sábado, 22 de junho de 2019

Florestan Fernandes, a nossa contemporaniedade e a caracterização de nosso progresso importado

Em 2009 foi relançado em edição revisada, o livro Capitalismo dependente e classes sociais na América Latina, do sociólogo Florestan Fernandes (1920 - 1995), uma preciosidade para compreender nossa atual crise política, econômica e cultural e seus vínculos com um capitalismo dependente e periférico. O livro apresenta três ensaios publicados entre 1969 e 1971; o primeiro Padrões de dominação externa na América Latina foi apresentado em 1970 na Universidade de Toronto, e posteriormente em algumas universidades americanas. O segundo, Classes Sociais na América Latina foi elaborado para o Seminário sobre classes sociais na nossa região, organizado pelo Instituto de Investigaciones Sociales da Universidad Autônoma de México, e apresentado em 1971. O terceiro, Sociologia, modernização autônoma e revolução social foi escrito em abril de 1970 para um livro organizado pelo Professor Oscar A. Varsavsky, o qual deveria ser lançado em 1972, mas que acabou não sendo publicado. No prefácio, dessa edição de 2009 há um texto do próprio Florestan Fernandes datado de 26 de outubro de 1972, apresentando sua revisão e compilação dos textos. O conjunto desses textos se constituem numa análise preciosa da nossa situação contemporânea, aonde há um claro retrocesso autoritário no Estado brasileiro, que vinha ampliando sua transparência desde a constituição de 1988.

O autor sempre apontou o caráter tardio na história do capitalismo ocidental, das economias latino-americanas no alcance desse sistema, o que determinou uma certa minoridade da nossa classe burguesa, que acabou se conciliando pelo alto com a aristocracia colonial agrário exportadora, que a precede como classe dominante. O mesmo autor citando GRAMSCI 2015, em outros trabalhos fez também analogias com países, como Alemanha, Itália e Japão, que também atingiram de forma tardia a ordenação capitalista, logo após Inglaterra, França e Estados Unidos, tendo por isso ocorrido em ordenações estatais autoritárias. Em nosso caso, nossas elites sempre se aliaram de forma subalterna aos dominantes das economias centrais neo coloniais, que construíram o primeiro imperialismo do século XIX, logo após a nossa independência. Assim como o segundo imperialismo dominado pela superpotência dos EUA, logo após a segunda guerra mundial, que apresenta outras nuances e sutilezas de colonização. Há sempre um componente autoritário e autocrático no exercício do poder pelas nossas classes proprietárias, que negam de forma recorrente a presença da massa de despossuídos do país. A proximidade maior é sempre com as elites dos países centrais, que na verdade ditam a forma de implantação da economia competitiva, sempre subordinada e articulada com os interesses externos.

Na verdade FERNANDES 2009 irá destacar, que Espanha e Portugal logo também se posicionaram na periferia do sistema mercantil capitalista, que foi efetivamente comandado, tanto no aporte de capital, como na tecnologia por cidades como Veneza e Gênova, e logo depois pela Holanda, ou Liga Hanseática. Esse papel intermediário na exploração colonial já indicava a subalternização da América Latina, no sistema capitalista mercantilista, acirrando de forma clara a presença de uma exploração ilimitada. A questão é complexa, e envolve a longa transição do sistema feudal para o capitalismo, e está também presente em ARRIGHI 1996 , que descreve o aprisionamento das coroas ibéricas primeiro aos banqueiros de Genova e de Veneza,  depois a Liga Hanseática, e por fim a Inglaterra. Por isso, nossas revoluções ou transformações sempre apresentaram uma simbiose entre classes dominantes dos países periféricos e das metropoles, incorrendo sempre num acordo por cima e gradualista, longe das confrontações e rupturas. Uma certa presença inevitável de uma dialética entre arcaico e moderno, que se arrasta até hoje, aonde sempre se acomodou o passado, que fornece condições de super acumulação ao presente. No sistema quem sempre afere os maiores lucros é quem domina os meios financeiros e de distribuição, mais que os efetivos produtores, determinando a tendência histórica a concentração de recursos;

"No caso do açúcar brasileiro, por exemplo, o produtor retinha um lucro bruto que variava entre 12 e 18%; a Coroa absorvia aproximadamente de de 25 a 30%; os mercadores holandeses recebiam o saldo e outras vantagens, economicamente mais importantes (como os lucros produzidos pelo financiamento da produção, do transporte, da Coroa etc; ou os elavados lucros proporcionados pela refinação do produto e por sua comercialização dos mercados europeus)." FERNANDES 2009 página 23 e 24

Desde seu início, o sistema capitalista apresenta a recorrente característica de privilegiar os meios em detrimento dos fins, uma vez que a realização da riqueza efetiva está materializada na base monetária, e não no usofruto de bens. Tal fato, determina um vício de origem no sistema, que tende a procurar a forma monetária, impulsionando fortes fluxos especulativos, que volta e meia se descolam da produção, fazendo com que moeda gere mais moeda, de forma independente. No Brasil contemporâneo, a espoliação dos bancos sobre empresas e consumidores é um fato assinalado pelas taxas do spread bancário médio, divulgado pelo Banco Mundial, sendo 3% nos EUA, 10% no Uruguai e 40% no Brasil. Apesar desses números a taxa de inadimplência no país é de apenas 4,3%, o que nos mostra ao mesmo tempo; os lucros exorbitantes do sistema financeiro nacional, e a enorme contenção de iniciativas, impedindo um ciclo virtuoso na economia brasileira. A crise por que passamos é ainda mais acirrada, se olharmos para os lucros dos bancos; o Santander, por exemplo, teve no Brasil, no primeiro trimestre deste ano de 2019, 30% do lucro global, mais do que na Espanha e Reino Unido juntos. O discurso da austeridade fiscal, articulado com taxas de juros altas, que conformou o Consenso de Washington na década de 90, e vem sendo questionado por uma série de economistas mesmo liberais continua operando no país. Apesar disso tudo, o ministro da Economia, Paulo Guedes do governo do presidente Jair Bolsonaro segue afirmando que é preciso desregulamentar a economia, para destravar os investimentos. Na verdade, a condição tardia de acoplamento ao sistema capitalista internacional determinou um autoritarismo, aonde o compadrio entre elites arcaicas e modernas sempre afastava as massas da participação no bolo.

"As indicações de Marx sobre a miséria alemã, as formulações de Gramsci acerca da revolução passiva e da revolução / restauração, as pistas da via prussiana e a revolução pelo alto, estavam presentes em maior ou menor medida, na fértil imaginação sociológica de Florestan Fernandes." ANTUNES, Ricardo no prefácio de FERNANDES 2009 página13

Essa particularidade da nossa organização capitalista, que se mantém dependente ao sistema dos países centrais não significa de modo algum expoliação de nossa classe dominante em detrimento das elites metropolitanas, que na verdade participam de um conluio altamente benéfico, que exclui apenas as nossas classes subalternas. A transformação e emergência de novos padrões de dominação externa sempre foram comandadas do exterior,  ofertadas e acordadas com nossas elites, determinando a consolidação de uma forma de atuar aristocrática, oligárquica ou plutocrática, concentrando de forma extrema a riqueza, o prestígio social e o poder. Tal situação determinou um projeto de nação excludente, aonde a riqueza de uma das maiores economias do mundo, o Brasil, se mantém com níveis de concentração de renda exorbitantes. Setores dinâmicos da nossa economia se articulam com interesses da grande superpotência dos EUA, determinando atrativos e sedutores ganhos para grandes corporações monopolistas, deixando grande parte de nossa população no nível da indigência. A inércia de nossa condição subalterna é mantida como um traço cultural presente em nossa população, mas também na origem de sua elite; espanhola e portuguesa, que nunca foram suficientemente fortes para sustentar o financiamento das atividades mercantis, recorrendo primeiro a Gênova e Veneza, depois a Liga Hanseática, a Inglaterra, e por fim aos EUA, e quem sabe no futuro a China. As burguesias latino-americanas nunca aceitaram a tendência crescente à igualdade da ordem social competitiva dos países centrais, desenvolvendo sempre um estamento exclusivo de parceiros mais iguais.

"Todavia, a inovação incrusta-se em uma realidade socioeconômica que não se transformou superficialmente, já que a degradação material e moral do trabalho persiste e com ela o despotismo nas relações humanas, o privilegiamento das classes possuidoras, a superconcentração de renda, do prestígio social e do poder, a modernização controlada de fora, o crescimento econômico dependente etc..." FERNANDES 2009 página 49

Não houve uma relação dinâmica entre descolonização e o estabelecimento da ordem social competitiva, na verdade segue havendo um conluio e uma articulação por cima entre burguesias, que na América Latina já nascem internacionalizadas. Ou, com mais apego aos valores econômicos, sociais e culturais das economias centrais, europeias e estadounidenses, que exarcebam o seu complexo de vira-latas, que tão bem foi expresso por Nelson Rodrigues. Mesmo no modelo desenvolvimentista, que foi tão celebrado nos anos recentes percebe-se uma recorrente heteronomia de nossas elites, que só logram um desenvolvimento autônomo, quando as crises desatam as conexões da dependência como na Primeira Grande Guerra, a Grande Depressão, ou a Segunda Guerra Mundial. Nesses momentos, se estabeleceu a substituição de importações, e também ganharam força o protagonismo estatal, que procurou compensar a imaturidade das iniciativas burguesas, principalmente nas áreas de produtos básicos e minerais, como o estabelecimento da companhias; Vale e a Petrobrás.

"Finalmente, em alguns países, o Estado foi capaz de construir e desenvolver indústrias básicas, através de empresas públicas ou semipúblicas, como uma base para a diferenciação da produção industrial, a aceleração autônoma do crescimento econômico e a integração nacional da economia." FERNANDES 2009 página 31

Na análise de Florestan Fernandes, a mentalidade colonialista permanece em diferentes momentos e dinâmicas econômicas variadas, não significando um entrave para a transformação, a mudança e a modernização arcaica. O subdesenvolvimento e a dependência seguem sendo um bom negócio para o imperialismo, seja qual for a sua face. Sendo iniciada no colonialismo mercantilista, passando pela independência mantenedora da escravidão como propulsora da inserção de nosso principal produto de exportação na economia competitiva industrial, o café. Seguindo com a república oligárquica das nossas elites agrário exportadora, se envolvendo no impulso da industrialização da Revolução conservadora de 1930, que usa a oportunidade da grande crise de 1929. Chegando a Ditadura Civil-Militar de 1964, que parece não suportar a pauta das Reformas de Base do governo Jango, que tinha pretensões reformistas conservadoras. Até a guinada conservadora da eleição de Bolsonaro, que também parece querer represar reinvindicações e demandas dos setores populares, que foram timidamente contemplados nos governos do Partido dos Trabalhadores (PT). A cada passo há transformação, ruptura e mudança, mas são mantidos a mentalidade subalterna e subserviente das nossas elites e do povo a uma ordenação internacional instituída. FERNANDES 2019, enfatiza duas atitudes questionadoras por parte de parcelas da classe média e de intelectuais, de um lado a Revolução dentro da ordem, de outro a Revolução contra a ordem., intuindo uma possibilidade de solidariedade internacional, mesmo na super potência;

"Raciocinando em termos dos problemas de seu país, um brilhante escritor norte-americano perguntou: o que aconteceu com a nossa revolução? MILLER 1964 A mesma questão poderia ser colocada no exterior, quando se consideram os problemas criados para a América Latina pelos padrões de dominação dos Estados Unidos. Os capeões da liberdade e da democracia agora estão apoiando todo tipo de iniquidades, para assegurar os interesses privados de suas empresas corporativas, ou o que supõem ser a segurança de sua nação." FERNANDES 2009 página33

O retrocesso autoritário, que se inicia com o golpe contra Dilma Roussef presidente reeleita numa eleição apertada, permanece com o impedimento de Lula de competir na eleição de 2018, também impedido até de conceder entrevistas a imprensa, no período eleitoral, por um conchavo entre procuradores e o juíz da justiça no Estado do Paraná, que será depois nomeado ministro do governo Bolsonaro. Mais uma vez, há uma aposta do país numa solução de acento autoritário, como no Estado Novo, ou na Ditadura Civil e Militar, só que agora com a legitimação das urnas. É verdade, que essa legitimação também estava presente nas outras duas ocasiões, mostrando que o autoritarismo não está restrito aos extratos possuidores, mas disseminado em nossa população, que parece acreditar na administração de uma nação como se fosse um quartel. A recusa de enfrentar as graves práticas do Estado Novo e da Ditadura Civil-Militar, relativizando suas barbaridades parecem agora ter consequências drásticas. A adequação por cima, entre os mais iguais parece ter determinado um sentimento de que há uma impossibilidade divergente na sociedade brasileira, uma pluralidade que seria inconciliável, restando sempre a aposta na ordenação autoritária do militarismo. Estranho, que na esperança mobilizada na eleição de Lula, tenha sido exatamente essa pluralidade, que nos ungia de sucesso.

BIBLIOGRAFIA:


ARRIGHI, Giovanni - O longo século XX, dinheiro, poder e as origens do nosso tempo - editora Unesp São Paulo 1996
FERNANDES, Florestan - Capitalismo dependente e classes sociais na América Latina - editora Global São Paulo 2009
GRAMSCI, Antonio - Cadernos do Cárcere volume1: Introdução ao Estudo da filosofia e A filosofia de Benedetto Croce - Edições Civilização Brasileira Rio de Janeiro 2015
MILLER, H. P. - Rich man, poor man - Signet Books Nova York 1964