domingo, 30 de janeiro de 2022

As sociedades Pré colombianas, o exemplo do Império Inca na América do Sul


A capital do Império Inca, Cuzco e sua sobreposição de
Patrimônios; pré colombianos e espanhóis

No âmbito da disciplina de História e Teoria da Arquitetura 1, na contextualização das civilizações da antiguidade pré clássica, uma outra sociedade também foi apresentada aos alunos fora do eixo euro-cêntrico, o Império Inca. Uma organização social com alto desenvolvimento tecnológico, que também se articula com um acontecimento que é uma dádiva do planeta, o Vale Sagrado do Urubamba no altiplano dos Andes, assim como as sociedades que se desenvolveram em torno dos rios Tibre, Eufrates e Nilo, no Oriente Próximo. Uma síntese referente a um tempo posterior ao período estudado pela disciplina, mais vinculado ao período da Reforma e da Contra Reforma do Maneirismo europeu, a inserção de uma cultura pré colombiana cumpre o papel de abrandamento da vertente euro cêntrica de nossa matriz arquitetônica e urbanística, buscando a multilateralidade do desenvolvimento cultural. O Império Inca, nos coloca diante de um relato histórico que problematiza a visão centrada numa unidirecionalidade evolutiva e hegemônica da cultura ocidental europeia, questionando e oferecendo a visão de uma diversidade de desenvolvimentos que reforça a ideia de reavaliação da linearidade evolutiva das sociedades humanas. A multipolaridade do desenvolvimento das civilizações humanas, que na verdade não podem ser avaliadas como mais capacitadas ou menos, simplesmente pela manipulação de tecnologias destrutivas, ou de guerra.

"Como sugeriu Hobsbawn, uma das peculiaridades das quais nasce o marxismo de Gramsci está exatamente no fato de ele haver vivido tanto a experiência de uma região extremamente atrasada, marginal e periférica, como a Sardenha, quanto a de uma grande cidade industrial capitalista como Turim." DEL ROIO 2017 página 38

Na verdade, a história e a teoria inferida a partir dela, não é um relato apenas sobre o passado, mas é uma reflexão sobre o nosso presente e o nosso futuro, enquanto identidade, tecnologias e compartilhamentos. Essa trans temporalidade tão presente nas ações de plano e projeto, a partir da lógica de gestão do território, seja na constituição do abrigo, da cidade, ou da região, precisa se debruçar sobre a história a partir dos novos olhares do presente e do futuro. Nosso presente impôs de forma determinante um novo paradigma da adequação entre atividade e produção humanas e os impactos sobre os humores do planeta Terra. Nesse sentido, relatos, narrativas, vestígios e conhecimentos esquecidos pela história estão abertos a apropriações variadas e ricas, capazes de mudar trajetórias e comportamentos. Uma questão central, em nossa contemporaneidade é que o silenciamento dos grupos subalternos ou derrotados pela colonização europeia invisibiliza identidades, tecnologias, conhecimentos, comportamentos e culturas, que devem ser reavaliados e problematizados frente ao novo paradigma. Longe da mistificação romântica ou dos alinhamentos automáticos, o que se pretende para a teoria do plano e do projeto é entender como a manipulação de recursos e dádivas naturais podem trazer o bem viver para o humano, buscando sempre a consciência, sem qualquer traço arrogante, que a sucessão de fatos nos ensina. É sempre bom lembrar, que o que se busca é uma nova forma de interação entre homem e natureza, uma sintonia fina entre ocupação e manipulação do território mais sensível e delicada do que aquela que hoje exercemos.

"Não fiquemos demasiado lisonjeados com nossas vitórias sobre a natureza. Esta se vinga de nós por toda vitória desse tipo. Cada vitória até leva, num primeiro momento, às consequências com que contávamos, mas, num segundo e num terceiros momentos, tem efeitos bem diferentes, imprevistos, que com demasiada frequência anulam as primeiras consequências. As pessoas que acabaram com as florestas na Mesopotâmia, na Grécia, na Ásia Menor e em outros lugares para obter terreno cultivável nem sonhavam que estavam lançando a base para a atual desertificação dessas terras, retirando delas, junto com as florestas, os locais de acúmulo e reserva de umidade [...] Os introdutores da batata inglesa na Europa não sabiam que, com o tubérculo farináceo estavam disseminando a escrofulose. E, assim, a cada passo somos lembrados de que não dominamos de modo nenhum a natureza como um conquistador domina um povo estrangeiro, ou seja, de alguém que se encontra fora da natureza - mas fazemos parte e estamos dentro dela com carne sangue e cérebro e todo o nosso domínio sobre ela consiste em que, distinguindo-nos de todas as outras criaturas, somos capazes de reconhecer suas leis e aplicá-las corretamente." (ENGELS, A Dialética da Natureza contracapa Boitempo

Enfim, a sucessão factual da série histórica não nos autoriza a novas arrogâncias e certezas desmedidas, mas demanda um outro pensar, agir e atuar, que não condene ou celebre de forma mecânica e automática os impasses e opções por que passamos, mas nos cobra a conformação de formas de monitoramento e medição constantes que pautem de forma continuada nossa ocupação. O fato, é que a sociedade Inca com um domínio mais apurado de técnicas agrícolas e colheitas muito mais generosas será derrotada pelo Império Espanhol, no massacre da Batalha de Cajamarca, em 16 de novembro de 1532 mostrando-nos que, na verdade, o domínio de artefatos de destruição e guerra (o mosquete e o canhão) determinaram a sua derrota. Apesar da inferioridade numérica da Espanha, pois segundo relatos eram 168 espanhóis, 62 cavalos, vários mosquetes e um canhão, contra 30 mil soldados incas acampados em Pultumarca, nas proximidades da cidade inca de Cajamarca, na região da cordilheira andina (2.720 metros de altitude), no norte do atual Perú, próximo a fronteira do atual Equador. Francisco Pizarro era o espanhol que recebeu a nomeação do rei de Espanha como governador e capitão geral para promover a conquista do Vice Reinado do Perú era então o comandante das tropas espanholas. As armaduras, capacetes e espadas metálicas, os cavalos, os mosquetes e o canhão, artefatos e técnicas de longo desenvolvimento foram confrontados com boleadeiras, arcos e flechas, armaduras de lã de alpaca e ornamentos de ouro e prata. Na verdade, além das fragilidades de suas tecnologias bélicas, havia uma guerra civil em curso no Império Inca entre dois pretendentes ao trono; Atahualpa e Huáscar, filhos do imperador, que reinvindicavam a coroa para si, e que, fragilizaram a resistência a conquista espanhola. Esse silenciamento, ou a supressão das culturas, comportamentos e hábitos dos incas impacta nossa compreensão daquilo que consideramos o patrimônio a ser preservado e referenciado, determinando a unidirecionalidade emburrecedora da colonização. A proteção, preservação e a reavaliação da forma como gerimos a ocupação do território conforma a memória que temos de nós mesmos, sendo importante para nossa identidade.

"O que protegemos ontem é o que temos hoje. O que protegemos hoje é o que teremos amanhã." reflexão apresentada na aula da arqueóloga e professora Mariana Peltry Cabral sobre a elegibilidade do nosso patrimônio a ser preservado, contrapondo as imagens da Igreja setecentista na Serra da Piedade no município de Caeté MG e o sítio arqueológico de Calçoene, de população pré colombina no Brasil, no estado do Amapá. PELTRY 2021

A redenção de Cam (1897) do pintor Modesto
Brocco representa o desejo do Embranquecimento
da população do Brasil

O que a professora Mariana Peltry Cabral nos mostra é que a valoração daquilo que elegemos para ser preservado é de suma importância para a promoção da diversidade dos nossos modus vivendi, dos relatos e narrativas que nos conformam. Em nossa história há uma sucessão interminável de fatos e acontecimentos que foram arbitrariamente apagados, e, que contam formas diferenciadas de apropriação do território. O Quilombo de Palmares, na serra da Barriga, no estado de Alagoas, que representa uma outra forma de gerir um território, e que, é suprimido em 20 de novembro de 1695 com a morte de Zumbi, o que isso representa como Patrimônio para a História do Brasil. O sítio de Bom Jesus de Canudos, no sertão da Bahia, que abrigou a revolta de Antônio Conselheiro, que envolvia 5 mil domicílios e 20 mil pessoas, e que, também foi suprimido pela forças do Estado brasileiro em 1897, na nossa primeira república. Ou, a própria história da escravidão negra no Brasil, que é até hoje apagada e suprimida por nossos representantes conservadores, que desejam embranquecer nossa cultura, nossos hábitos e nossos procedimentos. Todos nos mostram, que a história verdadeira integral, como destacou Antonio Gramsci no Caderno 25 do Cárcere, aquele dedicado ao estudo dos grupos subalternos, no qual está escrito; “...todo traço de iniciativa autônoma por parte dos grupos subalternos deve ser de valor inestimável para o historiador integral.” GRAMSCI 1934 Q25. E, mais a tentativa de caracterizar o outro, o desconhecido, o dominado como bárbaro, que foi tentado de forma recorrente pela historiografia oficial deve ser questionado:

“...Este era o costume cultural do tempo: em vez de estudar as origens de um acontecimento coletivo, e as razões de sua difusão, de seu ser coletivo, isolavam o protagonista e se limitavam a fazer sua biografia patológica, muito frequentemente partindo de motivos não comprovados ou passíveis de interpretação diferente: para uma elite social, os elementos dos grupos subalternos têm sempre algo bárbaro ou patológico” GRAMSCI 1934 Q25

A cantaria Inca de pedra é até hoje um mistério de precisão 
e apuro construtivo

Mas muito longe de qualquer idealização, a estrutura hierárquica da civilização inca não era exemplo no que concerne a dominação de outros povos; o termo Inca significa "governante" ou "senhor", que em quechua era usado para se referir à classe dominante ou à família governante. Os incas em si compunham uma porcentagem muito pequena da população total do império, provavelmente numerando apenas 15 mil a 40 mil indivíduos, mas governando uma população de cerca de 10 milhões de pessoas. A federação desses povos diferenciados e plurais desenvolveram tecnologias de medir o tempo notáveis, muito mais precisas do que as europeias, o que lhes garantia uma manipulação muito mais precisa dos procedimentos de seleção de sementes, plantio, desenvolvimento e colheita, garantindo os excedentes alimentares. Os calendários incas estavam ligados à astronomia e a observação dos astros como constelações, o sol e a lua. Os astrônomos incas entendiam os equinócios, os solstícios e as passagens do zênite, assim como o ciclo de Vênus, a estrela mais brilhante em nossos céus. Eles não previam eclipses, e certamente es espantavam e se maravilhavam com esses acontecimentos. O calendário inca era essencialmente lunissolar, pois dois calendários eram mantidos em paralelo, um solar e outro lunar. Com 12 meses lunares ficam 11 dias aquém de um ano solar completo de 365 dias, sendo que os responsáveis pelo calendário tinham que ajustá-lo a cada solstício de inverno. Cada mês lunar era marcado com festivais e rituais, tais procedimentos ainda representam mistérios para a nossa sociedade contemporânea, havendo hipóteses de que tais calendários - lunares e solares combinados - acabavam por representar maior sintonia com os ciclos do milho, da batata, da quínua, ou das suas criações, Lhamas e Alpacas. Aparentemente, os dias da semana não eram nomeados e os dias não eram agrupados em semanas. Da mesma forma, os meses não eram agrupados em estações. O tempo durante o dia não era medido em horas ou minutos, mas em termos de distância percorrida pelo Sol ou de quanto tempo levava para uma tarefa de plantio e de pastoreio.

"Eis por que a categoria de "subalterno" foi retomada  e relançada, e encontrou sucesso crescente a partir dos países da "periferia" capitalista, nos quais a contradição capital/trabalho se enriquece e se complica por meio de muitas determinações, mesmo distantes daquela da subordinação salarial." DEL ROIO 2017 página 39


Aspecto Geral de uma rua de Cuzco, 
a arquitetura colonial ibérica sobre a 
base da cantaria Inca

Os incas fizeram muitas descobertas na medicina, eles realizavam trepanações bem-sucedidas, cortando orifícios no crânio para aliviar o acúmulo de fluido e a inflamação causada por ferimentos na cabeça. As taxas de sobrevivência eram de 80-90%, em comparação com cerca de 30% antes dos tempos incas. Os incas reverenciavam a planta da coca como sagrada e mágica, pois o mascar de suas folhas eram usadas em quantidades moderadas para diminuir a fome e a dor durante o trabalho, sendo também muito usadas principalmente para fins religiosos, nos festivais do solstício e em ritos de saúde. Possuíam também um complexo sistema de contabilidade ligado ao controle da produção de bens Agrários e Pastoris, que era o Quipu Inca, uma espécie de ábaco, feito a partir de uma sucessão de noz em fios de tecido. A tecelagem e a confecção de roupas a partir da lã de Alpaca e Lhama eram muito desenvolvidas, e até hoje ainda movimentam teares e apetrechos compartilhados pelas populações quechua e aymara no Equador, Perú e Bolívia. A alvenaria de pedra das cidades incas encontradas pelos espanhóis e ainda hoje presentes em cidades como Cuzco, Olantaitambo ou Machu Pichu representam um mistério com relação a forma do corte e seu acabamento final. Muitas pedras apresentam várias arestas, assentadas sem argamassa onde não é possível se quer se inserir uma lâmina fina de faca moderna. Há teorias que apontam para a maior adequação desses procedimentos construtivos às instabilidades geológicas dos Andes, inclusive o terremoto de 1986, na cidade de Cuzco revelou que o Convento dos Franciscanos estava sobre o Antigo Templo de Coricancha em homenagem ao Sol, e que, abriu um amplo campo de explorações arqueológicas na antiga capital Inca. Uma das imagens mais marcante das cidades do Vale Sagrado, na região de Cuzco, que receberam edificações ibéricas é justamente esta sobreposição de processos construtivos. Uma expressão particular e única do maneirismo ibérico, que combina uma interação, dominação e sobreposição mostrando-nos que no campo da cultura a fusão visual dos elementos é recorrente. Ao final, uma síntese única e particular, que numa analogia por exemplo, com uma escola de pintura, a Cuzquenha, que ocorre ao mesmo tempo e lugar, mostrando-nos que o hibridismo prevaleceu. A combinação de um lirismo com uma religiosidade exagerada e excludente acaba nos demonstrando um traço único de uma América Latina dramática, que aparece eternamente envolta num sonho utópico, que nos traga de novo a ingenuidade dos povos primitivos.

Os alunos são apresentados a obras e esforços construtivos notáveis, como; a síntese da Cidade de Cusco, o umbigo do mundo, a fortaleza de Sacsuahaman, as ruínas de Pessac, a cidade de Olantaytambo e seus mistérios cósmicos e a interação entre sítio arqueológico e vida contemporânea, culminando em Machu Pichu, um lugar que nos arrebata, mostrando-nos uma síntese geográfica inusitada de onde parece emergir uma conexão cósmica entre humanidade e planeta. O Vale Sagrado, região do hinterland da capital Inca de Cuzco, parece nos mostrar uma estruturação única e sensível de um lugar humano. As lições da cultura inca e de outros traços abandonados pela exclusidade medrosa do catolicismo espanhol e português, parecem ainda nos mostrar que a interação entre técnicas e comportamentos ainda está para se realizar. Tudo isso, nos mostra de forma contraditória, as imensas potências presentes na estruturação do "Genius Locci", categoria da fenomenologia do arquiteto Christian Norberg Schulz, presente em cada local de forma isolada e também no seu conjunto. No século XX, um arquiteto dos EUA, de família imigrante de origem na Rússia, Loui I. Khan, nos perguntou que; "precisamos parar para ouvir, aquilo que o lugar quer ser". Essa condição aparece de forma indelével, naqueles que visitam esses lugares - Cuzco, Sacsuhuaman, Pessac. Ollantaytambo e Machu Pichu - nos mostram ainda de forma velada e subliminar como essa condição pode ser alcançada pela cultura humana.

BIBLIOGRAFIA:

CABRAL, Mariana Peltry - Aula Como valorizamos nosso patrimônio? - História e Teoria da Arquitetura 1 2021-1 EAU-UFF
DEL ROIO, Marcos (org.) - Periferia e Subalternidade - USP São Paulo 2017
ENGELS, Friedrich - A Dialética da Natureza - Boitempo São Paulo 2018
GRAMSCI, Antônio, tradução  - Cadernos do Cárcere, volume 25 -  


sexta-feira, 28 de janeiro de 2022

A disciplina História e Teoria da Arquitetura 1 e a Antiguidade Pré Clássica Euro cêntrica


A região do crescente fértil, o entorno das dádivas pluviais
do Tigre, Eufrates e Nilo

Dentro do programa da disciplina História e Teoria da Arquitetura 1, o período da antiguidade pré clássica, antes da Grécia e de Roma, que envolve as civilizações do chamado crescente fértil. a Mesopotâmia e o Antigo Egito, são fundamentais para estabelecer os diversos padrões de ocupação do território do planeta pelo homem. A presença da generosidade do acontecimento dos cursos fluviais, como; o Tigre, o Eufrates e o Nilo são determinantes para o desenvolvimento de tecnologias de semeadura, desenvolvimento e colheita de alimentos, que permitiram a essas sociedades acumularem excedentes jamais observados de alimentos. A interação entre homem e natureza se manifesta a partir da observação dos ritmos dos corpos hídricos, dos níveis de insolação e da manipulação de sementes ou de espécies animais domesticadas agregadas como novos conhecimentos humanos, que impulsionam a obtenção de farta alimentação. A presença de abundância de água, altos índices de insolação e a manipulação humana diversificada de tecnologias de medição do tempo garantem uma produtividade inusitada, mostrando e fixando os tempos mais adequados de semear, desenvolver e colher, na agricultura, ou de pastorear, reproduzir e ordenhar na domesticação animal. Tecnologias de armazenamento, comércio e intercâmbio se estabelecem, determinando graus elevados de acessibilidade a confortos e comodidades, que acabam transmitindo a falsa impressão de distanciamento do homem para com o natural. O acúmulo de excedentes alimentares permite a essas sociedades o desenvolvimento de uma complexa divisão social do trabalho, impulsionando a sofisticação da vida e fazendo surgir; sacerdotes, escribas, arquitetos, poetas, músicos, etc. O registro escrito permite a contabilidade precisa das safras de grãos, das quantidades de proteína animal obtidas, da documentação do cotidiano imediato, essas sociedades desenvolvem uma iconografia particular que as identifica, impulsionando a sensação de pertencimento aos seus membros. Acaba por emergir uma forte identidade visual, que caracteriza essas sociedades com manifestações únicas de sensibilidade, que se expressam na forma das colunas de sustentação, das esculturas, da música, dos grafismo pictóricos.

“O trabalho é, antes de tudo, um processo entre o homem e a natureza, processo este em que o homem, por sua própria ação, medeia, regula e controla seu metabolismo com a natureza. Ele se confronta com a matéria natural como com uma potência natural [Naturmacht]. A fim de se apropriar da matéria natural de uma forma útil para sua própria vida, ele põe em movimento as forças naturais pertencentes a sua corporeidade: seus braços e pernas, cabeça e mãos... Agindo sobre a natureza externa e modificando-a por meio desse movimento, ele modifica, ao mesmo tempo, sua própria natureza. Ele desenvolve as potências que nela jazem latentes e submete o jogo de suas forças a seu próprio domínio.”. (MARX, 201 página 326-327)

Uma outra questão também foi apresentada para os alunos, de forma a ampliar a compreensão do papel das cidades na ordenação das sociedades humanas, a Revolução Urbana, que ocorreu na história humana como um grande alavancador do intercâmbio social. As cidades superam a escala das Fátrias, lançando os humanos num intercâmbio muito além de seus clãs, determinando uma interação pessoal de culturas, costumes e crenças muito diferenciadas. Cada clã, família ou fátria muitas vezes dominava processos tecnológicos específicos, que a partir da sua intensa interação social propiciada pela cidade trará um grande impulso ao desenvolvimento humano. As cidades ampliam as transformações humanas sobre o território, criando além dos abrigos uma diversidade de tipologias construtivas, tais como; templos, locais de reunião, armazéns, muralhas, ruas, praças, poços e fontes. Há uma ampliação da artificialização da vida, pela arquitetura e o urbanismo, que passam a subverter os ciclos naturais do nosso planeta, construindo uma existência que tende a superar os condicionantes naturais; diferenciação entre dia e noite, amenização dos calores e frios intensos, proteção da chuva e das intempéries.

“Cada sociedade, a partir de um certo nível evolutivo, tem que possuir sua própria arquitetura. Uma sociedade sem pintura ou sem tragédia é perfeitamente imaginável, e até existiu diversas vezes; mas não uma sem edifícios.” LUKÁCS, Gregory

Essas condições não são alcançadas sem conflitos, dominações e controles, a mera coleta ou extrativismo só foi superada na medida em que se estabelece um centro que gerencia a produção em armazéns e construções que se apropriam do acúmulo de excedentes. Se estabelece um controle que é político, que forjou conquistadores hábeis, habitantes da cidade, que protegiam e se apropriavam dos excedentes determinando que o núcleo urbano se apoderasse de domínios cultivados. Nasce a representação do poder, a cidade, um local produtor de mercadorias não naturais, transformadas pelo artezanato humano, que domina um entorno fornecendo-lhe proteção e identidade. Nasce a regulação, proteção e gestão do território por um ente edificado denso, no qual florescem o controle, a taxação de impostos, o armazenamento da produção, surge embrionário a estrutura controladora e burocrática do Estado. A Cidade-Estado, a representação do poder expresso numa iconografia funcional e simbólica, onde estão a muralha, o palácio, o templo, os armazéns, que também produz a construção de uma identidade da população que passa a ser seu cidadão. A divisão social do trabalho entre moradores urbanos e produtores agrícolas permanecerá na história humana durante longo período, com clara predominância da população rural, até a Revolução Industrial. Apenas nesse ponto mais recente de nossa história, meados do século XIX, que a população urbana encontra as primeiras condições de superar a população rural, iniciando uma grande transformação que só se materializará no final do século XX, quando, pela primeira vez a população urbana superou a rural.

“A agricultura somente superou a coleta e se constituiu como tal sob impulso (autoritário) de centros urbanos, geralmente ocupados por conquistadores hábeis, que se tornaram protetores, exploradores e opressores, isto é, administradores, fundadores de um Estado. A cidade política acompanha, ou segue de perto, o estabelecimento de uma vida social organizada, da agricultura, e da aldeia. “ LEFEBVRE, 2004 página 21

Gráfico presente em LEFEBVRE, referente a passagem
do agrário ao urbano

O gráfico presente no livro A revolução urbana de Henri Lefebvre nos mostra a tendência das sociedades ocidentais em direção a completa subordinação do agrário ao urbano, que representa uma Implosão-Explosão, onde o rural se urbaniza, e a cidade se dispersa pelo mundo. Condição típica da nossa contemporaneidade, quando segundo Lefebvre opera uma grande confusão, "na qual passado e o possível, o melhor e o pior se mistiram." LEFEBVRE 2004 página27 A realidade urbana opera no sentido de revolucionar de forma contínua as formas de produção, sem, no entanto ser suficiente para transformá-las completamente. O que é importante, no contexto da disciplina de História e Teoria da Arquitetura 1, para os alunos é que o urbano mesmo em seu estágio embrionário insere a festa da interação entre diferenças, marcando para o início da história a promessa da sua transformação. A arquitetura e urbanismo comprovam o intercâmbio de tecnologias construtivas que se constituem como um Bem Comum, algo que não pode ser cercado e privatizado, apesar de uma minoria privilegiada que quer manter estes saberes como sua propriedade. Além das tecnologias, há a questão da apropriação das imagens, que essas construções monumentais geram na população; uma identidade locacional que acaba por promover a identificação de um lugar único no cosmo geral e indiferenciado do planeta, uma humanização da paisagem, que gera identidade entre população e lugar.

“O que nos interessa em nosso contexto é que as emoções desencadeadas agora já não se enlaçam só com o fato geral e objetivo da segurança, mas que são produto imediato do modo aparencial visual da muralha (altura, massa, etc.).” (LUKÁCS, 1982, v. 4, p. 95) 

TEMPLO DE LUXOR: A) Avenida das Esfinges;
B) Pilone de Ramsés II; C) Obeliscos de Ramsés II; D) Colossos;
E) Pátio de Ramsés II; F) Colunata de Amenófis III;
G) Pátio de Amenófis III; H) Sala do Nascimento;
I) Santuário de Alexandre Magno;  J) Sala Hipóstila;
K) Vestíbulo; L) Câmara (sancta sanctorum)
Médio Imperio - Tebas


A partir dessas reflexões de base se apresentam as construções que chegaram ao nosso conhecimento destas civilizações; o Templo Alto de Uruk, o Zigurate de Ur, O Zigurate e a Muralha de Nama, a cidade de Khorsabad. Todas sítios arqueológicos atuais da Mesopotâmia (atual Iraque e Irã) mostrando-nos a permanência parcial da monumentalidade e a completa incapacidade de resistir ao tempo das habitações comuns. Na sequência se mostram as grandes obras do Antigo Egito dentro de uma cronologia geral; o período Arcaico, o Antigo Império (3.200 a 2.200 a.C.), Médio Império (2.200 a 1580 a. C.) e Novo Império (1.580 a 1.085 a. C.). Nessa subdivisão histórica geral se destaca a predominância no Antigo Império da cidade de Mênfis na fox do Nilo com o Mar Mediterrâneo, e a partir do Médio Império a predominância da cidade Tebas no médio Nilo. Foram também mostradas as principais realizações construtiva do Império Egípcio, as antigas mastabas, a pirâmide escalonada de Djoser, as pirâmides de Queóps, Quéfren e Miquerino no Antigo Império, nas proximidades de Mênfis. E, os templos de Luxor e Carnac nas proximidades da cidade de Tebas, e o Templo de Abu Simel no médio Império. Este último próximo a atual barragem de Assuan, na atual da fronteira do Egito com o Sudão, obra de infraestrutura do Estado Egípcio contemporâneo, que foi traslado para uma cota mais alta, para se evitar seu alagamento pelo Lago Nasser. Importante salientar, que estes exemplos estabelecem um padrão específico da arquitetura e da cidade, frente a outras artes, uma certa presença da abstração e distanciamento da imitação ou mímesis da natureza, das artes pictóricas. O ambiente humano, para sua convivência desenvolve-se numa imagética presa a sua necessidade de ficar em pé, ou de se auto sustentar, mostrando-nos que os esforços construtivos se subordinam a tectônica.

“Não é da imitação que dependem a beleza e a graça da arquitetura, porque se assim fosse ela deveria ter mais beleza quanto mais exatas fossem estas imitações. As colunas não recebem a aprovação do gosto quanto mais se parecem ao tronco de uma árvore que servia de coluna às primeiras cabanas” PERRAULT, Claude - Ordonnance des Cinq Espèces des Collones


Por último, foi destacado para os alunos o papel da mulher na sociedade egípcia, que segundo os historiadores foi exercido de forma afirmativa e tinha praticamente os mesmos direitos dos homens, o que não ocorria em outras civilizações da antiguidade. Segundo estes historiadores, elas chegaram a postos, posições e papéis, que só foram alcançados pelas mulheres novamente na nossa sociedade contemporânea. Apenas como exemplo, o casamento no antigo Egito era considerado importante para as mulheres. As garotas egípcias costumavam se casar na faixa dos 12 anos, enquanto os garotos tinham entre 15 e 19. Elas também podiam se divorciar, caso sofressem algum tipo de maltrato, por exemplo. Nesse caso recorriam aos seus familiares e pediam ajuda para intervir no casamento. O divórcio era algo simples e não necessitava de muito tempo para a sua obtenção. Entre os principais motivos de divórcios estavam os maus-tratos, o adultério e a infertilidade. Esta condição coloca para a nossa contemporaneidade uma interessante questão, que desnaturaliza a diferença entre os sexos e a coloca na condição de uma ordenação societária imposta pela produção humana de subalternidades. O determinismo biológico é problematizado de forma crítica, mostrando-nos de que a produção da relação hierárquica entre os gêneros é uma determinação da ordenação social. A questão foi abordada pelo conjunto de textos disponibilizados para os alunos, dentre os quais destaco o de Maria Mies, Origens sociais da divisão sexual do trabalho; a busca pelas origens sob uma perspectiva feminista. Texto que questiona fortemente as determinações "naturais", biológicas ou anatômicas na gestação e origem das sociedades patriarcais.

"Quando as mulheres começaram a se questionar sobre as origens da relação hierárquica entre os gêneros, elas constataram rapidamente que nenhuma das antigas explicações apresentadas pela ciência era suficiente. Pois todas as explicações veem a assimetria social e a hierarquia entre os gêneros como algo, em última análise, biologicamente determinado – e isso significa estar fora do
alcance de processos de transformação social. Esse determinismo biológico velado ou explícito – resumido na declaração de Freud de que anatomia é destino – é provavelmente o maior obstáculo no caminho do conhecimento das causas para a divisão desigual do trabalho entre homens e mulheres." MIES 2002 página840

Enfim, se debruçar sobre os resultados arquitetônicos e urbanos destas sociedades antigas traz-nos a uma reflexão importante sobre o nosso presente, nos fazendo pensar sobre os engendramentos que condicionam o nosso futuro. Uma transtemporalidade típica do planejar e projetar, tão presente nas ações de arquitetos e urbanistas, que olha para a tradição, tira dela lições, problematiza nossa atual existência, e projeta novos arranjos espaciais capazes de abrigar uma outra sociedade. Ao final, porque não podemos imaginar um outro futuro? Porque não podemos pensar na ordenação espacial de uma sociedade, onde os gêneros colaboram em solidariedade, e não mais em disputa?

BIBLIOGRAFIA:

LEFEBVRE, Henri - A Revolução Urbana - UFMG Belo Horizonte 2004
LUKÁCS, Gregöry - Marx e Engels como historiadores da literatura - Editôra Boitempo São Paulo 2016
MARX, Karl - O Capital, crítica da economia política - Boitempo São Paulo 2013
MIES, Maria - Origens sociais da divisão sexual do trabalho; a busca pelas origens sob uma perspectiva feminista - Revista Direito e Práxis UERJ Rio de Janeiro 2002
PERRAULT, Claude - Ordonnance des Cinq Espèces des Collones