domingo, 27 de agosto de 2023

Novas Tecnologias e mudanças; a necessidade de distinção e avaliação da essência do nosso tempo

Escritório de Arquitetura dos anos 70; desenho da cidade
e consciência crítica do momento

"Do madeiro torto de que é feito o homem nada de totalmente reto pode ser talhado."
KANT  2022, pág.16

O texto a seguir pretende pensar de forma aberta e não doutrinária, a questão da alienação em nosso cotidiano contemporâneo, presente mesmo em locais dedicados a buscar a explicitação crítica de nossos pensamentos e práticas, um antídoto ao entorpecimento geral, inclusive na Academia. Há a presença de quatro proposições apontadas pelo pensador liberal de Oxford na Inglaterra, Isaiah Berlin, que celebram o que ele mesmo define como, a "Ética do Pluralismo", no que concerne as premissas teóricas que utilizo; 1. A escolha é inevitável, 2. A escolha de uns e outros é sempre limitada, 3. As pessoas gostam da escolha única, pois conviver com politeísmo teórico é sempre difícil, mas deve-se buscar uma crença inabalável na capacidade de fecundidade dos antagonismo, e 4. Convicções são sempre provisórias, no entanto, isto não significa e nem é motivo para não defendê-las de forma veemente. O texto inicia-se pelo aceleramento das tecnologias digitais, as Técnicas de Informação e Comunicação (TICs), que parecem ter imposto ao mundo uma dinâmica novidadeira sem fim, que me parece interessada em gerar uma clara confusão entre o essencial e o episódico, entre a permanência e a ocasião. Numa prática, que nos rouba a consciência do que estamos fazendo, nos lançando numa operação imediata descolada da consciência da reprodução da vida, das dádivas do planeta.

"quanto mais corre o tempo da luta pela sobrevivência, tanto menos tempo temos para estudar a fundo a própria dialética em sua razão teórica, histórica, cultural e política." TRASPADINI 2023

Primeiro precisamos nos policiar com relação a uma perspectiva novidadeira e de celebração acrítica do "novo", como alguma coisa além do livre arbítrio, como algo inevitável, e que, de uma maneira geral amplia as possibilidades disruptivas da humanidade, como numa revolução aparente, que na essência quer manter tudo como está. Gadamer, já nos alertou a respeito do valor da tradição como algo intrinsecamente reconhecido pela sociabilidade geral, este argumento não pretende conferir a tradição o caráter de uma verdade absoluta, mas algo que deve ser problematizado e pensado. E, que está sempre disponível para uma nova leitura, por exemplo, o Tratado de ALBERTI (2012) escrito no século XV, e, que ainda apresenta verdades válidas relativas a prática da arquitetura e do urbanismo na nossa contemporaneidade. Particularmente na questão, do direcionamento tecnológico, considero de suma importância pensar a partir de um esforço de diferenciação entre o essencial e o episódico, entre a permanência e a ocasião no tempo histórico, isto é procurar identificar aquilo que efetivamente mudou em essência, e aquilo que se mantém tal como sempre foi, apenas sobre a episódica aparência de uma grande mudança. Esta é uma questão central, particularmente para a Academia, que pretende ter um juízo crítico sobre a direção que as sociedades humanas estão tomando, no que se refere aos usos das tecnologias disponíveis e seus impactos. Ao final, ter a consciência, ou apresentar ferramentas que nos permitam avaliar, oferecer alternativas aos caminhos que estamos tomando, enquanto espécie humana é função precípua da Universidade. Nesta temática estamos diante de um claro impasse, que cada vez fica mais claro para diferentes correntes de pensamento, de que é a forma como operamos os recursos naturais e humanos (tecnologias) disponíveis para promoção do bem estar geral, que nos ameaçam. A hegemonia humana sobre a face do planeta em que vivemos foi conquistada a partir de esforços diferenciados que geraram e geram uma sinergia de desenvolvimentos e de tecnologias interrelacionadas, que precisam ser avaliados em sua direção geral. Daí decorre a necessidade de correta avaliação desta história, não apenas no curto prazo, mas no médio e longo prazo, fazendo nos debruçar sobre a série histórica, que dispomos, refletindo onde ela nos levou, principalmente no ponto da reprodução da vida e de sua generalização. É claro, que aqui, os empiristas e naturalistas de plantão, no seu anti historicismo apontarão a incapacidade da história de avaliar nosso tempo presente dado a sua absoluta especificidade inusitada, construída pelas novas Tecnologias da Informação e Comunicação (TICs), que só podem ser avaliadas a partir de seus próprios dados empíricos. Tal visão, nos faz confundir transformações episódicas com transformações essenciais, que nos impedem por exemplo de ver, que o protagonismo não está na manipulação dos aparelhos eletrônicos do nosso tempo, mas nas relações de propriedade que os atravessam e os compartimentam em benefício de poucos.

"Mas não foi (e não é) a tecnologia que expandiu (ou expande) a esfera pública. A força motriz da expansão vem do emprego social e econômico da tecnologia. O protagonismo não é dos aparelhos eletrônicos, mas das relações de propriedade que os atravessam e os compartimentam." BUCCI 2021, pág.51

Na manipulação tecnológica de última geração identifica-se algumas potencialidades, mas que devem ser avaliadas do ponto de vista crítico, basicamente sobre o crivo da reprodução da vida, foco fundamental, da preservação natural em tempos de desequilíbrios ambientais. Como exemplo, pode-se refletir sobre a adoção no campo da arquitetura e do urbanismo de softwares, como Building Information Modeling (BIM), que aparece como desenvolvimento inevitável, numa celebração acrítica e fetichizante das novas tecnologias. Esses software foram desenvolvidos para a precisão demandada pela Engenharia Mecânica, algo que se refere à milímetros, completamente diferente da construção civil, que trabalha no âmbito dos centímetros. As consequências e condicionalidades precisam ser avaliadas pelo campo da construção civil, atividade majoritariamente industrial, e que, no Brasil opera com profundos impactos no meio ambiente. Pois, apenas no que se refere a geração de resíduos sólidos, segundo pesquisas do Sindicato da Construção Civil do Rio de Janeiro (SINDUSCON-RJ), nossos canteiros de obras produzem um volume de resíduos sólidos de quantidades proibitivas ou alarmantes. Pois, a cada 3 edificações multifamiliares construídas gera-se 1 edificação inteira em resíduos sólidos, entulhos de obra e material descartável, que seguem impactando nosso meio ambiente.  A questão tecnológica demanda da sociedade um foco, para se aprofundar em determinados aspectos, oferecendo aos interlocutores uma interpretação coesa de nosso tempo contemporâneo, a partir da avaliação dos impactos no meio ambiente das suas práticas. Apesar da crescente ampliação das racionalidades produtivas, os impactos ambientais da construção civil não são introjetados pelos seus donos, mas sim pelo conjunto da sociedade, que é impactada pelos seus efeitos. Defende-se, no campo da arquitetura e do urbanismo, que nossas principais preocupações são relativas as dimensões do tempo e do espaço em nossa contemporaneidade, como esses podem garantir a reprodução das futuras gerações. E, como eles podem representar uma generalizada ampliação da consciência e liberdade humana, ou seu inverso, o que demanda uma reflexão sobre o desenvolvimento tecnológico, e uma determinada noção de progresso e bem estar. O progresso não seria mais unidirecionado e hierarquizado a partir de um centro mais desenvolvido, contraposto a uma periferia arcaica e atrasada, mas articulado a uma interação humana e natural, que nos garanta futuro e bem estar generalizados. E, o bem estar não estaria mais fixado num padrão de comodidades habitacionais e ambientais homogêneas, que representariam o paradigma de um bem viver homogenizado.

"Assim como a história das religiões estava, para todos os efeitos e propósitos, manifestamente acabada, deixando uma gama de importantes fés às quais não podiam ser adicionados mais credos, também agora todas as formas ideológicas e estéticas seculares tinham-se convertido num inventário fixo. Não eram mais possíveis as filosofias gerais do gênero outrora desenvolvido a partir de Darwin, ou Marx, ou Nietzsche, embora as atitudes básicas que eles inspiraram continuem vivas - tal como as novas avan-gardes em pintura ou literatura, com capacidade para radical inovação, deixaram de aparecer... Gehlen(1) foi buscar o próprio termo "cristalização" em Pareto(2). Terminou sua fala, profeticamente, comentando que havia dois problemas políticos que ainda avultavam: um consistia nas pressões que estavam se acumulando entre os estudantes em condições de educação massificada, e o outro no brado de fome das superpopulações do Terceiro Mundo." ANDERSON 1992, pág.73

Primeiro, com relação, ao tempo, que é algo difícil de se separar do espaço, pois tradicionalmente usamos o tempo como medida de compreensão do espaço, e vice versa. Mas o nosso tempo tem se comprimido de forma dramática, tendo feito que nós atualmente estamos respondendo a demandas contínuas que não cessam de parar, pelo email, pelo whatsapp, pelo noticiário da TV ao vivo, etc..., diante de muita informação, mas sob uma teorização frágil. Aponta-se, que foi Benjamim Franklin, que pela primeira vez afirmou que "tempo é dinheiro", determinando para nós uma urgência na utilização do nosso tempo, que nos arrancou do tempo de meus afetos, dos meus prazeres, daquilo que podemos chamar de auto-realização, que é particular e plural em cada um de nós. Por exemplo, pode-se considerar que ganho tempo, lendo Machado de Assis, pois amplio a compreensão do que é o Brasil, ou do que representa na sociedade  brasileira, na passagem do século XIX para o século XX, da questão da escravidão, a partir desse autor. Imagina-se que a apreensão da realidade contemporânea que vivemos está profundamente impactada pelo fato do o Brasil ser o último país do Ocidente a promover a libertação dos escravos, determinando uma inserção periférica e subalterna na globalização. Mas, a pergunta dos positivistas anti-historicistas, de como um autor do século XIX, antes do advento da internet, pode me explicar o que é o Brasil contemporaneamente, profundamente impactado pelas TICs? Diante disso é necessário reafirmar simplesmente, que a arte sempre teve esta capacidade, basta ler Sófocles ou Shakespeare, para entender que alguns dramas humanos estão conosco a partir de tempos imemoráveis, representando a permanência de angústias continuadas. A luta pela conquista do próprio tempo é um universo de possibilidades para se aproximar de uma sempre incompleta auto-realização, sem ele estaremos sempre respondendo de forma mecânica e impensada a demandas que nos chegam como avalanches. E, essa luta pelo tempo está nos suprimindo da experiência da cidade, da sua diversidade, de seu didatismo revolucionário, da sua compulsória exposição ao outro e ao diverso, que na verdade nos educa.

"Também a "cidade do espetáculo", o aparato midiático, a imersão compulsiva na rede virtual, a multiplicação de devices (dispositivos) portáteis e a consagração do efêmero, do instante e do bombástico nos retiram continuamente de nós mesmos, apesar das "bolhas" cada vez mais estreitas que nos envelopam, e nos afastam do lógos com que a cidade libertaria nossas potencialidades e nos permitiria nascer de novo." BRANDÃO, 2023, pág29 e 30 

Numa ilustrativa citação, o filósofo alemão da Escola de Frankfurt, Walter Benjamim, cita num ensaio de 1940, que os revoltosos da Comuna de Paris em 1848, em vários bairros da cidade, de forma independente, e sem conhecimento um dos outros dipararam tiros contra as torres de relógios, numa rebelião contra a medição das horas de forma mecânica e contínua. Um outro autor Eugênio Bucci (BUCCI, 2021, pág194), que fala do uso contínuo do gerúndio pelas atendentes de tele-marketing, que denotaria a vontade do sistema de conformar um "presente estendido", que se amplia em duas direções, tanto em direção ao passado, quanto ao futuro, suprimindo nossa consciência da passagem da História. Fazendo, aliás também gerúndio, que o tempo de serviço não vale mais nada, ou que a contagem dos anos trabalhados para fins de aposentadoria seja extinta, afinal estamos todos enredados num presente contínuo maravilhoso propiciado pelas novas TICs. Além do tempo, é agora necessário se pensar no espaço, que desde tempos anteriores sofre uma forte pressão pela sua descartabilidade, num planeta assolado por desequilíbrios ecológicos, em grande parte fruto de novas construções, que desfazem em ruínas em obsolescências muito rapidamente. A menção ao espetáculo retrocede às Exposições Internacionais, como a Colombina de Chicago de 1893 ou à Exposição de 1922 no Rio de Janeiro para celebração de 100 anos de nossa independência, pois nos relembram do médio prazo e das fantasmagorias do sistema de declínio do conhecimento e de primazia do consumo desenfreado na cidade do espetáculo, do início do século XIX, quando a montagem de exposições se generaliza. A exposição de Chicago, por exemplo, acabaram por exilar nos subúrbios, arquitetos criativos e inovadores como; Louis Sullivan e Frank Lloyd Wright, pois a arquitetura oficial eleita para a feira em seu centro foram a Arquitetura Branca Neoclássica, típica de Washington, como numa História instantânea, e como expressão hegemônica da identidade Estadounidense.

"Hoje, para muitas pessoas, o tempo se tornou tão fragmentado que apenas o presente parece ter significado: o passado é visto como "obsoleto", e portanto inútil. Além disso, como o presente difere tanto do passado, vai se tornando cada vez  mais difícil compreender como era este. Como Hans Meyerhoff observou, "o passado está sendo triturado pelo moinho da mudança inexorável, incompreensível." BUCCI 2021, pág197

Além das Exposições Internacionais, nos aproximando de nosso tempo contemporâneo nos confrontamos com, os Parques Temáticos da Disney, ou do Beto Carrero World, ou os Aeroportos, ou as Estações Ferroviárias, ou a tela da TV, ou os Shoppings Centers, dentre outros. Espaços que, apesar de espalhados pelo mundo possuem uma face homogeneizadora, sem personalidade, sem nos revelar a identidade local. De certa forma estas espacialidades anteciparam um entorpecimento geral e alienante daquilo que denominamos como "Realidade Ampliada", que simula os projetos de arquitetura, dando-lhes uma objetividade, liberta do artístico, ou da pessoalidade como a "Inteligência Artificial". Na verdade, uma terminologia, que permanece no campo celebratório, e que prolonga e não revela a alienação não crítica, e que, estaria melhor nominada por termos como; o "Telespaço da Internet", ou "Inteligência Mecânica" ou dos "Não Lugares" do Marc Augé, e que tem uma tradução brasileira de 1994.  AUGÉ 1994 faz referência a superabundância espacial como estratégia de alienação das pessoas em não lugares em contínua expansão, engendrando um mundo onde o humano abre mão da personalidade única do lugar. 

"Um  mundo onde se nasce numa clínica e se morre num hospital, onde se multiplicam [...] os pontos de trânsito e as ocupações provisórias, onde se desenvolve uma rede cercada de meios de transporte que são também espaços habitados [...] propõe ao antropólogo, como aos outros, um objeto novo."  AUGÉ 1994, pág.

Discordo do Augé, estes lugares não são novos, estiveram sempre presentes na história humana nos locais de trânsito, nas Estações Ferroviárias, nos Grands Magazines, ou nos pontos de saída de carroças e diligências, o problema é que eles se expandiram colonizando nosso mundo todo, como "Não Lugares", como locais de História instantânea. Ou melhor nós é que nos transformamos em efêmeros, centrados numa auto suficiência subjetiva, onde todos estamos refugiados, e apenas uma minoria desfruta do verdadeiro lugar. Aliás, é preciso apontar, que o capitalismo da Super Indústria (não é pós industrial) contemporânea é aquele que internaliza o processo de inovação tecnológica para exponenciar a exploração das forças produtivas, sem prestar contas dos custos ecológicos e sociais. Além disso, a lógica financeira preencheu todas as formas de se pensar, exponenciando a capacidade especulativa do valor, descolada de qualquer produção ou valor de uso, na ciranda das Bolsas de Valores que não dormem. As perguntas que precisamos nos fazer de forma urgente são; para onde estamos indo? ou àquilo que estamos construindo fomenta uma sociabilidade inclusiva ou exclusiva?  E, por último o programa atual, que demanda à cidade e à arquitetura é inclusivo do conjunto da humanidade, ou mira em sua minoria consumidora?

NOTAS:

(1) Arnold Karl Franz Gehlen (1904-1976) filósofo e sociólogo alemão, que investigou questões relativas a Pós História.

(2) Vilfredo Fritz Pareto (1848-1923) cientista político, sociólogo e economista italiano, que na verdade nasceu na França, devido ao exílio de seu pai determinado por suas discordâncias com o comando piemontês do Risorgimento, ou unificação da Itália. O pai de Pareto era da Liguria e suas ideias republicanas levaram-no ao exílio. Pareto participou em Florença da Sociedade Adam Smith, e era contra o socialismo de Estado, o protecionismo e o miltarismo do govero italiano.

BIBLIOGRAFIA:

ALBERTI, Leon Battista - Da arte do construir, tratado de arquitetura e urbanismo - Editora Hedra, São Paulo 2012

ANDERSON, Perry - O fim da história de Hegel a Fukuyama - Jorge Zahar Editor, Rio de Janeiro 1992

AUGÉ, Marc - Não Lugares: introdução a uma antropologia da supermodernidade - Editora Papirus, Campinas 1994

BENJAMIM, Walter - Rua de mão única - Editora Brasiliense, São Paulo 1987

________________- Walter Benjamim, sociologia, Teses sobre a filosofia da história - Editora Ática São Paulo 1985

BRANDÃO, Carlos Antônio Leite - A formação do homem moderno vista através da arquitetura - AP Cultural, Belo Horizonte, 1991

BRANDÃO, Carlos Antônio Leite - A genealogia da cidade - Editora da UFMG, Belo Horizonte, 2023

BUCCI, Eugênio - A superindústria do imaginário: como o capital transformopu o olhar em trabalho e se apropriou de tudo que é visível - Autêntica, Belo Horizonte 2021

KANT, Imanuel – Ideia de uma história universal de um ponto de vista cosmopolita – Martins Fontes São Paulo 2022

TRASPADINI, Roberta - Os marxismos e seus dilemas contemporâneos - Le Monde Diplomatique 05/09/2023, coletado no site em 08/09/2023: A falta de oxigênio do materialismo histórico dialético na atualidade (diplomatique.org.br)