domingo, 11 de março de 2018

5o Seminário Internacional Arquiteturas Imaginadas em São Paulo - Um contra projeto para a cidade brasileira

A palestra: Um contra projeto para a cidade brasileira
No último dia 06 de março de 2018 fui à cidade de São Paulo, para participar do Quinto Seminário Internacional de Arquiteturas Imaginadas, uma iniciativa da Faculdade de Arquitetura da Universidade de Lisboa, do seu Centro de Investigação em Arquitetura, Urbanismo e Desenho (CIAUD), cujo o tema era; Desenho, Cidade, Corpo, Habitando a Terra, e no qual apresentei a palestra; Um contra projeto para a cidade brasileira. Minha mesa de debate, também contava com a participação dos professores Dr. Fernando Vazques e  Ms Ricardo del Valle, apresentando a reflexão, Zonas Proibidas e mutação da cidade com as práticas lascivas, e da professora Dra Gisele Carvalho, com o trabalho; A composição clássica nos espaços sociais de habitação em Recife, Brasil. Os debates foram mediados pelo professor Dr. Ricardo Ferreira Lopes.

A mesa do primeiro debate da tarde do V Seminário
Internacional de Arquiteturas Imaginadas
Minha palestra partia da necessidade de sensibilizar o campo político no Brasil, para a importância da conformação de seu território, notadamente de suas cidades, para promoção de uma melhor distribuição de renda e de oportunidades. O espaço físico das nossas cidades demandam a configuração de uma política de inclusão da sua população, a partir dos eixos; centralidade, habitação, mobilidade e meio ambiente. A proposição parte do pressuposto de que as cidades brasileiras, tal qual estão estruturadas e da forma inercial que se reproduzem são máquinas de exclusão, e, portanto imaginar, desenhar e sonhar um contra projeto da cidade brasileira é fundamental para promover mais oportunidades para as classes menos privilegiadas do nosso espectro social. O espaço das nossas cidades, sua arquitetura efetivamente construída espelham de forma clara o projeto de exclusão de grande parte de nossa população, que só consegue acessar uma urbanidade precária e inacabada.

Para tal, procurei partir minha palestra da macro política e de sua forma de operar contemporânea, onde percebe-se um claro declínio da narrativa do neoliberalismo, como discurso de sua legitimação geral, a partir da crise do sistema financeiro internacional de 2008. Sem, no entanto, que tenha emergido uma narrativa alternativa, que ocupe o espaço da doutrina da austeridade fiscal, que ainda parece governar as ações e argumentações dos mais diversos posicionamentos políticos, não só no Brasil, mas em todo o mundo. Um fato, que denuncia a clara ausência de uma identidade política de governos de esquerda, ou de governos interessados numa maior inclusão social, nos últimos anos em várias partes do mundo. Essa afirmação pode ser comprovada, com um retorno aos períodos de Felipe Gonzalez (1982-1996) na Espanha, Tony Blair (1997-2007) na Inglaterra, ou Françoise Hollande (2012-2017) na França, ou mesmo Lula (2002-2010) e Dilma (2011-2016), ambos no Brasil. Todos governos "de esquerda", que  acabaram fazendo caixa de ressonância da questão da austeridade nas contas públicas, moderando discursos de maior distribuição de renda e enveredando por processos, que claramente incentivaram o patronato em detrimento do mundo do trabalho. No campo específico da ordenação do território, esses governos invariavelmente tiveram uma atitude pró mercado imobiliário, abrindo mão da regulação do valor da terra pelo Estado, abrindo mão de uma gestão pública da cidade.


O declínio da forma de atuar da social democracia no Brasil e no mundo, abraçando a regulação do patronato, do mercado imobiliário, penalizando o mundo do trabalho, e se envolvendo em processos de gentrificação urbana foi um processo gradual de longo prazo. Ele se iniciou com a crise do petróleo de 1973, e os seus rebatimentos no conflito Israel-mundo árabe, com consequências também para o equilíbrio do sistema colonial, determinaram a primeira crise global do pós-guerra, desarrumando o crescimento e a distribuição de renda desse período. Alguns autores mencionam uma inversão peculiar que o sistema capitalista foi capaz de operar, com relação a pauta do Maio de 68, na qual existia uma clara crítica ao Estado burguês, burocrático e disciplinar. Maio de 1968 recusava o estado e as instituições de controle burocrático, tanto da democracia liberal, quanto do socialismo soviético. Se revoltava contra a reprodução material, os dispositivos de controle social, a partir de uma crítica totalizante ao capitalismo como sistema econômico e modo de existência, recolocando a questão da democracia e da revolução. No entanto, ao final da década de setenta e começo dos anos oitenta, a direita capitaneada pelo mundo anglo-saxão, com a primeira ministra Margaret Thatcher (1979) da Inglaterra, e o presidente americano Ronald Reagan (1980) tomam a dianteira e assumem propostas de desregulação e retração do Estado, atendendo de forma parcial a pauta de maio de 68.

"Os arautos do modelo econômico atual gostam de se ver como vencedores de um embate no qual teriam demonstrado ao mundo que o capitalismo neoliberal era a melhor forma, até mesmo a única, de produzir riqueza, inovação e bem-estar." SAFATLE 2017 página23

De fato é preciso reconhecer, que o discurso neoliberal conquistou muitos corações e mentes pelo mundo, colonizando não só formas de estruturar governos e instituições, mas também o cotidiano de variados agentes e atores. Efetivamente, o aumento da autonomia individual, ideias de flexibilidade do agir cotidiano, crítica ao Estado burocrático, celebração do empreendedorismo estavam presentes nas pautas do Maio de 68.

"Atualmente, conhecemos estudos que defendem a tese de que a ascensão do neoliberalismo no final dos anos 1970 é um peculiar desdobramento dos impulsos de Maio de 1968." SAFATLE 2017 página27 "Deve-se assumir que a extrema direita foi capaz de constituir uma resposta política, ouvindo o descontentamento social, a insegurança produzida por um sistema econômico de pauperização e aumento de vulnerabilidade." SAFATLE página32

De uma hora para outra, o sistema instituído passou a celebrar a gramática do empreendedorismo, o declínio dos padrões de solidariedade social, a imposição de um individualismo competitivo que beira a animalidade, o fim do emprego, e a busca incessante pela desregulamentação. No entanto, com a crise do sistema capitalista avassaladora de 2008, esse discurso perde poder de convencimento, surgindo os primeiros levantamentos, inclusive de economistas liberais, de que a pobreza vem se ampliando de forma contínua, a partir da desregulamentação dos anos oitenta. No período de 1910-20, a renda dos 10% mais ricos representava entre 45% e 50% da renda nacional norte-americana. Essa porcentagem cai para 35% em 1950, chegando a 33% em 1970, revertendo essa tendência nos anos noventa, e retorna aos níveis de 1910-20 (45% a 50%) entre 2000 e 2010. No Brasil, a terrível distribuição de renda consegue ser pior, segundo relatório do insuspeito Boston Consulting Group, publicado na Folha de São Paulo em 13 de janeiro de 2008, declarava que o Brasil tinha ganhado 60 mil novos milionários em 2007, totalizando um grupo de 160 mil pessoas com patrimônio de US$675 bilhões, ou cerca de metade do PIB brasileiro, que corresponde a assustadora marca de 0,08% de nossa população, que simplesmente monopoliza a metade de nosso PIB.

Após essa argumentação, procurei apresentar minha compreensão do que é o plano e o projeto em nossa cultura contemporânea, ações propositivas, que investem fortemente no vir a ser, num prognóstico mais do que no diagnóstico. Essa condição, que sem dúvida aproxima o ato de projetar e de planejar de uma certa arbitrariedade artística, carregada de subjetividade, mas que no mundo contemporâneo cada vez mais cumpre o papel de explicitar a amplos agentes e atores os princípios conformadores do futuro, desse vir a ser. Afinal, o desenvolvimento pleno da democracia pressupõe a participação dos cidadãos maduros na definição de seu próprio futuro, dentro do qual a forma de ocupar o planeta desempenha papel fundamental. O plano e o projeto são cada vez mais explicitadores de conflitos de interesses presentes em nossa sociedade, afinal;

"Quem busca consenso é regime autoritário, Democracia não. Democracia é o reconhecimento do conflito, a busca da negociação e a procura de acordo, sempre provisório, em função da correlação de forças." Fernando Henrique Cardoso, citado em COUTINHO 1979

Na verdade, os processos de plano e projeto envolvem sempre a análise das interações entre hipóteses, custos, benefícios alcançados e explicitação de conflitos e convergências.  A pretensão aqui é restaurar o caráter da arquitetura e do urbanismo como arte, entendida como força presente e sintética que coohabita com suas premissas; funcionais, ideológicas e construtivas. Neste sentido, a palavra arquitetura é esclarecedora quando dissecada, estando seu significado ligado a uma dualidade enriquecedora e potencializadora;

“Assim precedendo ao termo tektonicos (carpinteiro, fabricante, ação de construir, construção) acrescentou-se o radical arche (origem, começo, princípio)...A arche é o centro da esfera social daquele Mundo, e deverá ser traduzida nos edifícios, apresentando os deuses, a história e o espírito ético do povo grego.”BRANDÃO, Carlos A. Leite – A formação do homem moderno vista através da arquitetura

A partir desse ponto procurei formular na minha palestra um primeiro princípio geral norteador, que guiaria a configuração espacial da nova cidade brasileira, combatendo principalmente sua forma inercial de exclusão dos seus habitantes. Esse princípio seria o da inclusão e celebração da diversidade, uma aproximação entre diversos agentes e atores; ricos, extratos médios e o precariado no convívio das vizinhanças. Uma das características mais marcantes de nossa sociedade é a sua concentração de renda. De uma maneira geral, nossos políticos e nossas políticas ainda não despertaram para o fato de que a distribuição territorial da população pode ser um fator capaz de distribuir oportunidades, e portanto renda. O simples acesso a uma centralidade mais fortemente constituída, pode significar a frequência em equipamentos culturais e ou educacionais de boa performance, mudando de forma substancial a perspectiva de populações vulneráveis. A diversidade é didática, atesta tal fato a estratégia adotada pelas universidades norte americanas, que há anos fazem um esforço sistemático para reunir na mesma sala de aula alunos de diferentes procedências e nacionalidades, na expectativa de que suas vivências compartilhadas formem uma massa crítica. A teoria dialógica de FREIRE 1970 também aponta a premissa básica do diálogo entre experiências de qualquer procedência como operação didática, contraposta a concepção bancária da educação, que não gerava autonomia do pensar, mas dominação e colonização.

Num segundo momento considero importante reforçar processos identitários e culturais presentes em nossa conformação da cidade brasileira, a matriz portuguesa de nosso espaço. Nesse sentido, é fundamental rearticular a ideia de ser e lugar, como um constructo que reúne consciência, auto-estima, vizinhança, e mobilização. Nessa questão, o conceito de analogia é fundamental para estruturar as demandas dos usuários e moradores, que muitas vezes estão presos a um cotidiano tão devastador, que não conseguem superar seu horizonte muito restrito de possibilidades. ROSSI utilizou o conceito de cidade análoga para definir a importância que a memória coletiva dos cidadãos pode desempenhar no processo de eleição do novo desenho da cidade. A analogia demanda sempre uma correspondência, ou uma identidade que um coletivo humano compartilha a partir de uma mesma base cultural comum. Essa base é nossa matriz portuguesa de cidade, e mais especificamente no caso do Rio de Janeiro sua interligação análoga com Lisboa. Sempre reafirmando a diversidade presente em Lisboa e no Rio de Janeiro, como metrópoles plurais, que não se restringem a uma única face, mas a uma grande gama de implantações, e portanto personalidades.Importante ressaltar, que essa atitude não se restringe a história e a preservação. ROSSI(1979) e também TAFURI(1981) sempre manipularam a história não em seu sentido descritivo e de diagnóstico, mas em seu potencial propositivo, formulador de um prognóstico, capacitado a potencializar o projeto, portanto o seu vir-a-ser.

Nesse momento, apontei quatro princípios norteadores que descrevem a forma contra hegemônica da cidade brasileira, que na verdade combatem sua forma inercial de produção e reprodução; 1) Cidade densa e compacta, que inicie o combate a sua dispersão interminável, enfatizando o papel aglutinador do antigo centro da cidade. Tolerância zero com a ampliação da mancha urbana. 2) Habitação e Cidade, busca da forma específica de morar típica de cada cidade. O morar articulado com a cidade (habitar e espaço público). Densidade e a presença da variedade de usos e rendas. 3) Mobilidade ampliada, articulação e hierarquia dos modos de se movimentar no território. Busca por articular saúde e mobilidade. Combate ao Rodoviarismo sedentário, e celebração de calçadas amigáveis. Busca de um conceito de mobilidade ampliada, que combata a exclusão determinada a partir da ausência ou tarifação cara do transporte público. 4) Nova articulação entre natureza e cidade. Cidade que amplie a visibilidade, a compreensão, a apropriação e a aproximação dos seus biomas particulares com os cidadãos.

Ao final apresentei uma série de projetos em diversas escalas, que desenvolvi mostrando a aplicação desses princípios.

BIBLIOGRAFIA:

BRANDÃO, Carlos Antonio Leite Brandão – A formação do homem moderno vista através da arquitetura – editora Ap Cultural 1991 Belo Horizonte. Pg 22

COUTINHO, Carlos Nelson - A democracia como valor universal - acessível no site https://www.marxists.org/portugues/coutinho/1979/mes/democracia.htm

FREIRE, Paulo – A pedagogia do oprimido – Editora Paz e Terra Rio de Janeiro 1970

GRAMSCI, Antonio - Concepção dialética da história - editora Civilização Brasileira Rio de Janeiro 1966

HEIDEGGER, Martin- Construir, Habitar, Pensar – Oficina de Artes y Ediciones Madrid 2015

ROLNIK, Raquel – Guerra dos Lugares: a colonização da terra e da moradia na era das finanças – Boitempo São Paulo 2015

ROSSI, Aldo – A arquitetura da cidade – Editora Martins Fontes São Paulo 1995

ROSSI, Aldo – Para uma arquitetctura de tendência, escritos 1956-1972 – Editorial Gustavo Gilli Barcelona 1977

SAFATLE, Vladimir - Só mais um esforço - Três Estrelas São Paulo 2017

SINGER, André - Os sentidos do lulismo, reforma gradual e pacto conservador - Editora Companhia das Letras São Paulo 2009

TAFURI, Manfredo – Teorias e História da Arquitetura – Editora Presencial Lisboa 1981

TAFURI, Manfredo – The Sphere and the Labyrinth, avant-gardes and architecture from Piranesi to the 1970,s – MIT Press Bosto 1987

TOTA, Antonio Pedro – Os Americanos – Editora Contexto São Paulo 2009