terça-feira, 26 de janeiro de 2021

Brunelleschi e a Cúpula, fragmentação e coesão no processo de projeto; da concepção inicial ao executivo


A Igreja de Santa Maria del Fiori em Florença, O Batistério,
o Campanário e a Nave (0)

Numa olhada rápida no dicionário sobre o significado da palavra projeto percebe-se; "substantivo masculino 1. desejo, intenção de fazer ou realizar (algo) no futuro; plano. "fazia projetos para sua aposentadoria" 2. descrição escrita e detalhada de um empreendimento a ser realizado; plano, delineamento, esquema." A primeira atribuição é ampla, e aponta para nós que a ação de projetar e planejar envolve uma aspiração humana, um desejo de fazer ou realizar, que insere previsibilidade em nossas vidas. O direito a acessar uma certa previsibilidade parece conferir um gradiente de maior qualidade de vida, principalmente no que se refere a aposentadoria particular, ou o desfrute de um tempo de maturidade liberto da luta incansável da sobrevivência de cada um de nós. Efetivamente projetamos uma série de coisas, da perda de peso, a uma viagem, da compra de uma casa ou carro, a concepção de filhos, de uma tese de doutorado a programação de aulas de um período. A palavra está também cindida pelo prefixo "pro", que denota antecipação, e pelo sufixo "jactar" lançar, atirar, portanto, projetar é lançar com antecedência. No campo mais específico da arquitetura e do urbanismo, projetar é se antecipar, definindo de forma precisa transformações e obras demandadas e desejadas pelas comunidades humanas. O plano e o projeto, para estes ofícios são processos detonados pela pesquisa e esclarecimento, do que as comunidades humanas desejam, pois há invariavelmente uma imprecisão nessa explicitação. O filósofo italiano Antônio Gramsci, considerava uma das conquistas mais promotora da humanização, a previsão, que ele mencionava como um dom, citando o folclore e a tradição da mitologia, pertencente aos cegos e aos menos dotados. Em Tebas (na mitologia grega, o cego Tirésias), e em Dante (no canto X do Inferno, a figura de Cavalcanti). A figura de Cavalcanti em Dante; vê o passado e o futuro, mas é incapaz de enxergar o presente, e o cego de Tirésias um dos mais notáveis advinhos do futuro. Para o filósofo italiano a previsibilidade está sempre vinculada e embasada num juízo sobre a atualidade;

"...a previsão não é mais que um juízo especial sobre a atualidade... Se os fatos sociais são imprevisíveis e o próprio conceito de previsão é nada mais que do que um som, o irracional não pode deixar de dominar e toda organização de homens é anti-história é um preconceito. Neste caso, o oportunismo de um presente que ratifica a si mesmo se torna a única linha possível". Gramsci relaciona essa dimensão da concepção crociana do tempo histórico com seu comportamento especulativo e com a noção da "história como projeto." LIGUORI e VOZA página 648

Esse mesmo sentido, da História como projeto, também será explorado por TAFURI 1981, aonde se encontra a defesa da ideia de crítica projetante, identificando aí um ponto de encontro entre história e projetação, que, portanto não se restringe a resolver problemas, mas testa sua verificabilidade não em abstrações imprecisas, mas em propostas concretamente dimensionadas. A avaliação não se generaliza, mas enfrenta caso a caso, testando suas hipóteses de mudança e transformação em sua operatividade cotidiana, dentro da tradição teórica do pragmatismo e da instrumentalização. Nessa perspectiva, a processualidade do projeto assume uma dimensão verdadeiramente central, aonde a emergência dos conflitos desvenda os diversos interesses presentes na sociedade. Na verdade, o projeto muitas vezes não apenas considera a história em seu desenrolar como um dado, não aceita a realidade tal como está, mas considera a capacidade do juízo crítico se disseminar conseguindo não só influenciar, mas modificar suas condições de operação. Esse desvendamento-esclarecimento não susta o conflito, mas para se operacionalizar promove acordos e alianças episódicas para o enfrentamento materializado, isto é a obra almejada. O crítico de arquitetura italiana, Manfredo Tafuri, em sua vertente pessimista, reconhece a carga teleológica dessa proposição, pois há uma constante disposição de não "aceitar os fracassos e as dispersões de que a história está impregnada" TAFURI 1981 pág.177. Essa visão indissociável de um otimismo e de uma positividade, carrega o desejo de aprimoramento dos conflitos humanos, afastando-se dos fracassos e as dispersões presentes na história. O empenho crítico se desenvolve dentro de escolhas culturais, que ao final estão pautadas por duas vertentes muito claras, de um lado a inclusão cada vez maior de parcelas expressivas da população, ou o desenvolvimento seletivo e exclusivo para poucos escolhidos. Na verdade, o projeto depois de delimitado por essas duas antíteses - inclusão e exclusão - realiza uma aposta no futuro, investindo na mudança das mentalidades, ou na sua preservação. Há uma clara diferenciação entre levantamento histórico e projetação de valores no futuro, ao final entre análise dos fenômenos e proposição de juízos, pois ao final, teria sentido formular um projeto pessimista?. Entre dedução e indução, descrição e prescrição, diagnóstico e prognóstico, história e anti-história, o projeto emerge como crítica operativa do real, nessa teoria;

"Por outras palavras, revela-se uma característica típica da crítica operativa, o facto de se apresentar quase sempre como um código prescritivo. Esse código poderá ser dogmaticamente sistemático ou metodologicamente amplo e aberto, mas a dificuldade de inserir na história, este tipo de operatividade tem sem dúvida origem na sua oscilação entre a dedução dos valores da própria história e a sua tentativa de forçar o futuro mediante a introdução - mas só no programa crítico - de valores inéditos ou de escolhas a priori". TAFURI 1981 pág.181

A primitiva igreja de Santa Reparata, o primeiro
projeto de Arnolfo de Cambio e o crescimento de
Francesco Talenti (0)

Há um claro movimento de crítica, que se movimenta, do que é, para o que deveria ser, uma atitude que se distancia do descritivo, para se aproximar do prescritivo, isto é, abandona o conforto da leitura objetiva dos fenômenos, para se comprometer com as estruturas desses mesmos fenômenos. O cenário físico não muda os "mundos da vida", mas pensar outros cenários físicos envolve sempre mudanças, questionamentos das operações, seus agentes, suas responsabilidades, seus acordos dentro dos "mundos da vida". O plano e o projeto não são produtos prontos na prateleira, mas processos, que quando disparados decretam caminhos inesperados, dos quais ninguém sai do mesmo modo que entrou. O processo de plano ou projeto disparam reflexões e questionamentos sobre variadas formas de agir dos "mundos da vida", deixando aqueles que estão envolvidos com ele, numa suspensão modificadora. Existe na operação, uma vertente crítica-analítica de um lado, e de outro, um arranjo configurativo, que precisam se reunir nas novas práticas programadas e desejadas, conferindo forma a primeira, e conteúdo a segunda. Há uma ambiguidade entre método dedutivo e método indutivo, submissão e arbitrariedade nas operações de crítica e construção de um outro mundo, ao final um complexo processo de adequação e acomodação de ideias variadas. Muito além da mera resolução de problemas, o projeto se arrisca sugerindo novos arranjos e funcionalidades, que se constituem como promessas de novas práticas e interações entre os humanos. Nesse sentido, é ilustrativo o começo da biografia escrita em 1550 por Giorgio Vassari, de Filippo Brunelleschi, considerado na história da arte ocidental, o fundador da profissão de arquiteto. A partir do projeto da cúpula de Santa Maria del Fiori, na cidade de Florença, no ano de 1418, no dia de 19 de agosto, a Opera del Duomo convoca um concurso para apresentações de soluções para a enorme cobertura sobre o altar do templo. Era um desafio notável para uma catedral que iniciara suas obras em 1296, com projeto de Arnolfo di Cambio, e que tinha no seu altar maior um diâmetro médio de 42,08 metros de vão a ser vencido, numa altura de 58,19 metros do solo da cidade, o que corresponde a um edifício de 15 a 20 andares.

"Filippo nasceu em Florença em 1377, filho de ser Brunellescho Lippi e de Giulia Spini; inscreveu-se na Corporação da Seda em 1398 e na dos Ourives em 2 de julho de 1404. Sua genialidade inovadora só foi conhecida mais tarde; era resultante de uma espantosa clareza racional, diante da qual a perplexidade e as incertezas dos contemporâneos (vejam-se as oposições que precisou superar para impor seu projeto da cúpula da Catedral) mostram-se como resquícios de invencível ilogicidade medieval... Apesar disso, a obra arquitetônica de Brunelleschi tem um fisionomia bem definida e, obviamente, marca nítida ruptura em relação as edificações góticas. Não está totalmente claro até que ponto essa ruptura é devida ao estudo da Antiguidade (as fontes enfatizam as duas temporadas que Brunelleschi passou em Roma e seu interesse pelas proporções dos edifícios antigos) - inclusive das construções paleocristãs - e até que ponto ela foi ajudada pela interperetação racionalista dos edifícios florentinos, desde o Baptistério até o interior da Catedral" VASSARI 2011 pág. 225

Corte da Cúpula em seus diversos estágios. Cúpula interna
em tijolos em espinha de peixe e Cúpula externa com 
montantes de pedra. E, o desenvolvimento dos andaimes (0)

O livro de Vassari,
Le Vite dei piú eccellenti architet, pittori et scuoltori italiani, da Cimabue, insino a tempi nuostri foi publicado em 1550 em Florença e é considerado um dos primeiros tratados da história da arte do mundo ocidental, debruçando-se sobre as vidas de vários artistas. Dentre estes, há um claro destaque (1) para a vida de Filippo Bruneleschi, considerado por muitos o formulador da solução da cúpula de Santa Maria del Fiori em Florença, e primeiro arquiteto da era moderna. VASSARI 2011, enfatiza a grandeza da inusitada trajetória de Brunelleschi, dando-lhe a dimensão da fundação de uma nova práxis; "mas de tão elevado engenho, que podemos dizer ter ele nos sido dado pelo céu para conferir nova forma à arquitetura, desgarrada havia centena de anos, arte na qual os homens daquele tempo haviam desbaratado tesouros, construindo sem ordem, mal, com péssimo desenho,..." VASSARI 2011 pág. 225. Bruneleschi resolve o problema da confecção da cúpula, sem cimbramentos de madeira utilizando duas cúpulas, uma interna com 2,20 metros de espessura, e outra externa com 90 cm de espessura, com um colchão vazio de ar de 1,30 metros, que se auxiliam mutuamente no desafio de vencimento do imenso vão e nos complexos procedimentos de sua execução. Interessante notar o papel do desenho, exatamente no sentido daquela previsibilidade destacada anteriormente, a partir dos novos instrumentos construídos no renascimento, como a perspectiva, as maquetes e os modelos, que antecipam a configuração da obra. Se desenvolve uma separação entre racionalidade do desenho e outra racionalidade do canteiro, uma divisão social do trabalho aonde emerge uma arte liberal e uma arte mecânica. Um caráter predominantemente intelectual, científico e espiritual do artista-arquiteto em contraposição a um operar manual ou mecânico do artesão. Na arquitetura e no urbanismo essa condição de ars liberalis é enfatizada, pois o desenho, que também possui o sentido de desígnio, ou desejo decreta a separação definitiva entre matéria e artista, determinando que a escolha tecnológica não é mais aquela compartilhada por todos, mas a mais adequada para a situação enfrentada. Se generaliza, um processo próximo à ciência de levantamento de hipóteses, processamento das benesses e escolha dos procedimentos, que serão impostos ao canteiro determinando um isolamento olímpico, muitas vezes promotor de um pedantismo artificial. Os verdadeiros artistas ou arquitetos permanecerão atentos aos procedimentos e ensinamentos dos artesãos, que carregam saberes estratificados no longo tempo, e que ao final materializam a obra. A arte, a ciência e a tecnologia se aproximam num dos ofícios mais complexos manipulados pela humanidade, no qual emergem utopia, pragmatismo operativo e conflitos em torno dos desejos.

"A arquitetura pode ser objeto de estudos científicos, seja no seu projetar, no seu construir ou no seu uso. E a ciência pode nos ajudar a compreender a complexidade do fazer arquitetônico, desde a geração das ideias ás interações dos objetos arquitetônicos com os acontecimentos humanos. Os conhecimentos científicos sobre a arquitetura certamente contribuirão para aperfeiçoar os objetos arquitetônicos. Mas, o arquiteto que projeta não precisa se tornar um cientista para exercer bem o seu ofício. Ele precisa - isso sim - saber incorporar os conhecimentos científicos ao seu campo de atuação. Assim fazendo, ele estará em sintonia com o seu tempo, sem precisar renegar a história...'Muitos projetistas ainda mostram sinais de não estarem completamente felizes com uma identidade que eles estão inclinados a pensar como sendo de segunda classe. Alguns estão ansiosos para poder direcionar o seu trabalho a uma arte supostamente autônoma, afastada da arte utilitária, e distanciada do fato de que os projetistas são reprojetistas de coisas.'"(2) MALARD 2013  pág.269

Brunelleschi inaugura uma prática de controle total da execução da obra, mostrando-nos que o acompanhamento do canteiro de obras era tarefa também de concepção, que ia muito além da conformação inicial e controle de proporção, determinando os andaimes, as escoras, as máquinas para subida dos materiais e o apuro dimensional da sua execução. O ourives Brunelleschi configura uma profissão complexa, que se propõe a controlar aspectos variados; a adequação de uma obra a seu contexto, controle de custos, dimensionamento interno e externo apropriados, escolha de materiais, resistência da obra as intempéries naturais, estabilidade estrutural, submissão e atendimento a demandas dos usuários de ordem políticas, sociais e econômicas, capacidade da materialidade proposta de envelhecer bem, dentre outras. Um ofício que envolve uma responsabilidade enorme, pois envolve as expectativas dos povos com relação ao seu vir-a-ser, uma ponte entre operação, possibilidades, futuro, pensamento abstrato e construção simbólica de identidades. Há na cúpula de Santa Maria del Fiori, uma manipulação matemática, uma reflexão física sobre a materialidade empregada, uma dimensão simbólica da coesão, daquela representação-realização para o próprio povo da Toscana, que Florença coloniza. Essa representação do centro, da coesão dos povos da Toscana era uma construção da invenção humana, que competia a partir da manipulação da técnica, da arte e da moral para reunir e congraçar diferentes interesses e visões. A questão da estabilidade estática daquela imensa estrutura, que se desenvolve aos olhos maravilhados e incrédulos da população de Florença não é mais apenas a técnica estratificada pelo tempo e monopólio de uma corporação ou de um local específico, mas fruto humano da inventividade, da pesquisa e do estudo e combinação de diversificados saberes. A proporção alcançada deve significar entre todos os conhecimentos matemáticos uma possibilidade de associação fundamental entre científico, técnico e ético.

"Vasari foi o primeiro a observar que a cúpula de Santa Maria del Fiore não devia ser relacionada apenas ao espaço da catedral e respectivos volumes, mas ao espaço de toda a cidade, ou seja, a um horizonte circular, precisamente ao perfil das colinas em torno de Florença: 'Vendo-se ela elevar-se em tamanha altura, que os montes ao redor de Florença parecem semelhantes a ela.' Portanto, também está relacionada ao céu que domina aquele horizonte de colinas e contra o qual 'parece que realmente combata' - 'e, na verdade, parece que o céu dela tenha inveja, pois sem cessar os raios todos os dias a procuram'... Quando, entre 1435 e 1436, Alberti dedicava a Brunelleschi a versão em língua vulgar do Tratado da pintura, a cúpula havia sido fechada há pouco e ainda faltava a lanterna. Apesar de os florentinos acompanharem com extremo interesse as vicissitudes da construção, certamente ainda não poderia teria ter se formado uma lenda da cúpula. No entanto, Alberti deu uma descrição interpretativa surpreendente da grande calota que havia aparecido (quase por milagre, mas por um milagre da inteligência humana) no céu de Florença. Dizer que a cúpula 'erguia-se acima dos céus' era sem dúvida uma figura literária, mas não um contra-senso; ao contrário, era dizer exatamente a mesma coisa que um século depois Vasari dirá." ARGAN 1992 pág. 95

Interessante notar, que Brunelleschi nunca escreveu uma linha sobre esses seus feitos, mas a história da arte e do homem vem dedicando desde sua materialização uma infindável enxurrada de reflexões, questionamentos e celebrações. A sua realização aponta para aquilo que o próprio Alberti identifica como um dos maiores desafios da arte do construir, a Concinnitas, um ajuste sensível e matemático do conceito ao contexto, uma relação equilibrada entre esforços e resultados. A concinnitas opera a síntese entre as medidas precisas do humano e as imprecisas da natureza, entre o finito e o infinito, gerando a partir não mais de números isolados, mas da relação entre eles, a harmonia e a justificação da geração da forma. A proporção reúne as partes num todo integrado, um corpo harmônico, que nos permite ao mesmo tempo dar identidade as partes e reunir o todo num discurso coerente, a rationatio do arquiteto envolve ratione proportionis, isto é o equilíbrio. A proporção liberta o arquiteto até mesmo da imposição sufocante do cânone da simetria, analogia primeira com o corpo humano de Vitrúvio, mas que pode ter uma outra lógica morfo-compositiva. Os traçados reguladores libertam a intencionalidade humana do caos da multiplicidade infinita, trazendo uma gênese para a forma matematicamente justificada e ancorada no número mágico, que relaciona dimensões. O retângulo áureo, fruto gerado pelo quadrado perfeito e sua diagonal, número relacional que determina o tamanho das cordas nos instrumentos musicais, os furos da flauta, as dimensões das folhas e dos frutos na natureza. Na verdade, um sistema de relações, que o homem observando o caos e a infinidade da natureza procura se apropriar de uma maneira, que compreenda essa complexidade com sensibilidade, a partir de um módulo matemático. A coesão dada ao projeto pelo renascimento coloca em destaque seu caráter coletivo, de eleição de técnicas construtivas, composição das partes e do todo, sistema de proporções, a sagacidade de uma disposição adequada e conciliada com o contexto.

"Cabe, na realidade, à arquitetura e, em particular, à arquitetura vitruviana, i. é, a arquitetura eurítmica, fundada sobre as proporções e a harmonia, dar a esse mundo médio construído pelo entendimento uma realidade extramental, elevando-o na quadrielementariedade do mundo: ao se ler, por exemplo, o De re aedificatoria de Leon Battista Alberti, compreende-se que a arquitetura protege o homem não somente contra as intempéries, mas, mais ainda, contra os golpes da sorte e o caos do real." CAYE 2013 pág. 284 e 285

Mas, porque resgatar um fato do século XV no Renascimento, como a Cúpula de Santa Maria del Fiori em Florença, para pensar a produção do projeto numa época de profundas mudanças tecnológicas como a nossa contemporaneidade? Nossa realidade, perpassada pela velocidade das novas Tecnologias de Informação e Comunicação (TICs) sofreu revoluções e rupturas, e estaria submetida a outros paradigmas? Apesar disso tudo, das profundas mudanças tecnológicas e do seu impacto em nossas vidas cotidianas, a humanidade permanece sem avanços significativos na fronteira da penúria, da fome e da pobreza. No último ano de 2019, com a Pandemia do Covid-19, a concentração de renda se radicalizou no mundo, abandonando parcelas expressivas da humanidade, como se elas não fizessem parte do projeto humano. Uma luta encarnecida pela apropriação de bens e conhecimentos continua a operar e ser a justificativa para as conquistas do desenvolvimento, nessas condições avançamos muito pouco na adoção de recursos renováveis, ou na inclusão de pessoas ao âmbito da previsibilidade. No Brasil basta olhar para as requisições do auxílio emergencial, nas nossas grandes cidades disponibilizado pelo Governo Federal, que nos mostram um país precarizado, sem garantias e sem estabilidade. Em São Paulo foram 2,6 milhões de pessoas, no Rio de Janeiro 1,6 milhão, o que representa 13% das suas populações, nas cidades mais ricas do Sudeste, segundo dados do Portal da Transparência de junho do ano passado. O número de “invisíveis” da economia brasileira chega a valores impressionantes, ultrapassou meio milhão de pessoas em Salvador (762 mil), Fortaleza (747mil), Manaus (634 mil) e, a Capital Federal, nossa cidade com maior renda per capita, Brasília (562mil). A alocação do auxílio emergencial desnuda um número impressionante de “flagelados” da crise sanitária, constavam, também, Belo Horizonte (494 mil), Belém (453 mil), Recife (420 mil) e Curitiba (339 mil).(3)

É preciso reconhecer, que o sistema produtivo atual bloqueia num preconceito cronológico e ideologicamente interessado uma reflexão ética sobre a técnica, sua manipulação, seu compartilhamento e seu projeto. Nosso projeto político, cultural, científico e metodológico não consegue se movimentar pela inclusão, mas apenas pela exclusão, cada vez maior de parcelas expressivas da humanidade. Após as críticas de Heidegger, de Adorno e de Horkheimer de que a racionalidade instrumental do capitalismo é intrinsicamente ambígua, pois envolve um duplo estímulo, de um lado, uma vertente de vida e de criação, mas de outro, uma clara direção pela morte e destruição do humano. O resgate dos debates sobre a fundação da arquitetura, no aparentemente distante século XIV nos trazem ao real combate do que significa a previsibilidade para a humanidade, uma possibilidade de humanização. O projeto, e seu resultado a arquitetura passam a ser mais que uma arte, mas a reunião de todas elas, não apenas as liberais, mas também as mecânicas, um método geral de concepção, ordenamento e execução do mundo a serviço da instalação da humanidade. As reflexões materiais de Brunelleschi e as conceituais de Alberti nos colocam diante da ética do construir o mundo efetivamente humanizado, as técnicas de que dispomos, sejam quais forem não devem ser descartadas, desde que tenham como premissa a manutenção do equilíbrio do planeta, e a transmissão de uma ideia simples; a inclusão de todos no progresso e no desenvolvimento.

NOTAS:

(0) Imagens retiradas da Palestra do professor Luca Giorgio de Florença na Universidade de Alicante na Espanha sobre a Construcción y restauraciones de la Cúpula de Santa María dei Fiori en Florencia assistida em 23/01/2021

(1) Esse destaque pode ser identificado pelo número de páginas dedicadas as diversas vidas dos variados artistas do livro de Giorgio Vassari; a vida de Brunelleschi se desenvolve da página 225 a 251 (26 páginas), enquanto a de Antonio Filarete da página 272 a 273 (2 páginas), ou a de Leon Baptista Alberti da página 288 a 291 (4 páginas).

(2) Essa última parte é uma citação de MALARD 2013 de Jan Michl, professor da Escola de Arquitetura de Oslo, na Noruega no seu artigo; On seeing Design as Redesign: an Exploration of a Neglected Problem in Design Education - Scandinavian Journal of Design History n.12 pág.7-23.

(3) Os dados foram tirados da coluna jornal Correio Brasiliense de Luiz Carlos Azedo de 27/1/2021, Nas entrelinhas: A vacina dos camarotes, colhida no dia 27/01/2021 do site (correiobraziliense.com.br) 

BIBLIOGRAFIA:

ARGAN, Giulio Carlo - O significado da cúpula em História da Arte como História da Cidade - Editora Martins Fontes São Paulo 1993

AZEDO, Luiz Carlos - Nas entrelinhas: A vacina dos camarotes - Correio Brasiliense, colhida no dia 27/01/2021 do site (correiobraziliense.com.br)

CAYE, Pierre - A questão da proporção, reflexões para um humanismo do quadriviumin BRANDÃO, Carlos Antônio Leite, org. - Na gênese das racionalidades modernas em torno de Leon battista Alberti - Editora da UFMG, Belo Horizonte 2013

LIGUORI, Guido e VOZA, Pasquale - Dicionário Gramsciano - Editora Boitempo São Paulo 2017

MALARD, Maria Lucia - Projeto Arquitetônico e Pensamento Científico - in BRANDÃO, Carlos Antônio Leite, org. - Na gênese das racionalidades modernas em torno de Leon battista Alberti - Editora da UFMG, Belo Horizonte 2013

MICHL, Jan - On seeing Design as Redesign: an Exploration of a Neglected Problem in Design Education - Scandinavian Journal of Design History n.12 pág.7-23.

TAFURI, Manfredo - Teorias e História da Arquitetura - Editorial Presença, Lisboa 1979

VASSARI, Giorgio - Vidas dos Artistas - Editora Martins Fontes, São Paulo 2011 

segunda-feira, 4 de janeiro de 2021

Projeto e Crítica, em busca de um outro normal, a partir da pandemia de Covid-19

Redes de solidariedade se constituíram nas favelas para o combate a pandemia de Covid-19

O presente texto aborda a disputa entre narrativas típica de nosso tempo contemporâneo, de um lado o pensamento conservador, e de outro, as proposições progressistas no Brasil e suas determinações  para a ordenação espacial das cidades. Inicialmente é abordado, a incapacidade dos aparatos privados de saúde de oferecer segurança no enfrentamento do combate a Pandemia de covid-19, frente aos sistemas públicos de saúde, que denunciou a impossibilidade de monetarização de alguns setores por sua própria efetividade, e questões éticas. Por outro lado, a incapacidade do Brasil de garantir um desenvolvimento econômico sustentável, por vários anos também é apontado como mais um dos fracassos da ideologia conservadora e neoliberal, no país, que prometeu, mas não entregou, um crescimento econômico virtuoso e continuado. Identifica-se, que mesmo nos governos posicionados mais a esquerda, a ideologia neoliberal foi hegemônica, dominando as ações da macro economia do país. As cidades e seus arranjos espaciais são colocados como centrais na promoção de um desenvolvimento não só econômico, mas também social. E, por último nessas mesmas cidades identificasse movimentos sociais, no Rio de Janeiro e São Paulo, que se articularam a partir da presença da pandemia, e que vem demonstrando novas possibilidades de manutenção e reprodução dos mundos da vida. O projeto é aqui visto como proposição crítica, que se afasta da mera pré figuração de imagens icônicas, mas que se pretende mobilizador dos agentes tradicionalmente alijados do desenvolvimento nacional, fazendo os formular suas próprias aspirações de cidade.

A pandemia de Covid-19, reconhecida pela Organização Mundial de Saúde (OMS) em março de 2020 determinou uma série de mudanças no cotidiano de uma infinidade de pessoas, que de uma hora para outra tiveram de se manter em casa, evitar aglomerações e reduzir sua mobilidade, disparando uma problematização generalizada sobre a forma de operar do capitalismo contemporâneo. O espectro de uma grande recessão, sem paralelo na história econômica passou a rondar o mundo todo, que presenciou de forma abrupta uma enorme contenção da circulação de mercadorias e de pessoas. A expressão imputada a Margareth Thatcher, nos anos noventa, de que não havia alternativa ao modelo neoliberal - TINA There is no alternative - foi aposentada, pelo menos das práticas dos Estados Nacionais. De uma hora para outra, os mais diversos governos abandonaram sem pestanejar a austeridade fiscal, no seu tripé de sustentação; as metas de inflação, o superávit primário e a flexibilidade cambial. Injetando nas suas economias subsídios voltados para os desempregados ou fragilizados pelo declínio da mobilidade dos fluxos, em montantes nunca vistos, nem nos tempos da hegemonia keynesiana e do fordismo. Por outro lado, a avaliação da performance dos sistemas de saúde no mundo todo foi colocada em cheque, mostrando de forma imediata e direta a ineficiência da sua mercantilização nos sistemas de securitização, promovida pela onda neoliberal. No Brasil, os planos de saúde privados no primeiro momento, se recusaram a realizar os testes de detecção da doença, ou até mesmo as internações mais graves, que demandaram longas internações em UTIs. A doutrinação sobre a primazia dos agentes de mercado, frente as "estruturas ineficientes do Estado", que vinha se desenvolvendo como narrativa única, desde o final dos anos setenta do século XX parece sofrer um desvelamento definitivo, ou pelo menos, pode agora ser questionada. O historiador Daniel Aarão Reis, num artigo no jornal O Globo, em 18 de abril de 2020, já alertava para os diferentes impactos na sociedade da pandemia, assinalando que os barcos para o enfrentamento da tempestade eram bem diferenciados;

"Em artigo sobre a atual pandemia, Nick Paumgarten narrou a história de um capitalista que joga na Bolsa de Valores. O homem é esperto e descreveu sua última proeza. Ao perceber o ritmo de expansão do vírus na China, suspendeu as férias numa estação suíça de esqui, investiu firme em ações de uma fábrica de equipamentos médicos nos Estados Unidos, botou dinheiro em empresas cujas ações subiriam com a disseminação universal da doença, e se mandou para sua casa de campo, bem longe da cidade onde mora. No caminho para o autoconfinamento, comprou o que pôde de máscaras cirúrgicas e luvas para si mesmo e para a família — mulher e três filhos — dois bujões de oxigênio e uma sacola de cloroquina. A salvo, comentou que ficaria feliz e em segurança até o próximo mês de outubro, acompanhando pelo computador a valorização dos investimentos. Até o momento, seu lucro era de 2.000%. Tudo na perfeita paz, dentro da ordem, respeitando a lei. Ainda há quem ouse dizer que estamos no mesmo barco. Como se sabe, há metáforas que iluminam, outras obscurecem. A do barco pertence ao segundo tipo. Flávia Oliveira colocou o dedo na ferida. Se a tempestade é a mesma, as condições de seu enfrentamento são diversas, havendo barcos de diferentes tipos: dos poderosos navios de casco de ferro aos barquinhos de papel que podem afundar a qualquer momento. Sem contar os que nem barcos têm e boiam no mar revolto, agarrados a pedaços de madeira encontrados ao léu. Este é o mundo que nos foi concedido viver." REIS, Daniel Aarão em 18/04/2020 jornal O Globo

A pandemia disparou no seio da sociedade a diferença de condições para o seu enfrentamento, uma minoria improdutiva e especulativa, que vive por ter reservas, e que aplica seus recursos gerando mais moeda para si própria, e que não precisa de interação social para tal. O progresso de seu horizonte de consumo não depende de sua interação social, apenas de uma conta bancária, num paraíso fiscal desregulamentado, que lhe garanta isenção de impostos. A ideologia da celebração da empresa, redução de impostos e condenação do Estado como uma instância ineficiente baseada em interesses corporativos de sua própria casta começou a disseminar pelo mundo a partir do fim dos anos setenta.  A austeridade fiscal que prometia liberar o empresariamento em todos os setores da sociedade, desregulamentar o sistema financeiro, que pela ampliação das Tecnologias de Informação e Comunicação (TICs) permitiria a pulverização dos investimentos para micro-empreendedores não realizaram suas promessas, e determinaram o declínio das taxas de crescimento econômico em todo o mundo,. A ampliação da mais valia, do lucro, da competição desenfreada, tão emblematicamente expressa nas afirmações de Thatcher, de que "não há refeição de graça", não entregaram as taxas de crescimento prometidas. No Brasil, as taxas de crescimento do país mostram de forma clara, o fracasso do neoliberalismo; em 1950 7,1%, em 1960 6,1%, em 1970 8,8%, em 1980 3,0% (a década perdida), em 1990 1,9%, em 2000 3,4% (1). Os governo de FHC, durante a segunda metade da década de noventa e início do novo século, marcados pelo Plano Real, pelas metas de inflação e pela responsabilidade fiscal já mostravam esse fato. Quando olhamos a mais próxima, a primeira década de 2000 constatamos uma performance errática, pois; em 2000-01 2,5%, em 2001-03 4,3%, em 2004 1,9%, de 2004-08 4,8%, em 2009 -0,2% (recessão), em 2010 7,6%. Nos anos Lula, apesar do boom das commodities e das promessas de mudanças na toada neoliberal, que em parte se realizaram, o crescimento brasileiro mostra-se titubenate e errático, sendo atingido em 2009 pela forte recessão no centro do capitalismo; nos EUA. De certa forma, mesmo nos governos do PT, apesar da reposição do poder de compra do salário mínimo, da decorrente ampliação do mercado interno, e da tímida recuperação do índice de GINI, que de 2001 a 2012 passa de 0,596 para 0,530 (2), a macropolítica neoliberal foi mantida. Na segunda década, as taxas de crescimento de 2011-14 de 2,1%, já nos governos Dilma Roussef aonde se ensaia de forma tímida a mudança da matriz econômica, com a diminuição dos altos juros;

"Os lucros apropriados pelo setor financeiro, que representavam 10% do lucro das corporações em 1950, passaram para mais de 30% em meados da década de 2010. No Brasil os juros e os lucros do setor financeiro continuaram elevados nos anos 2010, conforme pode ser constatado pelos lucros dos grandes bancos. A outra face dessa moeda é a precarização do trabalho e o aumento da desigualdade e da concentração de renda em escala mundial. Agora, com a Covid-19, o desemprego vai bater recorde na maioria dos países. No Brasil já está em 14%, e tende a aumentar no ano que vem. De acordo com o IBGE, os 10% mais ricos da população brasileira concentravam 43% da massa de rendimentos em 2018, enquanto os 10% mais pobres ficavam com apenas 0,8%. O aumento da desigualdade e da concentração de renda é uma característica marcante da década de 2010, com perda de direitos dos mais pobres e a consequente deterioração da democracia." MANTEGA, G. Folha de São Paulo 26/12/2020

No campo das cidades e da sua reprodução, o conluio entre o mercado financeiro e a produção imobiliária pautou as atuações dos governos municipais, a mercantilização e a financeirização do espaço urbano contaminou o mundo todo, bloqueando e impedindo o direito à cidade. RIBEIRO 2020  e ROLNICK 2015 apontam como o mercado imobiliário mundial foi captado pela expansão dos serviços financeiros no mundo todo, determinando a mercantilização da moradia. Com o declínio da indústria e ascensão dos serviços de maneira geral, e, mais especificamente nos financeiros e de securitização, as cidades globais passam a competir por capitais ansiosos, que cobram rendimentos quase imediatos. A cidade, que durante séculos foi o local precípuo da organização da vida cultural, aonde o excedente era investido em monumentos e bens públicos, considerados como dádivas comuns e não como mercadorias. Era, mesmo no capitalismo em seu o estágio industrial de meados do século XIX até o final dos anos setenta do século XX, uma concentração de criatividade e meios de produção, que geravam condições privilegiadas para a reprodução coletiva. Havia já um gradiente, que anunciava a liquefação do capital fixo da arquitetura da cidade e a emergência de uma volatilização dos ativos, que passaram nos anos oitenta e noventa de forma mais rápida a realizar o valor de troca. MONTE-MOR 2005, nos mostra como o industrialismo se expandiu num desenvolvimento ao mesmo tempo explosivo e implosivo, fazendo a cidade chegar a todos os cantos. O campo se urbanizou, passando com as TICs a estarem conectados com os mercados internacionais, determinando os ritmos e interesses das colheitas pelo mundo todo.

"O encontro - explosivo e implosivo (3) - da cidade com a indústria modificou a natureza da cidade concentrando as forças produtivas em proporções antes impensáveis, ao mesmo tempo em que estendeu o tecido urbano sobre as periferias, os distritos e sobre outras cidades, subordinando, virtualmente, todo o espaço social à lógica do industrialismo. A cidade, lugar tradicional da festa, do poder e do excedente, espaço da urbanidade, foi tomada pelas demandas da produção e acumulação industrial capitalista e reduzida assim a lugar privilegiado para a reprodução coletiva (e barata) da força de trabalho e para a concentração dos meios de produção requeridos pela indústria(4)." MONTEMOR 2005 página276

As eleições nos EUA, e no Brasil, nos anos de 2018 e 2020 determinaram a ascensão de um novo conservadorismo negacionista, que reafirmou de forma perversa um neoliberalismo já em revisão e questionamento em outras partes do mundo. A incapacidade de superar as crises de 2008 e de 2016, nos dois países determinou um respiro de alento pela presença dos auxílios emergenciais concedidos pelos dois Estados, que contiveram a gravidade da recessão inicialmente desenhada no horizonte. No entanto, percebe-se claramente no Brasil a ausência de uma política assertiva e afirmativa de combate da desigualdade, havendo a clara desconstrução dos sistemas de informação sobre a pobreza. A desestruturação dos Centros de Referência de Assistência Social (CRAS) municipais, que orientavam a concessão do Bolsa Família determinou a não construção de uma rede de proteção, que poderia nos trazer informações dinâmicas sobre a precariedade econômica. A reconstrução republicana de uma rede de apoio e solidariedade, que identifique os bolsões de precariedade de forma precisa, bem como as políticas assistencialistas necessárias e sua evolução e eficiência no tempo devem ser feitas já.  A rede de proteção deve ser reconstruída, anexando-se considerações sobre a qualidade espacial e sanitária de nossas cidades para que entendamos com maior acuidade sobre os efeitos negativos na coesão social da nossa desigualdade sócio espacial. Os fatores estruturais da desigualdade, tais como; educação, saúde, direitos humanos e meio ambiente precisam ser mapeados e espacializados nas cidades brasileiras, mostrando de forma clara que é urgente atuar nos campos da qualificação urbana, enfrentando de forma articulada questões; do saneamento, transporte de massas, habitação de interesse social, espaços de convívio e lazer, qualificação de professores e profissionais de saúde. O urbano e sua capacidade de promoção de uma maior qualidade de vida, aonde há presença de benfeitorias de transporte, sanitárias, amenidades naturais, cultura, educação, saúde e lazer passam a ser centrais.

"Tal interpretação sugere que há modificações cruciais em curso no fato urbano, o qual deixaria de ser apenas palco e cenário privilegiado para o processo industrial para se fortalecer cada vez mais como fato político, social e econômico em si mesmo, realimentando-se da (re) politização do espaço social. A ênfase exclusiva no cerscimento econômico e na produção industrial na metrópole e em sua região cede espaço a uma outra ênfase, desta feita centrada no urbano e na reprodução coletiva, para a qual convergem a problemática ambiental, que coloca límites ao processo industrial, e a  busca de alternativas populares, (re) criando formas de organização econômica das populações excluídas das dinâmicas capitalistas centrais." MONTEMOR 2005 página284

Nesse sentido é interessante se debruçar sobre índices de performance de comunidades precárias e densas como Paraisópolis e Maré, em São Paulo e Rio de Janeiro, que ao contrário do esperado, acabaram com desempenho superior no âmbito pandêmico a alguns bairros formais, a partir da constituição de redes de solidariedade e informação, que se constituíram no próprio seio desses espaços. No Rio de Janeiro, na Favela da Maré, a partir da desconfiança da subnotificação de casos, nos espaços das favelas e de periferia foi estruturado um coletivo de monitoramento dos casos, que no caso da Maré desembocou numa rede de sustentabilidade para o precariado dessas áreas. Em São Paulo, em Paraisópolis, a comunidade se mobilizou para sensibilizar e informar a população do assentamento, acabando por gerar projetos como o da horta urbana, que empregou e abasteceu várias famílias. Além disso foi estruturado uma rede de resgate na favela, que disponibilizou equipes e equipamentos de saúde, que garantiram uma das melhores performances no município. Redes de solidariedade, que arrecadaram recursos privados e públicos totalmente independentes do Estado, municipal, estadual ou federal, a partir de iniciativas de organizações locais mostraram formas de estruturação eficientes e solidárias, e ao mesmo tempo distantes da lógica concorrencial e mercantil. A emergência de uma outra urbanidade comunitária, e baseada numa economia solidária trouxe na prática experiências anti-capitalistas no enfrentamento da crise. No entanto, agora com a persistência da Pandemia de Covid-19 no tempo, com o declínio das doações privadas, o sistema de ambulâncias e do posto de saúde de Paraisópolis começam a apresentar deficiências e fragilidades. É certo, que a Pandemia escancara a desigualdade da sociedade brasileira, aonde territórios inteiros sofrem com deficiências sanitárias inexplicáveis, que impossibilitam os procedimentos mais básicos de higiene. A reprodução ampliada dos mundos da vida do precariado brasileiro ainda se defronta com condições arcaicas de acumulação primitiva por parte de suas elites. O desenvolvimento da economia brasileira parece querer continuar preso ao seu modelo excludente, aquilo que FERNANDES 1990 identificava como "mudança conservadora ou transição prolongada", aonde a última modernidade é alavancada pelo mais profundo arcaísmo, que se recusa a distribuir benfeitorias.

"Os esforços que famílias pobres, urbanas e rurais, fazem para garantir a seus filhos o acesso à educação expressa com clareza o compromisso da população com a reprodução ampliada da vida... Certamente, a questão econômica está subjacente a qualquer ação humana, mas não pode mais ser o objetivo precípuo de uma política urbana e mesmo regional; questões contemporâneas mais determinantes e diretamente ligadas à ação coletiva ganham maior importância no quadro de uma sociedade urbana. Por outro lado, não há como questionar a importância da evolução de movimentos sociais antes restritos à instância social e política e hoje se movendo para práticas e alternativas econômicas coletivas que lhe dão de fato sentido social, ambientalmente responsável e assim, sustentável." MONTEMOR 2005 página285

Enfim, apesar dos duros retrocessos do período Temer-Bolsonaro no Brasil, os movimentos sociais urbanos brasileiros começam a manifestar uma resistência importante ao modo de produção competitivo, que na verdade precisam ser contemplados pelo projeto contra-hegemônico do desenvolvimento social do país. A recuperação de práticas solidárias no seio das favelas e comunidades precarizadas parecem apontar novas esperanças para um outro normal, a partir da grave crise da Pandemia de Covid-19.

NOTAS:

(1) MALDONADO, Eduardo Filho, FERRARI. Fernando Filho,  MILAN, Marcelo - Por que a economia brasileira não cresce dinâmica e sustentavelmente? Uma análise kaleckiana e keynesiana - disponível em Revista Sociedade e Economia vol.5, Campinas 2016  em https://www.academia.edu  http://dx.doi.org/10.1590/1982-3533.2016v25n2art2 coletado em 28/12/2020

(2) Indice de GINI foi criado pelo matemático italiano Conrado Gini, é um instrumento para medir o grau de concentração de renda em determinado grupo. Ele aponta a diferença entre os rendimentos dos mais pobres e dos mais ricos. Numericamente, varia de zero a um (alguns apresentam de zero a cem). O valor zero representa a situação de igualdade, ou seja, todos têm a mesma renda. Apenas como exemplo; o primeiro país é a Hungria possui um índice de GINI de 0,244, o segundo, a Dinamarca de 0,247, o terceiro, o Japão de 0,249. A posição da Argentina é a de 109 com um índice de 0,522. Dados do IPEA para 2004.

(3) A descrição da implosão e explosão da cidade está presente em LEFBVRE 1969, para se referir ao adensamento e concentração das centralidades, e ao mesmo tempo, para sua extensão e espraiamento das cidades.

(4) O papel do urbano no contexto da produção e acumulação capitalista foi discutido por autores neo marxista franceses como; CASTELLS 1977, 1983, LOJKINE 1981 e TOPALOV 1979 

BIBLIOGRAFIA:

CASTELLS, Manuel - Movimientos sociales urbanos en América Latina: tendencias historicas y problemas teóricos - PUC Editora Lima 1977

FERNANDES, Florestan - A transição prolongada, o período pós-constitucional - Editora Cortez São Paulo 1990

CASTELLS, Manuel - A questão urbana - Ediora Paz e Terra Rio de Janeiro 1983

LEFEBVRE, Henry - O direito à cidade - Editora Documentos, São Paulo 1969

LOJKINE, Jean - O Estado capitalista e a questão urbana - Editora Martins Fontes São Paulo 1981

MALDONADO, Eduardo Filho - Marx e o capitalismo contemporâneo - em Adeus ao desenvolvimento, a opção do governo Lula org. PAULA, João Antonio - Autêntica Belo Horizonte 2005

MALDONADO, Eduardo Filho, FERRARI. Fernando Filho,  MILAN, Marcelo - Por que a economia brasileira não cresce dinâmica e sustentavelmente? Uma análise kaleckiana e keynesiana - disponível em Revista Sociedade e Economia vol.5, Campinas 2016

MONTE-MOR, Roberto Luís - Por uma política urbanaem Adeus ao desenvolvimento, a opção do governo Lula org. PAULA, João Antonio - Autêntica Belo Horizonte 2005

RIBEIRO, Luiz César Queiroz - As metrópoles e o direito à cidade na inflexão ultraliberal da ordem urbana brasileira - Texto para discussão 012 – INCT Observatório das Metrópoles. Disponível em: https:// www.observatoriodasmetropoles.net.br/wp-content/uploads/2020/01/TD-012-2020 Final.pdf . Acesso em: 20 dezembro 2020.

ROLNIK, Raquel -  Guerra dos lugares. A colonização da terra e da moradia na era das finanças - Editora Boitempo  São Paulo 2015

TOPALOV, Christian - La urbanización capitalista: alguns elementos para su análisis - Editorial Edicol México 1979