político fundamental de solidariedade genérica. Uma solidariedade que demonstra muito claramente: ‘minha vida depende de pessoas que eu nem sei quem são’. Que não parecem comigo, que não fazem parte do meu grupo, que não têm minha identidade, e essas pessoas são fundamentais; nós temos um destino coletivo." SAFATLE 2020

Emerge uma consciência ou narrativa que me parece importante sublinhar e destacar, nas ocupações precárias de baixa renda como favelas e loteamentos irregulares presentes nas cidades brasileiras, as mais importantes recomendações e procedimentos para evitar o contágio são impraticáveis, ou de difícil implantação, pela baixa qualidade dos serviços de abastecimento de água, coleta de lixo, distribuição elétrica, telefonia e esgotamento sanitário, pelo adensamento excessivo e pela precariedade sanitária das habitações. No sistema de saúde efetivamente constituído em nossas cidades percebe-se, assim como na rede de cultura, ensino, informação um déficit locacional, que privilegia determinados bairros e segrega outros. Além disso tudo, as famílias desses bairros precarizados e sub infraestruturados estão mais sujeitas à diminuição de sua renda pela sua necessidade de prover seu sustento, a cada dia. Os efeitos da redução da circulação e da atividade econômica provocada pela necessidade de estancar a disseminação do vírus são mais violentos nessas mesmas localidades, uma vez que concentram os menores níveis de renda, cultura, saúde e escolaridade. Na verdade, a pandemia do Covid-19 deixou claro que o conceito de moradia adequada em tempos de isolamento social é aquela que possui condições de garantir a existência entre os residentes da habitação, muito além de ter acesso a um mero sistema de saneamento básico que permita manter a higienização constante e apropriada, mas também, condições de co-habitação. A lógica da solidariedade entre diferentes, da celebração de um projeto comum de cidade, aonde ninguém é deixado de lado, conseguirá prevalecer em nossa contemporaneidade? A emergência de um neo positivismo, que celebra a independência absoluta da ciência, frente a ordenação Política da sociedade irá prevalecer. O pessimista filósofo marxista ZIZEK, nos contempla com um inusitado depoimento otimista, que parece concordar com a emergência de um projeto solidário para a humanidade, a partir de uma reflexão pessoal de cada um de nós;


"Nem todo mundo que está em casa passa seu tempo apenas assistindo filmes estúpidos. Todos estão se fazendo perguntas básicas sobre nossa vida cotidiana, questões que em outros momentos definiríamos de metafísicas. Muitos estão usando esse tempo para refletir. E para escolher. É verdade, somos mais isolados, mas também mais dependentes uns dos outros. Vivemos um imperativo paradoxal: demonstramos solidariedade por não nos aproximarmos. Nunca fui um otimista, mas esse respeito pressupõe uma mudança profunda de comportamento que sobreviverá à crise." ZIZEK, Slavoj - Entrevista no site da Unisinos em 13/04/2020 

Mas, muito além do otimismo creio que se impõe uma vigilância constante sobre o processo de tradução e diálogo entre ciência e Política, para que mais uma vez não se imponha uma lógica redutora e de exclusão no Brasil. Pois, será que a interpretação ou narrativa da solidariedade efetivamente se impõe a todos, ou sobreviverá a crise da pandemia, convencendo a todos de que a interdependência intra sociedade é a chave para superá-la? Ou, os fundamentalistas do mercado e da lógica competitiva exarcebada do neo liberalismo, que certamente continuaram sua pregação da seleção natural, entre perdedores e ganhadores do darwinismo social. Certamente, estão articulando narrativas e explicações, que identificarão as fragilidades de nossa estrutura social, a partir de uma lógica de ênfase na competição de todos contra todos. Se levantarão e proclamarão suas narrativas e discursos contra a solidariedade, celebrando a ordem econômica competitiva e meritocrática, que nos doutrinou desde o fim dos anos setenta, com as eleições Thatcher e Reagan. Na verdade, não podemos nos iludir, o sistema sempre se utilizou de crises reestruturadoras para reordenar suas imposições dominadoras, uma rearticulação das necessidades humanas segundo critérios do saber técnico, seja médico ou urbanístico, só poderá ser ratificado pela consciência dos próprios atores Políticos.

NOTAS:

(0) Alguns autores discordam ou problematizam a nomeação desta rebelião no Rio de Janeiro como Revolta da Vacina, pois consideram que os motivos da explosão se deviam a questões muita mais amplas, como a falta de habitação, a precariedade dos transportes e a expulsão da população pobre do centro da cidade. É sintomática a destruição de bondes e a disponibilidade de entulhos de obra, que foram usados nas barricadas cariocas nessa ocasião

(1) De forma concomitante com as obras, Pereira Passos tomou uma série de medidas que visavam proibir e alterar as formas de trabalho, lazer e sociabilidade consideradas incompatíveis com uma capital cosmopolita e moderna. Proibiu cães vadios e vacas leiteiras nas ruas; mandou recolher os mendigos a asilos; proibiu a cultura de hortas e capinzais, a criação de suínos, a venda ambulante de bilhetes de loteria; mandou também que não se cuspisse nas ruas e dentro dos veículos, que não se urinasse fora dos mictórios, chegando mesmo a determinação de que não se soltassem pipas.

(2) É conhecido o fato e de certa forma folclorizado, de que parte desse precariado começou a criar ratos para conseguir prover seu sustento, uma vez que Oswaldo Cruz institui uma remuneração em dinheiro para quem os entregasse aos Serviços Sanitários da Capital Federal.

(3) O retiro na serra adotado pelo imperador, entre os meses de novembro e fevereiro não era para se preservar do calor carioca, mas também para evitar as epidemias.

BIBLIOGRAFIA:

BENCHIMOL, Jaime Larry - Pereira Passos: um Haussmann tropical - Biblioteca Carioca 1992 Rio de Janeiro

ENGELS, Friedrich - A situação da classe operária em Inglaterra - Edições Afrontamento Porto 1975

GABRIEL, Mary - Amor e Capital: a saga familiar de Karl Marx e a história de uma revolução - Editora Zahar Rio de Janeiro 2013

HABERMAS, Jürgen - O discurso filosófico da modernidade - Editora Martins Fontes São Paulo 2000.

HABERMAS, Jürgen - Técnica e ciência como ideologia - Editora Unesp São Paulo 2014

MOREIRA, Fernando Diniz - Saturnino de Brito e o plano de saneamento de Recife - Néctar Recife 2010

MOREIRA, Pedro da Luz - Belo Horizonte, e a fundação de nossa tradição moderna - dissertação de mestrado do PROURB 1997

MOREIRA, Pedro da Luz - Gestão Urbana, saúde, habitação e modelos de cidade - www.arquiteturacidadeprojeto.blogspot.com.br 

SAFATLE, Vladimir - Safatle: "Bolsonaro se acha capaz de esconder os corpos" - Entrevista ao A Pública coletado em 08/04/2020, no site:  https://apublica.org/2020/04/safatle-bolsonaro-se-acha-capaz-de-esconder-os-corpos/#.Xo2jExPPJow.whatsapp

ZIZEK, Slavoj - Entrevista no site da Unisinos em 13/04/2020  http://www.ihu.unisinos.br/597903-vejo-um-novo-comunismo-distante-do-comunismo-historico-brotar-do-virus-entrevista-com-slavoj-zizek