quarta-feira, 28 de dezembro de 2016

Belo Horizonte descontínua, as torres e o antiurbanismo


A destruição da relação rua - apartamento
O arquiteto de Milão Ernesto Nathan Rogers, em 1953 quando assumiu a chefia editorial da revista Casabella, agregou a esse nome o termo Continuittá, que portanto passava a se chamar Casabella y Continuittá. Com isso, Rogers expressava uma conceituação de sua própria arquitetura, a proposta de construção de uma continuidade histórica com as pré-existências da cultura e da cidade, que de certa forma transcendiam as demandas programáticas das edificações. Rogers era então um dos expoentes do neo-racionalismo italiano, que claramente formulava uma teoria de crítica ao movimento do international style da arquitetura moderna, que de forma recorrente havia homogeneizado o mundo a partir de uma certa standartização da materialidade empregada. O contextualismo de Rogers se referia a questões relativas ao ambiente construído, aos esforços construtivos já realizados, que acabavam conformando um ambiente particular em cada cidade. Interessante destacar, que as páginas de Casabella y Continuittá em textos do próprio Ernesto Nathan Rogers, destacaram uma certa característica contextualista da moderna arquitetura brasileira, citando projetos de Oscar Niemyer e Afonso Eduardo Reidy, que se reportavam a questões de clima e história em suas premissas, numa resposta a polêmica produzida por  Max Bill nos anos cinquenta.

"Quando Rogers inicia seu texto Pretesti per una critica non formalistica faz uma ressalva que irá pautar toda sua argumentação: é preciso livrar se dos preconceitos trazidos da própria cultura para poder entender a cultura de outro país. É uma advertência próxima àquela colocada por Lucio Costa, para quem as críticas de Bill eram fruto de um «estado prevenido». A partir deste argumento Rogers constrói o seu parecer sobre uma arquitetura, a seu ver, vítima de juízos arbitrários tanto positivos – vindos de Giedion – quanto negativos – vindos de Bill – e acrescenta que olhar para a arquitetura brasileira segundo um modo particular, e ele cita o modo suíço (referindose a Giedion e a Bill), seria um erro de abstração que conduziria às «depreciáveis polaridades da crítica formalista»61. Também seria um erro, para ele, julgar a obra de Niemeyer a partir dos seus numerosos maus seguidores, que faziam arquitetura à «maneira» dele (manieristi 62). No texto, Rogers coloca-se como ponderador que procura construir um juízo capaz de equilibrar justamente a acusação e a defesa da arquitetura de Niemeyer, não a absolvendo e nem retirando seus méritos, mas invertendo o problema colocado por Bill e acusando de formalista a crítica do arquiteto suíço." SANCHES  2012

«Despojado dos preconceitos e colocado na sua geografia e na sua história, o caráter de Niemeyer aparece mais objetivamente e, se os seus defeitos permanecem, afloram também os seus méritos: essencial aquele de ter entendido alguns valores típicos do seu país, deduzindo-os, por analogia, da fisionomia das coisas ao redor: o ciclo entre causa e efeito se fecha na expressão de um estilo onde o conteúdo particular tende a sua inequívoca identificação material." ROGERS, citado em SANCHES  2012

A perda de escala da torre
As cidades brasileiras possuíam contextos memoráveis, que vem se perdendo a partir da manipulação e até da imposição de padrões do bem viver para as classes médias e altas, baseadas no modelo da torre em altura, que também acabam determinando contextos muito descontínuos, aonde as pré-existências são esquecidas. O perfil da cidade de Belo Horizonte nos anos 1970s, já apresentava uma intensificação do uso do solo a partir de uma tipologia de edificação de tres andares, que não dependia de elevadores, isto é com no máximo quatro andares. A partir dos anos 1990s, Belo Horizonte assim como outras cidades brasileiras, passaram a adotar uma legislação urbanística baseada em índices de exploração dos terrenos, que reforçaram uma celebração da torre, como forma tipológica eleita de habitar a cidade. Essa atitude, articulada com uma tradição de ausência de celebração do espaço público como o local da festa e da surpresa, vem desde os 1990s destruindo a urbanidade de nossas cidades. É verdade, que nossas elites abastadas ou médias nunca demonstraram qualquer interesse pelo espaço publico do Brasil e da sua gente, se sentindo mais confortável em urbanidades europeias ou americanas. Mas, a proposta que regulava a intensificação do uso, no período anterior, era de fixação do gabarito - número de andares das edificações - por quadra da cidade, o que garantiu uma maior continuidade da escala a quadra.

Edifício em BH similar ao Aquarius em Recife
O programa da habitação desenvolvida em torre, implica numa ruptura da conexão entre espaço privado da habitação e espaço público da cidade, que vem de forma sistemática deteriorando nossas urbanidades. O tema já foi abordado aqui no blog, no texto sobre o Filme Aquarius e a cultura brasileira do bem viver, que se passa em Recife e narra a mesma opção feita pela Belo Horizonte contemporânea. O dramático na questão é a reprodução desse padrão em cidades menores, a partir de argumentos de otimização da segurança, o que não passa de uma falácia, pois o espaço público vazio e abandonado, que dela resulta é a consequência inevitável dessa atitude, potencializando a violência em nosso espaço público. A pretensão me parece ser, se movimentar pela cidade com carros ou helicópteros blindados, chegando em condomínios murados com desenvolvimento em torres para evitar a interação com nosso espaço público.

Lucio Costa em seu memorial para Brasília, na definição do número de pavimentos dos edifícios das superquadras determinou a altura máxima em 6 pavimentos, mais um de pilotis, argumentando que esse dimensionamento mantinha as crianças no solo da cidade, ainda sob a sujeição do grito das mães nos respectivos apartamentos. É exatamente essa relação que vem se perdendo nas cidades brasileiras com a celebração da tipologia da torre, uma proximidade controladora entre os espaços privados da habitação e a rua. Tal projeto que seduz nossas elites irá significar o declínio da vitalidade dos nossos espaços públicos, que cada vez mais serão condenados a uma baixa urbanidade. Abaixo os links para os textos mencionados no texto.

Bibliografia:

SANCHES, Aline Coelho - Ernesto Nathan Rogers, e a polêmica da arquitetura brasileira - Revista Risco 02 2012

http://arquiteturacidadeprojeto.blogspot.com.br/search?q=filme+aquarius

http://www.iau.usp.br/revista_risco/Risco16-pdf/02_art07_risco16.pdf

quarta-feira, 21 de dezembro de 2016

O pensamento econômico único do Brasil

Em clima de chacota, Abilio Diniz, o juíz Sérgio Moro,
o senador Aécio Neves, logo abaixo o ministro da Economia
Henrique Meireles, o governador de São Paulo Geraldo
Alckmim e o presidente da República do Brasil Michel
Temer
"Transformam o país inteiro num puteiro, pois assim se ganha mais dinheiro." 
Cazuza

Vivemos momentos difíceis e complicados, estamos embricados numa dinâmica confusa e complexa que nos deixa a todos perplexos e sem capacidade de reação desde a eleição de Dilma Roussef em 2014. A justificativa para a prática de uma das maiores taxas de juros do mundo é dada pelo combate da inflação? Sem que nenhuma inteligência se manifeste contra. E, o significativo acréscimo nesse campo ocorre logo depois da eleição da presidenta, com o novo ministro liberal Joaquim Levy. Num governo que teoricamente pertencia a um partido de esquerda. Desde a eleição de Lula em 2002, o primeiro presidente eleito pelo Partido dos Trabalhadores no Brasil, que o complexo rentista-financeiro chantageia de forma mais explícita o habitus econômico do país, sempre a partir de um pressuposto muito claro; a política fiscal deve estar equilibrada. Isto é, o Estado deve gastar apenas o que arrecada, e o seu poder deve proteger as instituições financeiras a todo custo, privatizando os lucros e socializando os riscos. Ora, mas o Estado só consegue arrecadar quando a atividade econômica ocorre, portanto o incentivo a ela é função precípua dele. O jornalista Marcus Faustini em recente coluna no jornal O Globo sentenciou de forma precisa;

"As sucessivas notícias sobre os esquemas de uso pessoal das estruturas de governo, para fortalecimento de grupos privados ou até mesmo de regalias pessoais, demonstram que, no mínimo setores políticos se aproveitaram do enfraquecimento de Dilma para se fortalecer no poder e defender seus interesses. E Temer está no centro desse processo, sabemos. A novela do impeachment aconteceu em cadeia nacional com episódios televisivos e comentários nas redes sociais. Mesmo que as atuais delações que colocam Temer no centro de esquemas sejam questionáveis do ponto de vista legal, como dizem alguns, o episódio da saída de Marcelo Calero do Ministério da Cultura é didático sobre o modo de governar do grupo político de Michel Temer. Calero, que teve extrema coragem pública e de defesa de princípios republicanos, demonstrou como um dos principais homens de Temer (Geddel) agia para interesses próprios. Mesmo diante da crise política." FAUSTINI, Marcus em Diretas já O Globo 13.12.2016

Apesar das palavras esclarecedoras de Marcus Faustini, a questão do sentido da política econômica brasileira permanece obscura e mantém nossa perplexidade, uma vez que Joaquim Levy, ministro de Dilma Roussef, não pode ser visto como uma antítese de Henrique Meirelles, quadro do governo Michel Temer. Afinal, porque no campo econômico os atores permanecem os mesmos, não importando as divergências de teses entre os agentes políticos? Fica cada vez mais clara a hegemonia financeiro-rentista, ou se preferirem neo-liberal dos governos no Brasil seja qual for o governo. Pois o mesmo Henrique Meirelles, também foi presidente do Banco Central de Lula. Esse modelo permanece dispondo de grande consentimento no Brasil, apesar da grave crise econômica de 2008 ocorrida nos EUA e no mundo, que exatamente envolveu fabulosos valores e especulação rentista facilitados pelas teses neo-liberais e monetaristas. É quase um pensamento único sem alternativa crítica, que coercitivamente perpassa as mentes no Brasil, particularmente àquelas que dominam as instâncias decisórias dos governos e os meios de comunicação.

A forma neo-liberal de agir como política de governo começou a emergir como prática, a partir de meados dos anos setenta na cidade de Nova York, era ainda um tempo em que, de um lado as grandes corporações tinham o monopólio de mercados e de outro o mundo do trabalho a partir dos sindicatos impunha ganhos salariais crescentes a essas grandes corporações. Havia ainda uma identidade e solidariedade de classe entre os trabalhadores, que se diferenciavam dos gerentes e dos capitães da industria, num mundo essencialmente voltado para a produção de mercadorias. A partir dos movimentos de esquerda dos anos sessenta, que reinvidicavam maior liberdade individual e direito a maior alteridade pessoal começou a se dar ênfase ao multiculturalismo, o consumismo narcísico, e a fragmentação identitária;

"Considerava-se que poderosas corporações aliadas a um Estado intervencionista dirigiam o mundo de maneiras individualmente opressivas e socialmente injustas." HARVEY 2008 página51

A pauta das liberdades individuais, a partir de uma imensa fragmentação de identidades começou a se sobrepor aos mecanismos de solidariedade de classes, impondo uma imagem de que o Estado intervencionista e burocrático não conseguia promover a inclusão de todos. Há muito que havia uma disputa pelo direcionamento das políticas públicas, das grandes democracias ocidentais entre dois economistas de peso; John Maynard Keynes (1883-1946) e Friedrich August von Hayek (1899-1992). Keynes defendendo uma maior intervenção estatal, pautando a economia sempre que sua operação cíclica apresentasse momentos recessivos, e Hayek combatendo a intervenção estatal como incapacitada de coordenar as informações contidas nos indivíduos, que são os verdadeiros agentes econômicos. A década de setenta marca o declínio das teses de Keynes e a emergência dos pensamentos de Hayek.

O fato é que em 1975 um grupo de bancos de investimentos, liderados por Walter Wriston do Citibank se recusou a rolar a dívida da cidade de Nova York, frustrando as aspirações dos até então todo poderosos fundos de trabalhadores da cidade e sindicatos. O sistema bancário da cidade forçou os sindicatos municipais a investir seus valorosos fundos de pensão em títulos do município, resgatando as finanças públicas. Os serviços, de transporte público à produção de habitação de interesse social da cidade declinaram, reduzindo o padrão de vida da maioria da sua população, e satisfazendo os interesses dos banqueiros de investimento. Tradicionalmente nos EUA, desde os duros anos da recessão dos anos trinta o governo federal é o investidor em social housing, que era oferecida como aluguel social, onde a família fragilizada economicamente paga até 30% de sua renda, sendo complementada com recursos da união. O governo federal construía unidades nos centros urbanos, conformando grandes conjuntos habitacionais, que representavam um estoque de metros quadrados na mão do poder público.

A partir de 1974 a lei de Housing and Community Development Act decretou o fim do investimento federal direto em construção de conjuntos públicos, sob a alegação de que havia gerado grandes conjuntos, muitos dos quais dominados por gangs e marginais. A partir de então os fundos habitacionais passaram a ser transferidos para empreendedores privados que ofereciam uma porcentagem de suas unidades para locação a preços ligeiramente abaixo do mercado. Em 1977 o Community Reinvestment Act (Lei de Reinvestimento na Comunidade) obrigou os bancos a alocar recursos hipotecários nas áreas de onde provinham seus depósitos, um crédito de altíssimo risco, que passou a ser garantido por um complexo processo de securitização, denominado subprime. O sistema funcionou de forma eficiente até 1980, quando foi decretado Depository Institutions Desregulatory and Monetary Control Act (Lei de Desregulação das Instituições Depositárias e do Controle Monetário), que possibilitou a oportunidade da ciranda financeira que irá desembocar na crise de 2008. Toda essa sucessão de eventos comprovam como a habitação de interesse social era vista antes da década de setenta como um direito e não como uma mercadoria financiável, que passou a ser sua concepção com a hegemonia neo-liberal

"O governo federal fez tudo o que pôde para gerar e incentivar esse mercado secundário de hipotecas, que passou a ser uma das grandes fontes de alavancagem de crédito, inclusive para o financiamento da casa própria. A securitização incluiu também os empréstimos subprime. Já em 2007, o negócio subprime constituía 1,5 trlhão de dólares no mercado financeiro global." ROLNIK 2015 página65

No âmbito da cidade de Nova York, o banqueiro Felix Rotahin negociou em 1975 o acordo entre instituições financeiras, a cidade e o governo federal, que segundo HARVEY 2008 irá representar a restituição do poder exclusivo da classe dos financistas frente a outros grupos de pressão. A proposta substituiu o estado de bem estar social, por um ambiente favorável aos negócios, procurando fazer da cidade um centro cultural e turístico, com o lançamento da campanha "I love New York." Foi então criado um ambiente de exploração narcísica do individualismo, da excepcionalidade da personagem, e da submissão da economia ao capital financeiro, representado pelo livro de KOOLHAAS 1994, a "Nova York delirante, um manifesto retroativo". A administração da cidade passou a ser vista como empreendedora e criadora de um ambiente favorável aos negócios, a desindustrialização acelerada passou a ser uma oportunidade para os negócios imobiliários, que se instalaram no lado oeste no antigo distrito tecelão, promovendo invariavelmente a gentrificação.

No começo dos anos oitenta, com Reagan eleito, Nova York viveu uma epidemia de consumo de crack, que o prefeito Rudolf Giuliani enfrentou com a política de tolerância zero, que criminalizou as comunidades precarizadas, enfatizando o reino seguro para a classe média e para os yuppies de Wall Street. O desemprego atingiu 10% no país, e a imprensa, assim como uma parte da inteligência americana conservadora atacava o trabalho organizado, incentivando a migração de grandes corporações das regiões nordeste e do meio oeste sindicalizados, o chamado cinturão da ferrugem, para o sul americano, o México, ou o Sudeste Asiático não sindicalizados, e portanto bons para trabalhar. No campo intelectual, o monetarismo de Friedman se aliou com argumentos menos sofisticados como o de Arthur Laffer, que chegou a defender o corte de impostos para os ricos, e o aumento da carga tributária sobre os extratos médios. Reagan adorou quando Laffer defendeu que a desoneração de impostos iria produzir um aumento de arrecadação pela aceleração da atividade econômica, era a liberação da fera empreendedora capitalista, que enfim subordinava o burocratismo estatal.

Do outro lado do Atlântico, na Grã Bretanha a tradição cultural era outra, afinal o Partido Trabalhista era uma construção profundamente vinculada ao movimento sindical, e que dominava órgãos importantes da governança da cidade de Londres. O poderoso London County Council tinha como premissa básica que a habitação fazia parte do estado de Bem Estar Social desde 1930, e apesar de ter sido gerido durante os anos da segunda guerra pelo Partido Conservador, nunca abandonou essa concepção. Mas, seja à direita, quanto também à esquerda, os governos na Grã Bretanha compartilhavam que a recente decadência do velho império britânico seria compensada, mesmo pelos americanos, com a manutenção da City de Londres como principal praça financeira do mundo.

"A proteção do capital financeiro (por meio de manipulações das taxas de juro) na maioria das vezes conflitava com as necessidades do capital doméstico voltado para a produção (levando assim a uma divisão estrutural da classe capitalista) e em alguns casos inibia a expansão do mercado doméstico (ao restringir o crédito)" HARVEY 2008 página66

O discurso de endemonização do Estado e de celebração do Mercado começou a ganhar força nas colunas do Financial Times, que invariavelmente apontava os casos de inépcia dos governos e do opressivo poder sindical, contraposto as virtudes do individualismo, da liberdade de iniciativas, e a desregulação das finanças. No final dos anos sessenta, o caustico humor inglês começou a voltar suas baterias para os privilégios de classe sejam eles, dos aristocratas, dos políticos e da burocracia sindical, não se importando com os rentistas endinheirados, que começavam a dominar o consumo na City. A eleição de Margareth Thatcher em 1979, um anos antes da de Reagan nos EUA foi consequência direta de uma inflação de 26% e de um desemprego de 1 milhão de pessoas, que doutrinados pela mídia conservadora colocaram a culpa nos acordos dos governos trabalhistas com os sindicatos, notadamente os mineiros.

Já os últimos gabinetes trabalhistas, antes da Dama de Ferro, por conta da crise fiscal acabaram recorrendo ao FMI em 1975-76, sendo obrigados a promover um forte ajuste nos gastos sociais, o que determinaram uma série de greves no inverno de 1978, que foram dos médicos da saúde pública aos coveiros nos cemitérios. Em 1984 Thatcher propõe uma reordenação da estrutura do trabalho no Reino Unido, imediatamente os mineiros do carvão aprovam uma greve, que se estenderá por um ano, e que resultou no fechamento das minas de carvão no país, que passou a importar toda essa mercadoria. Apesar do apoio da opinião pública ao movimento dos mineiros, Thatcher havia ao final desse ano quebrado um símbolo do movimento sindical britânico, e num periodo mais longo no espaço de dez anos havia convertido a Inglaterra num lugar de baixos salários e força de trabalho dócil.

"O mundo capitalista mergulhou na neoliberalização como a resposta por meio de uma série de idas e vindas e de experimentos caóticos que na verdade só convergiram como uma nova ortodoxia com a articulação, nos anos 1990, do que veio a ser conhecido como o 'Consenso de Washington'." HARVEY 2008 página23

Nesse contexto, a cidade de Londres se transformará enormemente, deixando para trás aquilo que já havia sido o maior porto do mundo para se transformar num centro de serviços financeiros e de seguros, com um preço do metro quadrado mais alto do mundo. Simplesmente, um terço da força de trabalho londrina está alocada nesse setor atualmente. Entre 1980-2013 cerca de 2 milhões de moradias sociais foram vendidas. Em 1970 a moradia de locação social correspondia a 30% do estoque total da cidade, em 2007 essa porcentagem havia caído para menos de 18%. Sem esse estoque a regulação do mercado imobiliário londrino tornou-se impossível, fazendo com que os preços disparassem. Em 1981 foi criada a London Docklands Development Corporation com o intuito de tirar do poderoso Great London Council, o poder de determinar o destino da imensa área do antigo porto de Londres. A operação de Canary Wharf foi tocada por essa poderosa corporação, e também apresentou problemas especulativos e fracassos, que foram prontamente cobertos pelo dinheiro do contribuinte inglês, socializando os prejuízos.

"As Docklands representam uma fase da nova ordem social e econômica global, que é caracterizada pela polarização da distribuição de renda e da distribuição ocupacional dos trabalhadores: existem mais empregos de salário alto e de salário baixo, e em números absolutos mais destes últimos. Uma grande oferta de empregos de salário baixo, em Londres e em outros locais, ocupados muitas vezes por membros de grupos étnicos e raciais de imigrantes minoritários, sustenta os distritos residenciais e comerciais de alta renda, com as vagas para os baixos salários concentradas em restaurantes caros, butiques e lojas de alimentos finos, empresas de catering e de limpeza e outros serviços pessoais como limpeza doméstica, consertos, salões de beleza e manicures." GHIRARDO 2002 página213

Portanto, também em ambos os lados do Atlântico, as teses neo-liberais se viram vitoriosas, determinando mesmo que governos democratas e trabalhistas (Clinton e Blair) seguissem o receituário do ajuste fiscal, assim como no Brasil contemporâneo. A cidade tem sido, desde então um território de debates intensos e acalorados, que acabam pela ideologia neo-liberal gerando mais exclusão e diferenciação entre ricos e pobres. A partir de 2008 com a imensa crise das hipotecas subprime, que ainda se reflete em nosso mundo contemporâneo, começam a surgir vozes que questionam o modelo de supremacia financeira. Quando essas vozes chegarão ao Brasil?

BIBLIOGRAFIA:

FAUSTINI, Marcus - Diretas já - Jornal O Globo 13-12-2016
GHIRARDO, Diane - Arquitetura Contemporânea, uma história concisa - Editora Martins Fontes São Paulo 2002
HARVEY, David - O neoliberalismo, história e implicações - editora Loyola São Paulo 2008
KOOLHAAS, Rem - Nova York delirante, um manifesto retroativo - editora Monacelli Nova York 1994
ROLNIK, Raquel - A guerra dos lugares: a colonização e da moradia na era das finanças - editora Boitempo São Paulo 2015

segunda-feira, 12 de dezembro de 2016

Reflexões a partir de um concurso de projetos em Brasília

Primeiro colocado, arquiteta Camila Celin Vila Velha ES
Entre os dias 05 e 07 de dezembro de 2016 fui jurado de um Concurso de Projetos em Brasília, que pretendia selecionar uma proposta pra um terreno na cidade satélite de Santa Maria para uma edificação com unidades habitacionais de interesse social e com comércio. O concurso era organizado pela Companhia de Desenvolvimento Habitacional do Distrito Federal (CODHAB/DF), que está vinculada a Secretaria de Gestão do Território e Habitação (SEGETH) de Brasília.  A reunião e os debates no processo de julgamento tiveram um nível excepcional, e acabaram suscitando uma reflexão importante sobre os conceitos de adequação e escolha entre os arquitetos, tanto do universo dos participantes, como também entre nós, os jurados. A composição da banca eram os arquitetos Manoel Balbino de Goiânia, Paulo Victor Borges Ribeiro, Rubens do Amaral, Marcelo Ulisses Pimenta de Brasília e eu Pedro da Luz Moreira do Rio de Janeiro. A coordenação do concurso era responsabilidade das arquitetas; Graziele Ferreira e Carla de Rezende Castanheira.

A primeira questão a ser destacada é o contexto da cidade de Santa Maria, um município que ainda não está com sua ocupação humana consolidada, tendo na oportunidade de um concurso de projetos, a possibilidade de refletir sobre o seu vir-a-ser. A cidade de Santa Maria apresenta o perfil típico de um município dormitório, que ainda orbita o Plano Piloto de Brasília em muitos aspectos, como; empregos, comércio, serviços, etc... A cidade num olhar rápido apresenta ainda uma baixa densidade, com um comércio ainda provinciano de primeira necessidade, com a maioria de suas edificações desenvolvidas em dois pavimentos. Há a ocorrência esporádica de desenvolvimentos em altura, entre sete e oito pavimentos, mas ainda de forma espaçada, e sem que isso ocorra e reforce seu antigo centro de comércio.

Segundo colocado arquiteto Ricardo Felipe Gonçalves São
Paulo SP
O adensamento habitacional é portanto bem vindo, mas em meu entendimento deveria ser buscado numa escala mais limitada, buscando não depender de soluções mecânicas como elevadores, que penalizam a sustentabilidade dos condomínios, com preços monopolizados. Nesse sentido constata-se como nossa legislação urbanística de maneira geral ainda celebra e induz uma ocupação precoce em altura, mesmo em Santa Maria dada pelo cone de desenvolvimento, expresso no edital do concurso. A crítica a essa postura vem se avolumando na sociedade brasileira, que começa a perceber como essa ruptura da escala de proximidade entre espaços públicos e privados dado pelo desenvolvimento excessivo em altura das edificações, prejudica a vida urbana. O recente filme Aquarius, rodado em Recife e comentado aqui nesse blog e o segundo premiado do concurso de Santa Maria, do arquiteto Ricardo Felipe Gonçalves de São paulo SP, trazem exatamente essa crítica a reclusão excessiva da torre frente ao solo da cidade. Com um desenvolvimento em térreo e mais três pavimentos, o projeto do arquiteto paulista demonstra como a proximidade entre os últimos pavimentos e o solo da cidade pode ser um fator de vitalidade urbana e de mútuo controle.

Terceiro colocado arquiteto Alexandre Luiz Gonçalvez
Belo Horizonte MG, mostrando os dois bolsões de
estacionamento adjacentes ao terreno
Outro aspecto da legislação urbanística de acento modernista e rodoviarista, também presente em Santa Maria, é a exigência de uma vaga de carro por unidade habitacional, e de uma vaga para cada loja comercial disponibilizada dentro do terreno. Tal fato, é ainda mais enfatizado, quando percebemos que no desenho de parcelamento da gleba, nos terrenos temas do concurso estão previstas dois bolsões de estacionamento adjacentes as futuras edificações, portanto com ampla oferta de vagas de carro. E, também pelo alto custo do metro quadrado da realização de pavimentos subterrâneos, para acomodar o grande número de vagas de estacionamento solicitado. Essa postura acaba determinando um caráter nefasto para as cidades brasileiras, uma celebração exagerada do automóvel particular, em detrimento de sistemas de transporte público. Esse rodoviarismo exacerbado acaba capturando grande parte dos recursos públicos investidos nas cidades, que a cada dia se veem mais dominadas por uma demanda que supera de forma rápida os investimentos realizados, gerando imensos congestionamentos.

Uma das Menções Honrosas, arquiteto Moacir Zancopé
Junior Curitiba PR
A segunda questão a ser destacada, e que foi muito debatida pelos membros do juri é a implantação urbana da nova edificação, que deve impulsionar uma urbanidade de maior utilização do espaço público da cidade, propondo a poli-funcionalidade que já estava expressa no programa na junção dos usos habitacionais e comerciais. A avaliação do pavimento térreo e de sua relação com o contínuo da cidade foi fundamental para classificar os projetos, a articulação bem estruturada entre o contínuo de lojas, núcleos de circulação vertical (portarias de acesso), e entrada de veículos foram avaliados a partir da constituição de uma legibilidade clara. Isto é, esses elementos deveriam estar dispostos de forma a permitir sua fácil identificação, não apenas para os futuros habitantes do organismo arquitetônico, mas também para os eventuais estrangeiros, ou primeiros visitantes. Enfim, a articulação entre espaços públicos, semi-públicos (condominiais) e privados deveriam possibilitar uma leitura fácil e universal.

Outra das Menções Honrosas Diogo Erdmann Valls
Porto Alegre RS
O terceiro aspecto intensamente debatido pelos membros do juri foi a interrelação entre expressão gráfica e adoção de métodos construtivos, que racionalizassem a edificação, percebendo-se no âmbito dos concorrentes um afastamento do domínio efetivo de questões relativas ao canteiro de obra, e uma super valoração da expressão gráfica dos projetos. Essa na verdade não é efetivamente uma questão restrita ao universo desse concurso, mas que na verdade envolve o próprio desenvolvimento da cultura arquitetônica em nosso país, e de certa forma em todo o mundo, interessando as escolas, as entidades e ao recém criado Conselho de Arquitetura e Urbanismo. Do ponto de vista do ensino de arquitetura, é claro em nossa contemporaneidade a super valoração dada as novas Tecnologias de Informação e Comunicação (TICs), que se desenvolveram enormemente, possibilitando uma simulação muito mais adequada das futuras intervenções.  As apresentações, perspectivas e simulações das futuras edificações evoluiram quase ao ponto de confundir a fotografia do objeto realizado, com sua simulação. No entanto, é preciso reconhecer, que a representação em arquitetura e urbanismo cumpre um papel analógico de pensar o construído com antecedência, mostrando como a obra se realiza, em sua complexa operatividade, fator que me parece em declínio frente a sedução das imagens, que muitas vezes não resolvem os problemas construtivos efetivos.

Exatamente nesse aspecto, percebe-se uma certa fragilidade entre todos os projetos apresentados ao concurso, um certo afastamento do nosso ofício das implicações e condicionantes da escolha dos sistemas construtivos. No tema da habitação de interesse social, nos manuais de orçamentação mais recentes celebra-se a adoção da solução de alvenaria armada como uma das opções mais baratas para esse tipo de programa. No entanto, a adoção conjunta dessa solução de alvenaria armada com o pilotis de estrutura de concreto independente envolve um complexo problema estático, da transmissão de cargas homogeneamente distribuídas das paredes portantes, para uma estrutura pontual, que trabalha com deformações variadas de suas peças. Um problema para o qual, a solução da transição pode representar custos significativos, e que a maioria dos projetos apresentados não parecia ter qualquer grau de consciência.

Enfim, a participação no Concurso Nacional de Projetos de Arquitetura e Complementares para edifícios de uso misto em Santa Maria foi uma oportunidade para uma série de reflexões sobre a adequação, a escolha, a inserção urbana, o vir-a-ser das cidades brasileiras, a proximidade entre as áreas públicas e privadas, a representação de arquitetura a partir das TICs, e as metodologias construtivas. Reflexões que demonstram o caráter cultural da arquitetura e sua importância na definição do projeto de país que queremos construir, onde afinal haja maior inclusão dos extratos fragilizados de nossa sociedade. Abaixo o link da CODHAB/DF, onde podem ser acessados todos o projetos premiados, bem como a ata do júri.

http://www.codhab.df.gov.br/concursos/eum-santa-maria/resultado

domingo, 4 de dezembro de 2016

O judiciário no Brasil e a questão central do acesso diferenciado à oportunidades nas sociedades contemporâneas

Gastos do Poder Judiciário em comparação a outros países. Gráfico retirado
de SOUZA 2016 página15
Um dos desafios das sociedades modernas contemporâneas é garantir uma certa aparência na equidade da distribuição das oportunidades entre os diferentes extratos sociais, isso é um fato tanto nas sociedades centrais, assim como nas periféricas, do desenvolvimento capitalista. Uma certa equidade na distribuição daquilo que Pierre Bordieau conceituou como Distinção socialmente reconhecida, que envolve a posse de capitais, tais como; econômico, cultural e social. Aqui capital não se restringe a ser uma categoria econômica, mas inclui tudo que garante o acesso aos bens e recursos em disputa na competição social. O sociólogo francês se afasta do economicismo simplificador, caracterizando Distinção como um condicionamento socialmente instalado, que diferencia os seres humanos em função do incremento ou declínio do capital herdado. Bourdieu trabalha com os conceitos de capital herdado e capital desenvolvido, a partir de pré-condições simbólicas que estão mais disponíveis para as classes mais privilegiadas e para a classe média, e muitas vezes ausentes nas classes precarizadas do capitalismo contemporâneo. O capital simbólico de um indivíduo seria; o acesso a cultura, o bom gosto, uma certa sensibilidade no trato social, um refinamento nas maneiras de agir.

Por outro lado, há uma construção simbólica hegemônica no mundo contemporâneo, que identifica num indivíduo anglo-saxão e protestante genérico o paradigma da eficiência e do máximo de utilitarismo do sistema capitalista. Segundo Jessé Souza, tal visão deve a sua construção a Max Weber, que já teve dois textos comentados aqui no blog, exatamente sobre o seu livro "A ética protestante e o "espírito" do capitalismo", que desenvolve exatamente esse aspecto;.

"A grande maioria das versões apologéticas do sujeito liberal nutre-se com fundamento empírico na história da pujança econômica e política norte-americana, em maior ou menor grau, na figura do pioneiro protestante weberiano." SOUZA, 2015 página19

No entanto, é preciso também relembrar que Weber não apenas celebra mas também critica esse homem moderno, que emerge da colonização capitalista dos mundos da vida, apontando sua fragmentação, e sua incapacidade de abordar a totalidade. Para Max Weber, o indivíduo típico moderno é o especialista sem espírito, que tudo sabe a cerca de seu mundo restrito, e nada sabe sobre contextos mais amplos, que na verdade determinam seu pequeno mundo. Para se proteger dessa condição inescapável do mundo moderno, desenvolve uma atitude blasé e distante com uma busca incessante por prazeres rápidos e sem consequências. E mais, Weber não enxergava qualquer divisão entre Estado e Mercado, como grande parte dos cronistas brasileiros apontam, mas identificava a atuação decisiva do primeiro para dinamizar o segundo. E, reconhecia que a construção do aparato burocrático do Estado era fundamental para estruturar os ganhos do mercado, e pacificar entre as classes sociais a disputa pela riqueza socialmente realizada.

Há ainda no senso comum brasileiro, uma ideia equivocada, de que as sociedades mais avançadas desfrutam da efetiva possibilidade de superação dos privilégios permanentes instalados, distribuindo oportunidades de forma mais equilibrada, enquanto os países emergentes ou periféricos são dominados pela lógica do acesso restritivo e seletivo ás oportunidades, fomentando a corrupção recorrente, o compadrio, e o nepotismo. É a ideologia violenta da falsa meritocracia, que não se está descartando, mas que só é possível de ser instalada no Brasil e em outras partes do mundo, a partir do desenvolvimento de mecanismos de ampliação da transparência pública, do controle cruzado entre poderes, e claro com uma melhor distribuição de renda. Portanto, a meritocracia pressupõe uma busca constante de maior inclusão social, de forma a estabelecer uma diversidade de origens sociais, que combata a unicidade do capital herdado, e permita a presença do capital desenvolvido. Portanto, não há possibilidade de desenvolvimento da meritocracia em sociedades onde a concentração de renda assume grandes dimensões.

O genial Nelson Rodrigues, apontava um traço da psicologia nacional, no complexo de vira-lata do brasileiro, que determinava uma constante minoridade na auto-avaliação própria frente a outras nacionalidades. O juiz Sérgio Moro cultua e celebra o american way of life, principalmente no que concerne a operação judicial. Realmente o aparato judicial americano pode ser considerado um dos fundamentos da democracia nos EUA, mais até do que seu sistema eleitoral, que me parece antiquado e conservador, com relação ao brasileiro. Mas será que a corrupção lá é menor do que aqui, por conta da forma de atuação do judiciário? A turma dos procuradores da Lava Jato ameaça renunciar, se as propostas de maior controle dos abusos de procuradores e de juízes for aprovada no Legislativo. Mas não é exatamente esse controle cruzado que garantiria a presença da ética no complexo jurídico-policial do Brasil?

O gráfico apresentado no início desse artigo explicita muito do que está ocorrendo no Brasil, afinal a corrupção de agentes públicos não se manifesta apenas pela cooptação do mercado, mas também pelo desenvolvimento autônomo de estamentos sociais, que definem sua própria remuneração muito acima de qualquer teto do razoável. Pelo mesmo gráfico, o Brasil gasta seis vezes mais com Justiça do que os EUA, e no entanto nossa justiça não é mais eficiente do que a americana em seis vezes.

Há no Brasil duas castas sociais, o legislativo e o judiciário, que recebem recursos do Estado muito acima do praticado em outros países. Isso também é corrupção, mesmo quando representa para parcelas significativas de nossa população, uma certa Distinção, no sentido conferido por BOURDIER, 2007. Afinal, o aparato jurídico policial no Brasil conquistou essas benesses a partir da organização corporativa de seus interesses e da pressão por melhores rendimentos, frente a outros funcionários públicos, como professores, médicos, arquitetos, etc...

No mesmo sentido, a veneração do pioneiro americano protestante como a figura emblemática de eficiência capitalista, culto declarado da República de Curitiba, também envolve uma alienação; de um ser cioso de sua especialidade, mas que não enxerga um palmo para além dela. Enfim, um alienado das consequências reais de seus atos e de suas práticas, um tarefeiro cego, sem plano ou projeto para o país que habita.

Ainda nesse mesmo aspecto, é importante entender que o discurso de endemonização do Estado, e de celebração das virtudes do Mercado, como entidades ou atitudes mutuamente excludentes, não nos ajuda a entender a real dimensão da corrupção, que opera nas duas esferas. Afinal, a impunidade de altos funcionários do sistema financeiro privado-internacional, nas sucessivas crises rentistas por que passou o sistema do capital, a partir de 2008, comprovam como variados Estados tem sido condescendentes com esses agentes, que privatizaram recursos públicos de forma indecente.(1)

E, por último, a questão da meritocracia, uma qualidade tão associada em nossa recente história ao judiciário, mas que num país com a nossa clivagem social violenta representa um potencial perigo a ampliação das oportunidades. O desenvolvimento de uma maior equidade entre nós é fundamental, e só poderá ser atingido com políticas públicas, que incentivem a educação, a saúde e o bem estar espacial e social, que foram timidamente promovidas pelos últimos governos de esquerda.

Afinal, não se deve jogar a criança fora, junto com a água suja de seu banho...

Notas:

(1) Para uma compreensão apurada de como recursos de tributos públicos fora transferidos para bancos privados nas recentes crises hipotecárias nos EUA, na Espanha e no Reino Unido ver ROLNIK, Raquel - Guerra dos Lugares, a colonização da terra e da moradia na era das finanças - editora Boitempo São Paulo 2015

Bibliografia:

BOURDIEU, Pierre - Distinção, crítica social do julgamento - Edusp São Paulo 2007
SOUZA, Jessé - A tolice da inteligência brasileira: ou como o país se deixa manipular pela elite - editora Leya São Paulo 2015
SOUZA, Jessé - A radiografia do golpe - editora Leya Rio de Janeiro 2016
WEBER, Max - A ética protestante e o 'espírito' do capitalismo - Editora Companhia das Letras São Paulo 2004

quarta-feira, 30 de novembro de 2016

Viagem à Assunção, para o encontro da Federação Panamericana de Arquitetos

Escola experimental Paraguai-Brasil
de Reidy
Estive entre os dias 24 e 27 de novembro de 2016,  na cidade de Assunção, capital do Paraguai, para o encontro da Federação Panamericana de Entidades de Arquitetura (FPAA), representando a diretoria nacional do Instituto de Arquitetos do Brasil (IAB). Portanto, as impressões expressas aqui são de um viajante curioso pelo desenvolvimento do fenômeno cidade e da arquitetura em várias partes do mundo, que apenas procurou informações gerais,e basicamente passeou pelo casco histórico de Assunção e seu entorno imediato. Na verdade, ao sair do Brasil tinha uma visita pré-determinada com antecedência, conhecer a Escola Experimental Paraguai-Brasil do arquiteto Afonso Eduardo Reidy, o autor dos emblemáticos Parque do Flamengo e do Museu de Arte Moderna, ambos no Rio
O tema do MAM-RJ, anunciado na
Escola Brasil-Paraguai
de Janeiro. Sem dúvida nenhuma, uma obra ímpar, que apesar do mau estado de conservação, ainda demonstra a incrível destreza desse arquiteto na manipulação do espaço, da escala e da proporção num projeto realizado em 1952, que só foi concluído em 1964 depois da morte do arquiteto. O auditório, o ginásio e a piscina não foram feitos, e hoje em dia grande parte do pilotis proposto por Reidy encontra-se ocupado. Apesar disso tudo, a obra ainda carrega uma imensa potência, demonstrada no dimensionamento da altura do pilotis, das salas de aula, e na conformação dos pilares da fachada principal, comprovando de forma inequívoca a sofisticação das propostas de Reidy. Chama a atenção no grande bloco das salas de aula, o anúncio do tema do MAM-RJ, o uso da estrutura de concreto aparente, que se repete aqui num intercolúnio primoroso, do ponto de vista do ritmo e das proporções.

Edifício do Cabildo, que era o antigo
conselho municipal nas colônias
espanholas da América
A maquete da antiga cidade
A cidade de Assunção, fundada em 15 de agosto de 1537, capital do Paraguai, localizada na confluência do rio Paraguai com o rio Pilcomayo, possui 544mil habitantes em sua sede municipal e 2,5milhões na sua área metropolitana. Pelas minhas impressões pessoais, ou memórias afetivas, tendo em vista sua morfologia geral, Assunção pode ser comparada como algo, que mistura Belo Horizonte, com Buenos Aires. Da capital mineira, Assunção traz as ruas em ladeiras, que na topografia do planalto do rio Paraguai são mais suaves, que no quadrilátero ferrífero no centro de Minas. De uma maneira geral, a tradicional grelha da Lei das Indias, traçado que estrutura as cidades espanholas na América, se adequa ao desenvolvimento do rio Paraguai, intercalando ruas planas, paralelas às suas margens e ruas inclinadas, perpendiculares a esse. De Buenos Aires, Assunção tem a presença dessa grelha estruturante, a grandeza da arquitetura colonial espanhola e de sua arquitetura belle epoche, aqui mais espaçada e esgarçada, e muitas vezes ameaçada. Há uma pré-figuração, que domina minha leitura imediata da cidade, que é a forma tipológica das antigas missões jesuíticas, que se consolidaram como primeira ocupação desse imenso território constituído e estruturado pela bacia do Prata. Reforça essa condição a recorrente presença de arcadas, avarandados ou loggias, principalmente nas edificações coloniais e neo-clássicas, que oferecem generosos passeios cobertos aos pedestres, do inclemente sol do Chaco.

Nesse sentido, uma das mais interessantes visitas que fiz foi a Manzana Rivera. Um conjunto de nove casas restauradas articuladas por seus pátios, localizada em frente ao Palácio de  Benigno López, sede do poder executivo paraguaio. Uma quadra inteira com nove casas restauradas; Casa Viola (séculoXVIII), Casa Clari (princípios do século XX), Clari Mestre (1912), Vertua (1898), Emasa, Casa Castelvi (1804), Casa Serra1, e 2 (sem data), e Casa Balario (1901). Esse conjunto constitui um centro cultural, que está conectado pelos pátios centrais das antigas casas, reproduzindo a tipologia da habitação entorno do vazio. Gaston Bachelard,
Casa Viola (século XVIII)
filósofo francês fenomenólogo descrevia a casa em torno do pátio, como a apropriação ou recorte de um pedaço de céu, que passava a ser patrimônio da edificação, recortando e tornando íntima a sucessão de luzes, noites e luas daquele trecho da abóbada celeste. A visita a Manzana Rivera, articula e modula essa sucessão de diferentes iluminações e graus de intimidade e de seu reverso, em função de suas dimensões e fachadas adjacentes. A geratriz da mais antiga casa, a Viola (séculoXVIII) é um mistério que não consegui decifrar, o fato de não estar alinhada pela conformação das ruas adjacentes aponta que essa construção antecede o Cabildo e a malha de ruas. Há no Museu da cidade, instalado na mesma edificação já mencionada do Cabildo, uma maquete que reconstroi a ocupação colonial de Assunção. Nessa maquete também não se encontra, uma justificativa plausível para a implantação esconsa da Casa Viola, há não ser pela estrutura pouco densa da cidade de Assunção de então, que talvez libertasse seus construtores dos alinhamentos das ruas da cidade, podendo ter sido a sede de uma antiga estância, ligada mais as atividades rural, do que urbanas. No entanto, a proximidade com a antiga praça doCabildo desconstroe essa hipótese, sem descartá-la totalmente.

A cidade mantém um ar bucólico e provinciano, compartilhando um certo orgulho pela sua especificidade indígena e por seu distanciamento de uma cultura majoritariamente ocidental. A língua Guarani ainda é usada na cidade, inclusive por uma população mais jovem, que muitas vezes se orgulha desse patrimônio, das antigas populações indígenas da área.

Hotel Guarani
O hotel Guarani no centro da cidade de Assunção é fruto de um concurso de projetos, organizado pelo Instituto de Prevision Social, vencido por um arquiteto radicado em São Paulo, Adolpho Rubio Morales, que é autor da Assembléia de Vereadores da cidade de São Paulo. A edificação tem uma característica expressividade nos elementos que sustentam (pilares) o seu peso, transferindo para o solo. O concurso foi organizado em 1957, tendo como membro do juri Afonso Eduardo Reidy, com uma premissa expressa em seu edital; gerar um símbolo emblemático moderno para a cidade de Assunção. A projeção da placa corresponde aos limites da quadra, ao alinhamento de suas ruas, enquanto a torre sobre essa placa tem uma projeção triangular. O edifício na manipulação dessa expressividade dos seus pilares, e na distinção entre os volumes da placa e da torre beira um formalismo exarcebado, com comprometimento da continuidade estrutural.

Há uma recorrente e fantasmagórica presença na cidade de estruturas de torres inacabadas de concreto abandonadas, que muitas vezes são utilizadas como estacionamento nos seus pavimentos próximos ao térreo. Essa presença confere as vezes grande descontinuidades aos conjuntos arquitetônicos, explicitando a presença de um capital especulativo de curtíssimo prazo, com uma clara ansiedade imediatista, descasada dos interesses de mais longo prazo da cidade. A tipologia da torre já domina o skyline da cidade, pontuando essa ansiedade pela busca de ícones, que por sua generalização acabam denunciando uma competição descontínua e desneccessária.

Câmara Legislativa
Há também novas edificações recentemente inauguradas na cidade, inseridas no antigo casco histórico de Assunção, a Câmara Federal na mesma praça do Cabildo, e a Biblioteca Nacional próxima dessa última, voltada para o recente passeio da beira rio, recentemente configurada. Duas edificações que foram fruto de concursos de projetos, com dois resultados divergentes, a Cãmara com uma certa tendência ostentatória, expressa numa materialidade eclética, e a Biblioteca com uma atitude sóbrea e concisa, que me pareceu mais adequada ao contexto. A Câmara em suas tres frentes manipula uma materialidade de vidro,
Biblioteca Nacional
revestimentos de alumínio e granito próxima da imagem das corporações contemporâneas, que claramente desequilibra com o nível de tratamento precário do espaço público de Assunção, mesmo nessa região central. Há portanto, uma ostentação descontextualizadora, que basicamente choca e desequilibra. Enquanto a sobriedade da materialidade da Biblioteca, resumida a vidro e ferro, bem como a concisão de sua volumetria constroem uma imagem muito mais adequada ao novo parque que se inaugura. A Biblioteca ainda não foi inaugurada, estando ainda isolada por tapumes, o que certamente compromete minhas impressões. Há aqui um partido topográfico que tira seus benefícios do desnível existente entre o novo parque e o greide da cidade.

Enfim, essas são minhas impressões sobre a cidade de Assunção, e nos revela a imensa responsabilidade que envolve o ofício da arquitetura e do urbanismo, na geração de adequação ao contexto existente. Portanto, precisamos ampliar de forma expressiva os mecanismos de controle para a definição de nossos esforços construtivos, orientando nossos planos e projetos para se atingir essa adequação.

terça-feira, 15 de novembro de 2016

A história, memória e esquecimento rápido

Recentemente uma matéria na televisão brasileira, mostrou a remontagem em Berlim do bunker subterrâneo onde Adolf Hitler se suicidou, com a chegada das tropas soviéticas à cidade. A matéria mencionava a reação de uma parte da imprensa alemã, que rechaçava a reconstrução de passado tão doloroso para o país. Mas também mostrava, o guia responsável por levar os visitantes aos cenários reconstruídos, defendendo a iniciativa, como uma memorização necessária, principalmente agora que a Europa novamente se confronta com a xenofobia e variados movimentos neo-nazistas. Imediatamente, pensei na forma como temos tratado nossa própria história recente e de mais longo prazo,e me recordei da minha visita a Berlim e Hamburgo em 2012.

Há uns cinco anos visitei a Alemanha, e particularmente a cidade de Berlim, onde percebi entre a sua população, seja idosa ou mais jovem, uma clara patrulha anti-nacionalista, que rechaçava claramente manifestações de símbolos patrióticos, como; bandeiras, hinos,e outros. Ainda me lembro num final de tarde de assistir pela televisão, num tradicional bar e restaurante de culinária bávara, na praça das duas catedrais, no centro de Berlim, a uma partida de futebol entre Alemanha e França, na cidade de Paris. E, apesar do engajamento da torcida pró time alemão, os idosos e jovens berlinenses não viam com simpatia a execução do hino do país antes da partida, assim como torcedores que carregavam a bandeira do país, seja no distante Estádio de France, ou ali naquele bar. Me lembro de ter perguntado a uma jovem alemã sobre as manifestações de nacionalismo numa partida de futebol, e ela ter me alertado que naquele país havia um claro pudor anti-nacionalista, e, que para ela quem estava em campo era a Federação Alemã de Futebol, e não o país. Certamente aquelas eram marcas deixadas pela aventura terrível do nacional-socialismo no solo alemão, nas décadas de trinta e quarenta do século XX, que certamente não eram celebradas, mas que deveriam ser constantemente rememoradas.

A partir desses relatos é quase inevitável, um paralelo com a forma de agir de nós brasileiros, tanto com relação a nossa história, como também com relação ao futebol, que veio na Copa do Mundo de 2014 a ser tão maltratado pela mesma seleção alemã. Adianto, que não se trata da expressão do velho complexo de vira-lata, sinteticamente imposto como uma nossa identidade pelo genial dramaturgo Nelson Rodrigues. Particularmente, já compartilhava, como ainda compartilho a convicção algo auto-celebratória, de que uma figura como Hitler, jamais seria eleita no Brasil. Não é claro, por uma maior consciência do nosso povo, mas por uma desconfiança atávica aos discursos heróicos dos nossos políticos. Talvez, uma falta de caráter, ancorada em Macunaíma. E, aqui é preciso afirmar de forma clara, que não há na constatação, qualquer pretensão a precisão teórica, apenas a necessidade de se remeter ao afetivo e emocional de forma intuitiva, que invariavelmente possibilita apenas tornar o mundo aceitável e compreensível.

Mas voltemos a nossa relação com a história e nosso passado remoto e mais recente; a Escravidão, a Repressão do Estado Novo, ou do Golpe Civil-Militar de 1964, momentos repetidos de baixa auto-estima na história do Brasil, assim como o Nazismo na Alemanha. Me parece, que a sociedade brasileira moderna traz em seu bojo uma série de hierarquias inarticuladas ou irrefletidas, que decorrem da ausência de crítica sistemática de nosso passado escravocrata, de última nação do ocidente a se livrar dessa terrível estrutura social, ou de inevitável tendência autoritária, pela recorrência dos Golpes de Estado. Histórias, relatos e narrativas, que precisam ser recalcados ou superados de forma ligeira, e sem muito aprofundamento reflexivo, porque são feridas, ainda não cicatrizadas. Mas, que na verdade precisam estar sendo constantemente relembradas para que possamos superá-las, como heranças malditas que ainda nos assolam, e portanto precisam ser enfrentadas. Uma didática, a partir de nossos erros e equívocos encarados como potenciais trampolins transformadores, como narrativas que nos possibilitam abandonar nossas mazelas, mais que nossos acertos. Um impulsionador de um outro projeto societário, mais inclusivo.

Assim, se considerarmos apenas a escravidão dos negros, a mais remota causa de nossa baixa estima chegamos a conclusão, que herdamos uma massa imensa de pessoas tratadas como sub-humanas nas interações concretas do nosso dia a dia. Herdamos também uma certa ansiedade ligeira por se livrar de passados indesejáveis, ou pouco celebratórios de forma irrefletida. Uma classe dominante precocemente internacionalizada, que não se identifica com os outros extratos de nossa sociedade, mantendo uma indiferença e cinismo com relação ao desenvolvimento da nação. Uma ausência de um projeto de mais longo prazo, capaz de articular uma ideia de nação, que se desenvolve conjuntamente. Uma mentalidade predatória e imediatista de curta duração. Uma singular classe média, que lida diretamente com essa massa sub-humana, que lhe fornece tempo e energia nos trabalhos desqualificados, permitindo que ela se dedique as atividades dignas e úteis. Um relacionamento afetuoso e exploratório dessa classe média com esses extratos sub-humanos, que paternaliza e ao mesmo tempo explora com baixos salários. Essa mesma classe média volta e meia se sente ameaçada por qualquer conquista de ascensão social desses mesmos extratos populares, expressando um asco, que não tolera a transformação dos aeroportos em rodoviárias, ou os recentes benefícios previdenciários ás empregadas domésticas.

Enfim, a história e nossa memória não devem ser relembradas apenas em seus acertos e virtudes, mas principalmente seus erros e infortúnios devem nos acompanhar de forma constante, para que nos auto imponham mudanças. O esquecimento e o recalque dos nossos momentos de baixa auto-estima, só nos levam a repetição infindável de nossa história.

sábado, 5 de novembro de 2016

Hoje, o samba saiu, procurando você...

Cinco ou seis retas, um castelo. E, mais seus
torreões...
As noites de sexta feira na cidade do Rio de Janeiro são uma experiência única, e memorável. Num restaurante em Santa Teresa, uma cantora chilena enfrenta com segurança a bossa nova carioca, os sambas de Madureira, ou os desenhos poéticos da Aquarela do Brasil, num tom de soprano castelhano e competente. Apenas os ouvidos mais ajustados reconhecem o tom endurecido do espanhol, no samba do avión de Tom Jobim, ou a Aquarela de Toquinho que de forma despudorada recita que com; "cinco ou seis retas é fácil fazer um castelo".

Será mesmo possível?

Ou, aqui se manifesta toda a influência do doutor Lucio Costa, que na Praça dos Três Poderes em Brasília explicita sua filiação inconteste ao triângulo renascentista? Ou seria, aos avanços técnicos belicosos e fortificados da cidade de Palmanova na Itália, que foram gerados pela pretensão racional da balística dos canhões? Àqueles que duvidam, ouçam a sequência com atenção, e, nela encontramos; "E, se faço chover, com dois riscos tenho um guarda chuva..."

Ou seriam as asas sul e norte do Plano Piloto de Brasília, contrapostos ao eixo monumental? "Aí essa terra ainda vai cumprir seu ideal, ainda vai tornar-se um imenso Portugal...."

O fato é, em que Toquinho pensava quando escreveu os versos; "com cinco ou seis retas é fácil fazer um castelo", ou "giro um simples compasso e num círculo eu faço o mundo", ou ainda "Com alguns bons amigos, bebendo de bem com a vida"?

Num desenho, ou num desejo?

E, esse poderia ser um exercício dado á alunos do primeiro período de uma escola de arquitetura ou aos candidatos de um doutorado de arquitetura e urbanismo, ou ainda aos políticos brasileiros. Como fazer, com cinco ou seis retas um castelo? Que resista a estupidez do mundo contemporâneo?

Leveza, simplicidade e síntese...

Abaixo o link para ouvir a música. Simplesmente, uma maravilha!!!!

https://www.youtube.com/watch?v=-Gsdp2zSCjY

domingo, 30 de outubro de 2016

PEC241, Hegemonia Rentista e o Interesse Público

Num gráfico, que teve ampla divulgação pelo Senado Federal em Brasília, no qual foi mostrada a composição da dívida pública brasileira no ano de 2014, considerando um orçamento da União já executado de R$2,168trilhões. Segundo essa figura, que está mostrada ao lado, 45,1% correspondem a juros e amortizações da dívida, ou R$978milhões, a Previdência Social correspondem 21,8%, ou R$472milhões, e gastos classificados como outros somam 16,2%, ou R$351milhões. Apenas, 9,2% correspondem às Transferências a Estados e Municípios, 4% à Saúde, e 3,7% à Educação. Portanto, podemos dizer que 66,9% - Juros e Amortizações, mais Previdência Social - da dívida pública brasileira está destinada a um complexo sistema que pode ser denominado como Nexo Estado-Finanças, que envolvem mecanismos bancários, tais como empréstimos, riscos, seguros, etc... Alguns teóricos mencionam, como um setor econômico denominado pela sigla em inglês Fire (finances, insurance, and real estate), finanças, seguro e imóveis, que criaram uma lógica própria no nosso mundo contemporâneo. A complexidade do sistema financeiro internacional é hoje um fato no mundo todo, e as suas estruturas controlam e ditam posturas governamentais, sem muita consulta aos cidadãos em qualquer país do mundo. Os financistas conseguiram construir uma cortina de fumaça desinformadora, que compartilha falsas verdades, como por exemplo, a de que o ajuste fiscal é fundamental para a saúde econômica de qualquer nação.

Segundo estudo desenvolvido pelo Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas (IPEA), pelos pesquisadores Fabíola Vieira e Rodrigo Benevides em 2013, a despesa com saúde per capita do Brasil foi de US$591,00/habitante, quase metade do gasto Argentino, US$1.167,00/habitante, e um sétimo do Americano US$4.307,00/habitante. No campo da educação, segundo o IBGE com relação ao grau de analfabetismo, passamos em 2000 de 13,63% de analfabetos com mais de quinze anos de idade, para 9,6% em 2010, e 8,4% em 2014, o que significou um grande avanço nessa área. Ainda segundo o IBGE, o Brasil passou a ter em 2006, 97% de suas crianças de 7 a 14 anos frequentando uma escola. Apesar disso, a imprensa nacional e grande parte de seus analistas apontam a absoluta necessidade de aprovação do teto fiscal, a Proposta de Emenda Constitucional, PEC241, que congela os gastos com saúde, educação e investimentos públicos por 20 anos. Os argumentos de forma absurda e irracional chegam a apontar que esse ajuste atende inclusive as necessidades das classes menos favorecidas. Mais uma vez fica claro, que há um ajuste de longo prazo em curso no sistema capitalista internacional, que abandonou uma dimensão produtiva e desenvolvimentista, para uma rentista e de acumulação flexível. Esse ajuste começa a ser instalado, ao final da década de setenta do século XX, quando se presencia o declínio das políticas social-democratas e a emergência da desregulamentação neo-liberal, que enfatiza a necessidade da redução da carga tributária a qualquer custo. As Tecnologias de Informação e Comunicação (TICs), também possibilitaram um incrível incremento dos fluxos de capital pelo mundo, que deixaram de ser fiscalizados, e portanto taxados pelos Estados Nacionais. E, quem manifesta uma opinião similar nesse assunto é o economista Joseph E. Stglitz, que foi assessor de Bill Clinton e economista chefe do Banco Mundial, sem portanto qualquer ligação com o campo do marxismo;

"Algumas das inovações mais importantes nos negócios no últimos trinta anos se concentraram não em como tornar a economia mais eficaz, mas em como garantir o poder de monopólio e contornar as regulamentações governamentais que pretendiam alinhar benefícios sociais e retornos privados." STIGLITZ 2007 página46

Aqui fica claro como a economia no mundo todo tendeu para a desregulamentação, livrando os capitalistas da taxação de impostos, gerando uma clara casta de financistas que são os principais beneficiários, e impondo ao cidadão comum um pesado ônus, seja no corte dos benefícios sociais, ou na sua aposentadoria. Nesse contexto, o Brasil vem se alinhando com essas tendências de forma acrítica, sem avaliar suas particularidades e características próprias. O país demanda investimentos urgentes em infraestrutura urbana, inclusive para melhorar sua performance em educação e saúde da sua população. Essa infraestrutura, que demanda recursos públicos é fundamental para requalificar as cidades brasileiras, tornando-as instrumentos de inclusão social e de distribuição de oportunidades de forma mais equânime, não podendo ser canalizadas para os interesses rentistas de uma minoria, que vem limitando o debate.

BIBLIOGRAFIA:
STIGLITZ, Joseph E. - Globalização como dar certo - Companhia das Letras São Paulo 2007
http://www.revistaforum.com.br/mariafro/2016/10/03/ipea-os-impactos-do-novo-regime-fiscal-para-o-financiamento-do-sistema-unico-de-saude-e-para-a-efetivacao-do-direito-a-saude-no-brasil/

sexta-feira, 28 de outubro de 2016

Debate na rádio Roquete Pinto sobre a cidade que queremos

A equipe do programa e os debatedores
Na última quarta feira dia 26 de outubro de 2016, estive como presidente do IAB-RJ na Radio Roquete Pinto, com Henrique Silveira coordenador da Casa Fluminense, e Antonio Oscar coordenador do Fórum de Transparência e Controle Social de Niterói, num debate para pensar a agenda da cidade metropolitana do Rio de Janeiro no periodo pós Jogos Olímpicos. O programa da Rádio Roquete Pinto, que vai ao ar as 9:00 da manhã, possui uma estrutura interessante e dinãmica, dando voz a vários ouvintes, no telefone, nas redes sociais, que questionam os debatedores com seus interesses e compreensões.

Nas minhas falas procurei pontuar, que as ações de planejamento e de projeto são fundamentais para ampliar a transparência sobre a cidade que queremos construir para as futuras gerações. Não há uma solução mágica para transformar nossas cidades da noite para o dia com uma bala de prata. Elas demandam transformações continuadas, que devem começar já. É necessário investir em planejamento e em projeto para que possamos préfigurar nossos desejos e interesses, que certamente se confrontarão com os de outros grupos. O campo do plano e do projeto é sempre o do conflito.

http://bit.ly/2eS2T3c

domingo, 16 de outubro de 2016

Desenho e inadequação ou, a morte de uma ciclista em Botafogo no Rio de Janeiro

O local do atropelamento de Julia, com as ondulações
no asfalto, produzidas pelas frenagens dos ônibus
A cidade ou o espaço construído pelo homem é um aparato ligado ao nosso cotidiano mais banal. Aqui nesse espaço nosso dia a dia é determinado de forma marcante, e de certa maneira,trágica. A notícia da morte de uma ciclista de 19 anos, Julia Resende de Moura na Rua São Clemente, na última terça feira, dia 11 de outubro no bairro de Botafogo, na cidade do Rio de Janeiro, nos traz uma dimensão de uma perda irreparável para a cidade. A jovem Julia parece fazer parte de uma tribo de jovens, que cada vez mais se multiplicam em nossas cidades, que começam a transformar o mundo a partir de mudanças no seu cotidiano particular. Abandonam os carros, pela bicicleta, para reduzir os impactos nas emissões de carbono e afastar o problema do aquecimento global no planeta, moram em favelas como o Dona Marta, pois reconhecem nesses locais uma vida mais cidadã. Enfim, acreditam que as mudanças devem começar por transformações em suas próprias vidas.

No entanto, a cidade tal como construída, ainda possui uma inércia frente a essas novas demandas, ela ainda não é adaptável. Ao que tudo indica, a jovem Julia morreu atropelada por um ônibus, pela inadequação encontrada na rua São Clemente, para atender ao fluxo de ciclistas, que a cada dia se multiplica mais. Segundo testemunhas, uma ondulação no asfalto da rua, junto a sarjeta do meio fio provocou, a queda da ciclista, que foi atropelada pelo ônibus. Importante salientar, que essas ondulações no asfalto são produzidas pela própria frenagem dos ônibus, o que nos denuncia o caráter inadequado, do desenho, da materialidade e do disciplinamento dos usuários na via. Mais uma vez se manifesta aqui como o desenho, a materialidade, e o mútuo disciplinamento precisam estar coordenados e integrados de forma estruturada. O problema me parece muito mais profundo do que a mera construção de uma simples ciclo-faixa na São Clemente, como muitos ciclistas solicitaram, reivindicando melhor tratamento.

No meu entendimento, o caminhante a pé, o pedestre, em suas versões mais fragilizadas - idosos e crianças - devem ser o agente eleito para a busca de solução das atuais inadequações de desenho, materialidade e disciplinamento. Há um reconhecimento tácito de todos, que as cidades brasileiras despenderam, e ainda despendem energia demais com obras que privilegiam, um insano rodoviarismo, que logo se demonstra incapaz de atender sua própria demanda. Mas trocá-lo por um ciclismo redutor não me parece encarar o problema em toda sua dimensão, afinal a interface entre ciclistas e pedestres é predatória e agressiva. Precisamos enfim reduzir as caixas de rolamento de nossas ruas, privilegiando numa ordem clara de prioridade; em primeiro lugar os pedestres, em seguida e nessa ordem transporte público, ciclistas, e por último, o automóvel individual. Essa premissa de desenho precisa passar a pautar o cotidiano das cidades no Brasil.

quarta-feira, 12 de outubro de 2016

Brasília e os pedestres

O eixão habitacional e sua clara celebração do automóvel
O Plano Piloto de Brasília possui uma diretriz rodoviarista, o desenho de Lucio Costa privilegia claramente o automóvel particular, evitando cruzamentos e sinais, favorecendo a velocidade e uma certa agressividade do tráfego sobre pneus, que não incentiva o caminhar do pedestre. No entanto, nota-se a cada dia mais forte, que os pedestres nessa cidade apresentam demandas por um desenho mais amigável para o seu caminhar, tais como; calçadas, faixas de pedestres e elementos de traffic calming. A cidade contemporânea celebra a presença do pedestre circulando, pois esse fato traz segurança, e é a materialização física da interação social, da vitalidade dos espaços públicos. O tombamento do Plano Piloto de Brasília, segundo definição do site do Instituto de Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) é do traçado urbano da cidade.

"O tombamento do conjunto urbanístico de Brasília pelo Governo Federal e Governo do Distrito Federal tem caráter específico: é, essencialmente, urbanístico e não arquitetônico. Ou seja, não há tombamento específico (individual) de prédios – exceto alguns poucos nominados individualmente (edifícios projetados pelo arquiteto Oscar Niemeyer, em sua maioria), que estão tombados. O que está sob proteção federal (tombamento histórico) é a concepção urbana da cidade, materializada na definição e interação de suas quatro escalas urbanísticas – monumental, gregária, residencial e bucólica. Portanto, o que se busca preservar são as características e a articulação dessas quatro escalas..." IPHAN

Particularmente, considero que um dos elementos mais potentes do desenho de Lucio Costa é o da definição da escala habitacional, as superquadras, particularmente a proporção e a escala dos edifícios com seis andares garantem uma qualidade espacial de grande expressão. A base argumentativa que Lucio Costa usou para definir essas dimensões no que concerne à altura das edificações, tinha uma base poética e pragmática. Segundo o urbanista, essa escala era de apenas seis andares, para ficar na dimensão do grito da mãe para chamar e convocar seus filhos nas áreas comuns das superquadras, para suas solicitações. Apesar disso, não há como negar as limitações para a circulação de pedestres, e o cruzamento entre as superquadras, principalmente quando há necessidade de cruzar o eixão, as duas asas. Há passarelas subterrâneas, que possibilitam esse cruzamento, no entanto elas não são seguras a todas as horas, e a cidade de uma maneira geral se ressente de um maior cuidado com o pedestre.

Setor comercial sul de Brasília
Há áreas, como setor comercial sul, onde a circulação de pedestres é intensa, pelo menos nos horários comerciais. A solução das galerias do "tipo" Agache, ao longo dos edifícios comerciais conseguiu atrair um comércio de rua com grande vitalidade. No entanto, o rígido zoneamento modernista também condiciona que a partir das 19:00 esse setor se esvazie de gente, se tornando uma área insegura. A promoção e incentivo de uma multifuncionalidade, com a atração de habitações para esse setor traria também o interesse do comércio dessa região se manter aberto até mais tarde, alcançando-se melhor vitalidade. Enfim, com relação a circulação de pedestres, há diferentes problemas em uma grande diversidade de lugares e particularidades, dentro do Plano Piloto, que precisam ser enfrentadas com inteligência e articulação de ações.

Mas, acho que já chegamos na hora de pensar em sobrepor sobre o desenho do doutor Lucio Costa, uma lógica de maior acolhimento ao caminhar do pedestre, quem sabe um concurso público de projetos, enfocando as diversas problemáticas do Plano Piloto, para possibilitar um melhor acolhimento. Considero que essa ação seria uma iniciativa que na verdade celebraria o desenho e o próprio tombamento da cidade modernista de Brasília, agregando uma lógica de inclusão social e de sustentabilidade para nosso patrimônio.


REFERÊNCIAS:

http://portal.iphan.gov.br/pagina/detalhes/618/

quinta-feira, 6 de outubro de 2016

Debate no IAB-RJ sobre o filme O Sonho Olímpico

Nessa última segunda feira dia 03 de outubro de 2016 foi feita a projeção do filme-documentário O Sonho Olímpico, com produção de Einar Braathen e direção Anne Kjersti BjØrn, ambos noruegueses, que aborda os Jogos Olímpicos no mundo e sua última edição na cidade do Rio de Janeiro. O argumento é bastante interessante pois aborda a visão de um jovem atleta norueguês engajado nos jogos de inverno, que visita o Rio de Janeiro no periodo que antecede a realização das Olimpíadas. Após a projeção foi realizado um debate com o produtor e a diretora do filme, no qual ficou demonstrado como o intercâmbio e a interação com outras realidades podem ser um hábito frutífero, para a avaliação da forma como estamos produzindo a ocupação do espaço construído de nossas cidades.

O tema da produção de um espaço promotor de maior equidade de oportunidades esteve na tônica do filme e dos debates, o espaço urbano como promotor de melhor divisão de renda, fatos que não estiveram na pauta da cidade olímpica do Rio de Janeiro e na campanha para os governos municipais. O filme aborda o tema da remoção da favela Vila Autódromo, adjacente ao Parque Olímpico da Barra da Tijuca, que no memorial do projeto vencedor do concurso internacional de arquitetura da firma AECON de Londres, estava prevista a sua urbanização, reforçando a convivência entre favela e cidade tão presente no restante do Rio de Janeiro. Apesar dessa recomendação, o governo municipal insistiu para que a favela fosse removida, numa clara desproporção com os objetivos de uma cidade mais inclusiva.

Fica então uma questão, que vem se generalizando pelo mundo, quais os objetivos da promoção dos Jogos Olímpicos? A que interesses eles atendem? Aos objetivos gerais da população da cidade sede, ou apenas a grupos de empresários localizados? A última candidatura a postulantes de sede olímpica já apresentou um significativo declínio de pretendentes. Os grandes eventos como a Copa do Mundo e as Olimpíadas se revelaram no Brasil como oportunidades não integralmente aproveitadas por nossas cidades, para requalificarem suas infraestruturas, ampliando o acesso a benfeitorias.