sábado, 5 de fevereiro de 2022

A Arquitetura grega

A costa entrecortada da Grécia, cheia de baías,
impulsionadora do comércio e da interação entre povos

No contexto da disciplina Teoria e História da Arquitetura 1 (THArq.1), após abordarmos os períodos; a Pré História, a Antiguidade do Oriente Próximo (Mesopotâmia e Antigo Egito), uma Civilização Pré Colombiana (o Império Inca), nos debruçamos sobre a Grécia. Civilização e cultura, que na verdade lançarão as bases daquilo que entendemos como a cultura ocidental euro-cêntrica, que por diferenciados caminhos desembocará no Renascimento, que a revisita como exemplo e paradigma comportamental. Se comparada com a Antiguidade do Oriente Próximo e a Civilização Pré Colombiana não se identifica no território da Grécia, nenhuma dádiva natural, como foram caracterizados os rios Tigre, Eufrates, Nilo e Urubamba, que garantiam excedentes de produção agrícola e de pastoreio, que fizeram a fortuna destas civilizações da antiguidade. Mas, o que há nesse espaço-território, uma península entre os Mares Egeu e  Jônio, no Mediterrâneo, que induz essa mudança ou possibilita a emergência de uma sociedade sofisticada, cosmopolita e inventora da democracia. Não há mais a generosidade-dádiva de um grande rio, mas há uma costa entrecortada de baías e portos que se lançam ao mediterrâneo, uma configuração que fomentará a navegação e o comércio. Há também uma cultura das oliveiras e uvas, que gera o azeite, o vinho e o pastoreio de rebanhos de caprinos e bovinos, que fundam uma nova maneira de interação com o outro, o estrangeiro, não mais baseada na sua supressão, mas na sua colonização comercial. A cidade assume um protagonismo central, pois é nela que é representada a democracia determinando personalidades de cidadãos diferenciados, entre por exemplo, a militarizada Esparta e a a cultura civil de Atenas.

 “O que vemos surgir na Grécia, nesse contexto? Algo de totalmente novo: a ideia de que só existe sociedade humana digna desse nome se essa soberania de valor quase religioso se achar despersonalizada e, para falar como os gregos, situada no centro, ou seja, se ela se tornar uma coisa comum. Só pode haver vida social se todos os membros de uma comunidade tiverem direitos iguais para gerir os interesses comuns do que é também um modo de instaurar uma diferença entre o público e o privado.” VERNANT, Jean Pierre – Os gregos inventaram tudo

Me parece que segue sendo um mistério, como se processou essa transição entre as autocracias orientais e a cultura helenística democrática e cosmopolita, que desenvolve maior aceitação da diferenciação e da alteridade entre semelhantes. Os chamados dóricos descendem de linhagens indo-europeias, que se instalaram na Península da Ática por volta de 2.000 a.C., vindos do Cáucaso, interagindo com assírios, egípcios, fenícios e cretenses, naquela parte do Mediterrâneo. Certamente, a cultura cretense, anterior ao esplendor grego do século V a.C. influenciou fortemente essa maneira de agir e comportar do povo grego. Mas, há um período obscuro entre a Grécia dos monarcas entre 1450 e 1200 a.C. e o século 9 a.C., quando a atividade econômica e a cultura retornam com força e com uma nova forma de encarar o poder.

“Em todas as grandes civilizações que precederam a civilização grega, e de que ela foi tributária (assírio-babilônica, egípcia, fenícia, cretense), não se tinha visto nada comparável. Os chamados dóricos, isto é, indo-europeus que, na aurora do 2o milênio a.C., instalaram se na Grécia continental vindos talvez do Cáucaso, impregnaram-se da cultura de civilizações mais avançadas, em particular a dos cretenses [...] arquivos palacianos que nos permitem abarcar o que era a Grécia entre 1450 e 1200 a.C., uma Grécia de monarquias que, em certos aspectos, lembrava os reinos orientais, o rei, "anax", controla o conjunto da vida social, econômica e mesmo religiosa, ao que parece. Esse período micênico deu lugar ao que chamamos os séculos obscuros: os reinos desaparecem, a escrita também, os contatos com o Oriente, a densidade demográfica e a superfície cultivada diminuem. E depois o comércio retorna, lá pelo século 9o a.C. O que aparece então, e dessa vez o sabemos, afora os documentos arqueológicos, graças à época homérica, à "Ilíada" e å "Odisseia" (difícil datar, pois se trata de uma tradição oral que remonta talvez a 1250 a.C., mas cujo texto só foi fixado no século 6o a.C.), é um mundo marcado por uma nova maneira de considerar o poder. “VERNANT, Jean Pierre – Os gregos inventaram tudo

Ágora de Assos

Há uma espacialidade, que representa essa forma de pensar e de agir dos gregos, a Ágora, na verdade um espaço vazio descoberto limitado por uma continuidade de "stoas", arcadas sombreadas em dois pavimentos, que o contornam, e que abrigam o caminhar e o diálogo, muitas vezes controverso entre seus cidadãos. Esse espaço, não construído, sem teto, a praça ou mercado, nada mais é de que o público, algo que pertence a todos enquanto dádiva auto-construída, que representa o conflito, a persuasão, o convencimento e a possibilidade de acordo, na manutenção da diversidade. Um espaço, que em Atenas está logo abaixo da Acrópole, um outro lugar do culto da divindade da cidade, uma religião e um culto que conforma a identidade do cidadão ateniense, que entende o compartilhamento do sagrado com um valor estratégico de coesão. Mas essa cultura tão peculiar e específica volta e meia se envolveu com uma certa prepotência, advinda dessa mesma forma de ser, e na verdade, dependeu de outras culturas para garantir sua permanência, e seu renascimento. Esse contínuo reaparecer muitas vezes veio da veneração dessa forma de agir e pensar, que outras culturas identificaram nela; romanos, árabes, cristãos, humanistas, germânicos, anglo saxões. Sem dúvida, este registro histórico foi constantemente revisitado e venerado, como um acontecimento na história da humanidade, capaz de ser revivido pelos mais diferentes lugares e pensares.

"Claro, tudo mudou desde então, o espaço, o tempo, a autoconsciência, a memória, as formas de raciocínio... Mas é o homem grego que está na origem dessa espetacular evolução [...] o mundo de onde viemos [...] Foi, aliás, por intermédio da cultura árabe que a Grécia sobreviveu a si mesma na Idade Média, antes de ser redescoberta pela Europa. Como se vê, o caudal do helenismo seguiu todo tipo de meandros, mas ressurgiu, periodicamente.“ VERNANT, Jean Pierre – Os gregos inventaram tudo
A Acrópole de Atenas, lugar em que a disposição dos 
edifícios é estruturada por complexos traçados, numa clara 
intenção de reunião entre natureza e cultura

A composição arquitetônica, tanto da cidade sagrada a Acrópole, quanto o espaço das assembleias, a Ágora, se utiliza e se reduz a poucos elementos, que passam a ser estudados como entidades quase independentes, a Coluna, a Arquitrave, e o Frontão. O sistema de junção entre eles é o trilítico, o esforço talvez mais simplificado de vencer um vão, que determina a presença do ritmo, da proporção, dos claros e escuros, das sombras e da luz. Elementos que sinalizam uma clara e objetiva linguagem, a todos acessível, entre construção e usuários, que pode ser resumida a um dualismo entre; monumentalidade (sagrado) e cotidianeidade (civilidade). Essa objetividade e simplificação da linguagem construtiva alcança uma universalidade de comunicação, um cosmopolitismo, onde qualquer estrangeiro compreende as suas mensagens de forma imediata. Na verdade, a integração entre o hábito geral da sociedade e suas construções trabalha nessa simplificação com a sofisticação e o aprimoramento de relações abstratas e complexas, tais como; ordem, simetria, proporção, harmonia, ritmo, claro e escuro. A ordenação dessas relações abstratas nascem da contemplação do natural, em nítida disputa com a vida humana, que constantemente afirma e desafirma sua artificialidade, se aproximando e se distanciando do antropoformismo. 

“Sim, mesmo nas constituições arcaicas do século 7o a.C. há uma "boulé", uma assembléia do povo, que delibera sobre o "cratos", o poder, para fazer isso ou aquilo. Mas não se trata de uma democracia, senão de uma aristocracia guerreira. O que ocorre em seguida? A partir do século 6o a.C. em Atenas, esse grupo restrito de eleitos que tem o direito à palavra na assembleia amplia-se com as reformas de Sólon e sobretudo as de Clístenes: vemos surgir então a ideia de que todos os que nasceram atenienses, os cidadãos, têm direitos iguais de participar na coisa política.” VERNANT, Jean Pierre – Os gregos inventaram tudo

Traçados reguladores, que definem a posição das edificações
e suas visadas, apenas a partir da porta do Propileu


A disposição das edificações na Acrópole de Atenas segue uma complexa lógica, que articula o caminhar humano numa subida de colina, com a descoberta e o desvelamento progressivo da hierarquia entre cada um deles, numa sequência visual, que só é inteiramente compreendida na integridade do processo. O caminhar e o edificado trabalham num complexo sistema de enquadramentos, sucessivos e múltiplos, no qual o usuário e a vivência concreta da espacialidade parecem construir experiências sempre inusitadas. A subida para a Acrópole de Atenas, e também sua descida parecem demonstrar, que a sequência vivida será sempre uma nova descoberta, num sentido e no outro, que na verdade, não se restringe apenas as suas edificações, mas aos espaços vazios entre edifícios, e também às vistas que proporciona da cidade indiferenciada. Estamos diante de um fato construído, penso que pela primeira vez na história humana, que reúne, colina, edificações, vazios entre edificações, vistas da cidade da acrópole e para a acrópole que constroem uma estabilidade dinâmica só encontrada naqueles lugares mágicos. Uma forma de articular o humano, ao cosmos natural, que vai muito além do visual, pensando na vivência da efetiva espacialidade, - visual, táctil, epitelial e corporal - a partir de um observador-usuário caminhante, que experimenta uma sucessão de enquadramentos tão ricos e sempre inusitados, que nos obrigam a pensar sobre a intencionalidade do fazer humano. Livre e precisa, mas em diálogo com qualquer "contingência acidental".

“As próprias leis do Estado tem seu fundamento nas leis naturais; e ‘natural’ é o fundamento da lógica e da ciência, da moral e da religião. Mas nem por isso a vida é equilíbrio imóvel, estagnação;  é antes aspiração contínua a uma condição ideal, de perfeita liberdade natural. Por esse ideal de liberdade a Grécia combaterá longamente o império Persa, última forma do obscuro despotismo asiático; e essa longa luta histórica nada mais será do que o resultado da mítica luta de liberação da consciência dos opressivos terrores do mundo pré-histórico e proto-histórico com suas ameaçadoras potência sobrenaturais. Dessa contínua luta, mítica e histórica, pela libertação da consciência e pelo límpido conhecimento do real, a arte figurativa é, mais ainda do que um testemunho, um fator essencial. Concebida como o mais puro e perfeito dos fenômenos naturais, revela na clareza de suas formas a forma ideal da natureza na sua essência universal, que está além de qualquer contingência acidental ” ARGAN 2003 página.

O Parthenon na Acrópole, hierarquia, monumentalidade e 
sobriedade, apesar de seu estado ruína

Nesse contexto, o Parthenom se insere como edificação hierarquicamente mais importante, dominando e se debruçando sobre a colina da Acrópole, uma construção que define seus limites a partir de uma colunata contínua, que combina; correções óticas, harmonia, simetria, ritmo, dois frontões, luz e sombras. Essa delimitação entre exterior e interior, marcada por breves degraus e sem a presença de paredes contínuas, com a presença da colunata de tamanho monumental determina uma continuidade anunciadora e preparatória. Sua construção iniciou-se em 448 a.C., logo depois da paz com a Pérsia, com projetos de Calícrates e Ictino, que manipularam proporções grandiosas e esforços construtivos inusitados até então. O grande templo, de mármore, enquadrado na ordem dórica, por Vitruvio vários séculos depois surge sobre uma pequena base alta, chamada de  Estilobata na cota mais alta da Acrópole, visível de qualquer parte da cidade, e mesmo da região. As frentes, com oito colunas, medem mais de trinta metros; os lados, com dezessete colunas, medem cerca de setenta; as colunas que ultrapassam dez metros de altura, têm na base quase dois metros de diâmetro. Apesar desse dimensionamento monumental, sua expressão é de absoluta sobriedade e justeza em todas as suas articulações. Enfim, sobriedade e concisão na sua diferenciação hierárquica no contexto geral da Acrópole, uma construção onde recursos e efeitos se combinam numa integridade entre parte e todo, percebida mesmo em seu estágio de ruína. Importante assinalar a espoliação colonialista, praticada pelo Império Britânico, que até hoje mantém no British Museum os frisos e as esculturas de seu frontão, saqueados de seu contexto no século XIX, e que, hoje a Grécia reinvindica seu retorno.

A arte “... alia-se ao pensamento dos filósofos e ao gênio inspirado dos poetas na busca de uma verdade que não está além, mas dentro das coisas e que não se alcança ultrapassando a experiência, mas aprofundando-a e esclarecendo-a. Explica-se também assim o que, aos nossos olhos, poderia parecer um limite da arte clássica: o fato de eleger quase como único objeto a figura humana... o desenvolvimento histórico da arte grega em três períodos: arcaico, do século VII ao VI a. C.; clássico, até a metade do IV a.C.; helenístico, até a metade do século I a.C.” ARGAN 2003 página

Teatro de Dionísio na borda da Acrópole de Atenas, uma 
obra de uma objetividade sintética e única


Por último, um tema da vida grega que não pode estar ausente de qualquer reflexão sobre seus esforços construtivos e civilizatórios é o Teatro Grego, uma manifestação que permanece conosco numa demonstração de transtemporalidade única. O teatro grego teve início em Atenas, na Grécia, por volta de 550 a.C. e surgiu a partir das celebrações realizadas principalmente para o Deus Dionísio. Essa era uma divindade da mitologia grega relacionada às festas, fertilidade e vinho. Nas celebrações Dionisíacas, que duravam cerca de uma semana, as pessoas bebiam, cantavam e dançavam. Com o passar do tempo, as festividades foram evoluindo em organização e elaboração, chegando ao que hoje conhecemos como o teatro com enredo, atores, plateia, encenações, etc... Os dramas, tragédias e comédias gregas possuem uma incrível interligação entre contexto, conteúdo, vestuário, expressões que nos remetem a natureza humana frágil, diante das contingências naturais e humanas da vida. A vaidade, a sedução, a manipulação, a indução, o poder e a dominação intra humana nos demonstram nossa fragilidade enquanto seres naturais, sociais e políticos. Todo conteúdo se dirige de forma singela. direta sóbrea e imediata a demonstrar nossas limitações diante dos fenômenos, dos contextos, das circunstâncias estereotipadas e reais. A representação de nossos personagens, heróis e fantasmas passeia diante de nossos olhos, reunindo o dionisíaco e apolíneo e nos mostrando a fraqueza da luta incessante de poder e de fama. A singeleza e sobriedade da arquitetura dos teatros gregos espelha tudo isso, muitas vezes uma simples encosta encaixa a plateia, numa geometria pura e absoluta, que manipula visibilidade e acústica com uma sabedoria nunca vista. A articulação dessa arte com a cidade, a rua, a quadra e a casa - o urbanismo e a arquitetura - é total, não apenas na tarefa cenográfica, mas nas suas analogias corporais e espaciais, que invariavelmente transformam essas tipologias em estado da alma.

 “ A forma aberta do teatro está ao mesmo tempo em relação com o espaço natural, lugar ideal do mito, e com a vida da sociedade ou da polis: não somente geometriza ou reduz à ordem racional(...), mas cria também o espaço ideal para a manifesta repetição do mito diante da comunidade reunida” ARGAN (2003, página74)

Enfim, a cultura grega testemunha a vinculação entre a democracia, a filosofia, o sagrado e a representação do drama humano com sua construção e materialização da sua territorialidade, espacialidade, urbanidade e habitação em formulações que demonstram como a manipulação de três elementos simples; a coluna, a arquitrave e o frontão se combinam a partir da harmonia, equilíbrio dinâmico, simetria, proporção, sombra e luz constituidores de um lugar. Além dos temas aqui mencionados a aula sobre a Grécia Antiga, ainda fez menção a habitação, e a arte de construir cidades, dois pontos que testemunham a sofisticação dessa sociedade notável.

BIBLIOGRAFIA:

ARGAN, Giulio Carlo - A Arte Grega em História da Arte Italiana: da Antiguidade a Duccio volume 1 – Editora Cosac Naif São Paulo 2003

VERNANT, Jean Pierre – Os gregos inventaram tudo -