sábado, 19 de dezembro de 2015

O homem cordial de Sérgio Buarque de Holanda e os nossos políticos

Sérgio Buarque de Holanda
*1902-+1982
Em 1936 Sérgio Buarque de Holanda lançava o livro Raízes do Brasil, um clássico para a compreensão desse misterioso fenômeno, que é o nosso país. Nesse livro havia um capítulo intitulado O Homem Cordial, que descreve o comportamento social e íntimo do brasileiro a partir de dualidades cotidianas, tais como; Estado e Família, Indivíduo e Cidadão, Urbano e Rural, Privado e Público, Mestre e Aprendiz, Funcionário e Proprietário. O capítulo é leitura obrigatória para elucidar, ou pelo menos se aproximar dos recentes fatos políticos brasileiros, e da prática cotidiana de nossos políticos, particularmente os recorrentes escândalos de corrupção e tráfego de influência. Importante salientar a maneira como o termo cordial é utilizado por Holanda como um conceito muito além da concórdia e sentimentos positivos, numa longa citação ele próprio explicita seu conceito;

"Cumpre ainda acrescentar que essa cordialidade, estranha, por um lado a todo formalismo e convencionalismo social, não abrange , por outro, apenas e obrigatoriamente, sentimentos positivos e de concórdia. A inimizade bem pode ser tão cordial como a amizade, nisto que uma e outra nascem do coração, procedem, assim, da esfera do íntimo, do familiar, do privado." HOLANDA 2012 pág.102

A primeira distinção importante feita por Holanda no texto é entre familia e estado. O Estado não é uma ampliação do âmbito da Familia, mas em todos os aspectos sua descontinuidade, e sua antítese. Pois a ordem doméstica familiar é determinada pelo reconhecimento da diferença de uma diversidade de personalidades, portanto carregada de subjetividades, enquanto a ordem estatal deveria ser pautada pela impessoalidade e pela objetividade.

A segunda distinção feita pelo autor é entre indivíduo e cidadão, enquanto no primeiro reverbera a ordem doméstica, familiar e carregada de pessoalidade, que no caso brasileiro está submetida às leis do patriarcado agrário, no segundo, se agregam; o contribuinte, o eleitor elegível, recrutável para os interesses da nação, responsável perante as leis da cidade, e da impessoalidade. No homem cordial brasileiro essa cisão parece não ter se realizado, persiste a indefinição entre os limites do indivíduo e do cidadão.

A terceira distinção importante feita pelo autor, e particularmente relevante para esse blog é entre fenômeno Rural e Urbano. Enquanto no Rural predomina um certo isolamento, uma insubordinação a preceitos e controles sociais estabelecidos e uma hierarquia rígida. No Urbano prepondera a comunicação, o estabelecimento de regras e comportamentos sociais e a possibilidade de mobilidade ou subversão da hierarquia instituída. Holanda menciona a criação do curso de Direito em São Paulo e Olinda em 1827, em cidades ainda provincianas, mas no fenômeno urbano, como o arranque dos filhos da intimidade familiar para uma vida de formação do homem público;

"E não haveria grande exagero em dizer-se que, se os estabelecimentos de ensino superior, sobretudo os cursos jurídicos, fundados desde 1827 em São Paulo e Olinda, contribuiram largamente para a formação de homens públicos capazes, devemo-lo às possibilidades que, com isso, adquiriam numerosos adolescentes arrancados aos seus meios provinciais e rurais de 'viver por si', libertando-se progressivamente dos velhos laços caseiros..." HOLANDA 2012 pág.49

Esse transplante para o meio urbano celebra a independência das leis do patriarcado familiar e agrário brasileiro, instituindo pela nova vivência uma certa impessoalidade, e citando Joaquim Nabuco, celebra de forma dramática, anunciando a morte paterna e a emergência do domínio público sobre o privado;

"Por isso mesmo Joaquim Nabuco pôde dizer, 'que em nossa política e em nossa sociedade [...], são os órfãos, os abandonados, que vencem a luta, sobem e governam.'" HOLANDA 2012 pág.50

Mas a predominância dos domínios do privado sobre o público logo se manifestará numa distinção fundamental apontada pelo autor, entre funcionário patrimonial e o burocrata moderno, onde o primeiro entende a gestão pública como um benefício pessoal a ser auferido por ele próprio e pelos seus, enquanto o segundo, entende o Estado como impessoal e objetivo. Interessante a argumentação de Sérgio Buarque de Holanda, que parece se reportar ao desenvolvimento da personalidade de qualquer ser humano da infância à maturidade.

Nossa urbanidade ou nosso desenvolvimento, portanto não está plenamente realizado, permanecendo ativa e fecunda a influência dos padrões formados e informados no meio rural e patriarcal, mantendo-se ao final, uma certa imaturidade.