terça-feira, 10 de janeiro de 2023

Karl Marx, arquitetura e urbanismo, descrição e prescrição

Karl Marx 1818-1883

Karl Marx (1818-1883) é de certa forma um anti filósofo, pois em grande parte de sua vida buscou uma nova linguagem para a filosofia, uma desconstrução do discurso filosófico, emblematicamente expressa na sua 11a tese sobre Feuerbach; "...os filósofos apenas interpretaram o mundo de diferentes maneiras, trata-se, entretanto de transformá-lo". Tal posicionamento aproxima o pensar marxiano do campo da arquitetura e do urbanismo, uma vez que estas matérias trabalham essencialmente com o projeto e o plano. Portanto, pensam o mundo e a realidade a partir das possibilidades do seu vir-a-ser, do devir, do futuro, daquilo que é possível realizar pela espacialidade; um outro morar, uma outra cidade, ou uma outra região. Não se trata mais da descrição do mundo, mas de sua prescrição, do seu devir, das suas possibilidades de ser revolucionado, a partir de uma atividade considerada por ele essencial no humano; o trabalho. Trabalho, que será abordado em sua obra não apenas do ponto de vista filosófico, mas também do ponto de vista do Direito, da História, da Economia Política, da Antropologia e da Sociologia. Tal posicionamento, de mirar no devir e não na análise distanciada e descritiva do real aproximam seu pensamento, como já assinalado, das ações de planejar e projetar da humanidade, que é claro, em suas construções, devem se pautar pela práxis, e não, pela construção romântica de uma utopia idealista. Este movimento, carregado de complexidade envolve a eleição de um ator ou agente incomodado, e por isso interessado na transformação social e intelectual da forma de operar da sociedade atual, capitalista. E, aqui mais um complexo movimento do seu pensar, Marx estuda de forma compulsiva e detalhada a formação econômica e social do capitalismo, eximindo-se de descrever o futuro, primeiro o socialismo, e depois o comunismo, segundo sua concepção. Esta aproximação, entre práxis cotidiana e impulso de transformação e mudança reúnem o social e o intelectual, na figura de uma experiência de seu próprio tempo, os despossuídos o proletariado, àqueles que só possuem sua força de trabalho para vender. "A filosofia não pode se realizar sem a superação do proletariado, e o proletariado não pode se superar sem a realização da filosofia."  Manuscritos Econômico Filosóficos de 1844 em EAGLETON 1999, pág.7. Daí, destes pontos e deste movimento decorre a força de seu pensamento, a manifestação de um incômodo com as atuais condições de existência da humanidade não se restringe a apontar sua condição, mas procura construir sua superação. Desde sua tese de doutoramento, defendida em março de 1841, na Universidade de Iena: "A diferença entre a filosofia da natureza de Demócrito (460-370 a.C.) e a de Epicuro (341-270 a. C.)" percebe se a manifestação de uma rebelião frente aos sistemas de pensamento instituídos, naquilo que viria a ser a Alemanha, dominada no seu tempo pelo hegelianismo.

"A leitura atenta do que conhecemos da Diferença justifica a avaliação de muitos biógrafos de Marx (e formulada pioneiramente por Cornu 1975, v.I, pág.277) segundo a qual, na dissertação esboçam-se traços de uma nova concepção do desenvolvimento histórico da filosofia, direcionados para a formulação materialista e com implicações políticas que apontavam para um posicionamento que, transcendendo parâmetros liberais, conduziam a um democratismo radical." NETTO 2020 pág.56

A vitalidade deste pensamento, que permanece atual, apesar do distanciamento das condições e situações na qual foi elaborado, vinculado claramente ao século XIX, advém de sua síntese sistêmica, da explicitação de um funcionamento inerente a sua operação, ou de um vetor que ainda nos condiciona, ou impõe reações mecânicas no capitalismo. Tome-se como exemplo, a inerente tendência especulativa dos capitais, nas suas mais diversas origens, que tendem a abandonar a produção de mercadorias e bens e se entregar a ciranda financeira de forma cíclica. Há aqui, uma forma peculiar de cognição, que está localizada na prática, ou na realidade do caráter terreno do pensar humano, um conhecer-se de uma maneira que altera o objeto de estudo, isto é, uma abordagem que questiona a gênese de seu funcionamento, partindo-se do pressuposto de que a busca deve ser pela satisfação geral, e não apenas de pequenas parcelas. Alguém já disse, que seria como "erguer-se pelos próprios cabelos" EAGLETON 1999, página8, no qual o saber não mais se separa de como fazê-lo, ou melhor da busca da auto-emancipação. Não há mais distinção possível entre fatos e valores, que não se misturam, mas perdem nitidez em sua separação, passando a interagir de forma contínua e construindo o pensamento, que precisa antes de tudo, explicitar seus valores. A consciência não é mais o fundamento da realidade, mas faz-se uma inversão, pois é na prática que o homem deve demonstrar a verdade, o caráter materialista do seu pensar, não mais ligado a um idealismo abstrato, mas a sua existência concreta. A Liberdade, que permeia todo este pensamento se articula com a Necessidade, que enquanto não for superada do ponto de vista geral mantém sempre a condenação a uma livre escolha, como parcial e limitada. O ambiente no qual se formou, o Idealismo Alemão, era visto por ele de forma invertida; a consciência não era mais o fundamento da realidade, mas era fruto de sua interação com as condições materiais e instituições sociais que a conformavam.

"A produção de ideias, de concepções, da consciência, é de início diretamente entrelaçada com a atividade material e com a interação material dos homens, a linguagem da vida real. O conceber, o pensar, a interação intelectual dos homens aparecem neste estágio como uma emanação direta de seu comportamento material... A consciência nunca pode ser outra coisa senão existência consciente, e a existência do homem é seu processo de vida real." MARX, A ideologia Alemã, apud EAGLETON 1999, pág.10

Para ele, alcançamos a verdadeira humanidade quando produzimos livre, gratuita e independentemente de qualquer necessidade material imediata, a liberdade seria uma espécie de superabundância criativa, o trabalho artístico, por excelência. O lugar da consciência e da prática social é a linguagem, que nunca pode ser aprimorada no isolamento da solidão, mas sempre no confronto de ideias na interação com outros seres humanos. A linguagem, surge da necessidade de aprimoramento da produção no trabalho coletivo de aperfeiçoamento das condições de sobrevivência, mas ela transcende esta necessidade e desembocará na literatura. Decorre daí a divisão entre trabalho intelectual e manual, que somente floresce quando uma sociedade atingiu certo excedente econômico, acima da necessidade material, deixando que uma minoria de seus membros livres do trabalho produtivo, fazendo emergir; os políticos, acadêmicos, produtores culturais, filósofos, etc... A primeira separação nesta direção se processa, ainda em tempos bem primitivos, com a identificação do sacerdote, no seio do clã, quando a consciência pode alimentar a ilusão de ser algo diverso da existência, se emancipando como uma representação improdutiva. Neste pensamento típico do século XIX, onde se localiza um otimismo iluminista, racionalista e historicista é certamente muito mais confiante num futuro humano redentor das misérias e tragédias, do que a nossa contemporaneidade. Há a presença de uma quase certeza da redenção humana, a partir do lançamento num turbilhão de mudanças que acabam trazendo a um agente, o operariado ou os sem posses, uma consciência de sua super exploração. De certa forma, como muitos autores dentre eles, BERMANN 1986 pág.15  e EAGLETON 1999 pág.13, enfatizaram como Marx celebra as profundas transformações da sociedade burguesa que lançaram a humanidade num magnífico turbilhão de mudanças.

"A burguesia, onde quer que tenha chegado ao poder liquidou todas as relações feudais, patriarcais e idílicas. Dilacerou impiedosamente os variegados laços feudais que prendiam o homem a seus "superiores naturais", e não deixou subsistir entre homem e homem qualquer outra ligação além do interesse próprio nu e cru, do impiedoso "pagamento à vista"[...] Numa palavra, em lugar da exploração velada por ilusões religiosas e políticas, colocou a exploração aberta, despudorada, direta e brutal [...] A burguesia não pode existir sem revolucionar constantemente os instrumentos de produção, e com estas todas as relações sociais [...] O revolucionamento constante da produção, a perturbação ininterrupta de todas as condições sociais, a permanente incerteza e agitação distinguem a época burguesa de todas as anteriores. [...] Tudo o que é sólido se desmancha no ar, tudo que é sagrado é profanado, e os homens são por fim forçados a confrontar com sobriedade suas reais condições de vida e suas relações uns com os outros." EAGLETON 1999 pág.13 e 14, apud Manifesto Comunista MARX  e ENGELS

Apesar, desta quase certeza, Marx também aponta a insidiosa presença da alienação e da reificação no pensar humano nas condições do capitalismo, mantendo-se as estratégias de dominação de classe pelo processo de fetichização geral, das mercadorias, da terra, dos seres humanos, etc. Este entorpecimento da consciência decorre da penetração da ideia de competição de todos contra todos, da ausência de cooperação e do associativismo das classes despossuídas, pela doutrinação de que o enriquecimento é acessível a todos. "As ideias das classes dominantes são em cada época as ideias dominantes" (EAGLETON 1999, pág.16 apud Ideologia Alemã), havendo uma distinção importante na categorização de base ou infraestrutura, contrapostas a categoria de secundárias ou superestruturais. Enquanto, a base ou infraestrutura envolve o interior e o domínio das forças de produção, que no sistema capitalista é profundamente injusto, a superestrutura envolveria a política, a filosofia, o direito, a ideologia, etc, enfim meios que legitimam e justificam as forças de produção. A separação entre as duas esferas é sempre perpassada pelo dinamismo da dialética, que está sempre em constante movimento. A inversão de Marx da construção de Hegel, de sua dialética, está corporificada pela inversão materialista do seu pensamento, entre consciência e vida; "A vida não é determinada pela consciência, mas a consciência pela vida" EAGLETON 1999 pág.14, apud Ideologia Alemã MARX e ENGELS. O que significa que nos auto concebemos como seres histórico-sociais, nos quais, o que dizemos ou pensamos está determinado pelo que fazemos e vivemos. Este fazer envolve o trabalho, que a cada novo desafio nos confronta com novas possibilidades do ser, fazendo com que ao final da jornada de sua realização apareça um novo ser, diferente daquele que a iniciou. A imaginação humana que pré figura num plano e num projeto, antecipa na atividade do trabalho uma vontade e uma consciência, que nunca é uma determinação, mesmo na cópia mais fiel.

"Uma aranha realiza operações semelhantes às de um tecelão, e uma abelha envergonha muitos arquitetos na construção de sua colméia. Mas o que distingue o pior arquiteto da melhor abelha é o fato de que o arquiteto constrói sua estrutura na imaginação antes de erigí-la na realidade." EAGLETON 1999 pág.15, apud MARX, O Capital vol.1 pág.178

Vista de uma rua no Brasil, 10 metros de caixa de rolamento
de veículos, para apenas 2,5 metros de cada lado para os 
pedestres

E aqui, fica claro como as atividades de planejar e projetar inerentes ao campo da arquitetura e do urbanismo humanizam o fazer humano, dando-lhes consciência e vontade, racionalizando escolhas e desejos, explicitando a origem das vontades, possibilitando que elas sejam identificadas sobre o crivo do interesse público ou particular. As nossas cidades, nosso território, nossas superfícies humanizadas sobre o planeta precisam, cada vez mais em nosso tempo, serem avaliadas a partir deste crivo; interesse particular ou geral. Basta olharmos para uma rua típica da cidade brasileira, e constatarmos a quem os interesses das superfícies atendem ou acolhem. Nesta rua genérica, com 15 metros de seção de testada de lote a testada de lote, 10 metros são dedicados aos automóveis, e apenas 5 metros aos pedestres, a maioria da população. Portanto, 67% é dedicado principalmente aos veículos com pneus, que na sua maioria carrega pessoas com maior poder aquisitivo, e apenas 33% acolhe os pedestre, nos seus 2,5 metros de cada lado do logradouro. É a materialização da supremacia dos interesses dos mais privilegiados, os proprietários de veículos particulares, em detrimento da maioria da população que se restringe a 33% da superfície. Certamente, quando projetamos estas cifras em termos de custo do investimento público compreendemos de forma clara quem pauta e captura o orçamento de nossas cidades em seu próprio benefício. Marx diria que esta é a real captura objetiva dos investimentos públicos, materializada nas dimensões dedicadas a acolher cada um dos agentes da sociedade, entenderia a naturalização desta predominância, como a fetichização do automóvel particular. Isto é, a imposição deste padrão de secção da rua brasileira, e sua naturalização constitui a própria presença da força material da classe dominante, sua demonstração de força, condenando o conjunto da sociedade a suas imposições. Os meios de produção material, da configuração da secção da rua brasileira são naturalizados pelo conjunto da sociedade alienada, que aceita a coerção abrindo mão de problematizar a proporção dos investimentos realizados. O primado não deve ser a idealização, mas a práxis e operação efetiva do construir a cidade concreta, que demonstra de forma clara, a injusta e contraditória, destinação dos recursos para sua construção efetiva. Diferentemente do pensamento idealista, hegeliano, a concepção materialista da história de Marx acredita que "todas as formas e produtos da consciência não podem ser dissolvidas pela crítica espiritual" EAGLETON 1999, pág.17, mas apenas pela derrubada prática das relações sociais. Esta capacidade de expor o processo real de produção da rua no Brasil, e de a partir dele expor a conjuntura de interesses presente na sociedade desvenda para quem os recursos do Estado são mobilizados.

"...mostra que a história não termina ao ser dissolvida em "auto-consciência" como o "espírito do espírito", mas que em cada estágio encontra-se um resultado material: uma soma de forças produtivas, uma relação historicamente criada de indivíduos com a natureza e entre si, a qual é transmitida para cada geração pela precedente; uma massa de forças produtivas, de capitais e condições que, por um lado, é na verdade modificada pela nova geração, mas também, por outro lado, prescreve a ela suas condições de vida e lhe dá desenvolvimento determinado, um caráter especial. Ela demonstra que as circunstâncias fazem os homens tanto quanto os homens fazem as circunstâncias." EAGLETON 1999 pág.18, apud MARX e ENGELS Ideologia Alemã pág.56

E, aqui, cabe o registro de que Marx acredita na possibilidade de transformação das circunstâncias nas quais os homens estão engendrados, e que lhes condiciona a prática e a operação mecânica e repetida da vida, afinal; "o que foi historicamente criado pode sempre ser historicamente mudado." EAGLETON 1999 pág.21 Como ao final, pode ser assinalado há um fundamento objetivo para este pensamento que na verdade está imbricado em nossas existências, e que portanto paira ambiguamente entre a descrição e a prescrição, entre fato e valor, ou entre como somos e como devemos ser. De novo há um confronto unitário entre ser e dever ser, entre ser e devir, que efetivamente conformam nossa consciência, assim como na arquitetura e no urbanismo. O que também coloca a questão, de que Marx é um pensador teleológico, isto é alguém que imagina um ser genérico, feliz e pleno, como um objetivo a ser alcançado. De certa forma, a teleologia do pensamento de Marx é, e ao mesmo tempo, não é um fato. Pois, não deveria existir uma razão única para a existência humana, além do seu pleno desenvolvimento prazeroso na sociedade em que vive. Há um reconhecimento tácito da diversidade humana, que por si só se realiza plenamente no seio da sociedade, e que respeita a pluralidade de objetivos diferenciados de cada um. Assim, há um objetivo, uma teleologia, mas como a plena realização humana se insere na condição social do humano, a interação entre indivíduo e sociedade desemboca numa pluralidade de manifestações, que acabam contrariando a sua única direção.

"A essência humana da natureza existe apenas para o homem social; pois, apenas neste caso, a natureza existe para ele como um vínculo com outros homens, como sua existência para os outros, e a existência dos outros para ele, como elemento vital da realidade humana; apenas assim esta essência existe como a base de sua própria existência humana. Só então sua existência natural torna-se sua existência humana, e a natureza torna-se para ele o homem. A sociedade é portanto a plena unidade essencial do homem com a natureza, a verdadeira ressurreição da natureza, o naturalismo realizado do homem e o humanismo realizado da natureza..." EAGLETON 1999 pág.22, apud MARX Manuscritos Econômico Financeiros de 1844 pág.15

Disto surge, o questionamento pós moderno, ou contemporâneo, ou ainda dos ecologistas, de que este pensamento celebra a artificialização do homem e de seu convívio predatório com a natureza, típico da infância da Revolução Industrial no século XIX. Sem dúvida, Marx é um pensador de seu tempo, seduzido por uma crença de redenção dada pela imensa produtividade conquistada pelas indústrias no século XIX. Existem traços claros de um prometeísmo tecnológico, assim como de um produtivismo predador, que se refere a um ambiente impulsionado pelo otimismo típico do século XIX, que enxergava as transformações no campo e na cidade como oportunidades de redenção da espécie humana. Alguns autores, como Ted Benton, André Gorz, Michael Löwy, James O' Connor, Daniel Tanuro e Alain Lipietz consideram que Marx não considerou as questões ligadas ao meio ambiente sendo dominado por um produtivismo arrogante e anti ecológico. Em contraposição, autores como John Bellamy Foster, Paul Burkett e Kohei Saito releem as obras de Marx e Engels, apontando que sua crítica ao modo de produção capitalista permanece atual, identificando na cíclica evolução do sistema as origens das eco crises globais do nosso tempo. Na verdade, o cerne do discurso de Marx e Engels possui uma clara direção anti-opressão, de libertação das energias humanas dos subalternos, de compreensão das implicações do domínio dos meios de produção, que implicam na ideia de emancipação e liberdade. Uma visão, que explicita a forma limitada, alienada e parcial dos homens em sociedade, e desta também com a natureza e o metabolismo natural do qual pretensamente nos libertamos. SAITO 2021 justificando sua tese sobre as preocupações ecológicas de Marx aponta a presença nos cadernos dos esboços, para completar os livros 2 e 3 do Capital, lançados por Engels após a sua morte; da agronomia, como por exemplo, da Química Agrícola, de Justius von Liebig. Tal presença está vinculada a preocupação de entender a interação entre capitalismo e natureza, entre a expansão da fronteira agrícola e os controles e impactos destas atividades no meio natural.

"Isso possibilita que Saito trace um estudo que liga os aspectos econômicos dos Cadernos sobre a alienação, terra, forma mercadoria e o rompimento do lado afetivo do trabalho com a própria teoria da ruptura metabólica que é explorada por John Bellany Foster em A ecologia de Marx, e que demonstra a relevância do Livro 3 do Capital e os estudos que influenciavam Marx em seu tempo, como sua atenção especial ao químico alemão Justius von Liebig. Com isso, Saito estabelece como a visão marxiana da alienação do trabalho não pode ser dissociada da transformação que também ocorre na relação entre humanos e natureza. Tal visão ampliada confere ênfase e sentido mais explícito à formulação de Marx de que "humanismo = naturalismo". FERNANDES 2021 pág.12

Mais além desta problemática, SAITO 2021 vincula a teoria da absolutização do valor na sociedade capitalista a uma transformação do metabolismo de interação entre humanos e natureza, que determina uma forma alienada de produção. A busca é pela concretude dos condicionamentos impostos pelo modo de produção capitalista, que estrutura a operação da sociedade, sem que esta tenha consciência de seus movimentos em torno do conceito de valor, que passa a ser absolutizado. O desejo de acumular Dinheiro de forma desmedida, que pauta o comportamento humano na sociedade capitalista aliena nossa relação com os contínuos e biomas naturais, absolutizando a questão da propriedade frente ao direito à vida, ou à cidade. Os contínuos naturais e o patrimônio construído de nossas cidades são hoje vistos como estruturas comuns, que deveriam ser desfrutados por todos, pois eles não foram produzidos a partir da lógica da propriedade. No entanto, a indústria do turismo e do lazer pretendem e promovem o cercamento contínuo destes tesouros comuns no sentido de monetizar o seu acesso e desfrute atribuindo-lhe um valor. A mediação do valor nos condiciona uma produção alienada de mercadorias, que se movimenta entre valor de uso e valor de troca, acabando por decretar a predominância do último como objetivo principal. A anarquia produtivista faz emergir um "sujeito usurpador" que cerca os contínuos e conjuntos construídos indo além do valor, buscando na verdade sua valorização contínua a partir de um consumo predatório e devastador. A emergência de um valor desmesurado para um meio de otimização das trocas, como é o equivalente universal, o Dinheiro, transforma toda a produção, que o elege como objetivo final e maior. No Capital de Marx há uma equação, que representa o circuito interminável da produção que está representada pelas letras maiúsculas; D- Dinheiro e M- Mercadoria, na sequência; D-M-D'. Esta forma de circulação é contraposta a outra, que representava a centralidade da Mercadoria, numa outra forma de ordenação da produção, que era; M-D-M', no qual o processo era direcionado a um valor de uso. Na primeira forma, o valor como capital passa a ser um "sujeito automático", que entende sua valorização como a meta final da produção, e mesmo, o sentido único e último da vida.

"Na circulação D-M-D, ao contrário, mercadoria e dinheiro funcionam apenas como modos diversos de existência do próprio valor: o dinheiro como seu modo de existência universal, a mercadoria como seu modo de existência particular, por assim dizer, disfarçado. O valor passa constantemente de uma forma a outra, sem se perder neste movimento, e, com isso, transforma-se no sujeito automático do processo. Ora, se tomarmos as formas particulares de manifestação que o valor que se autovaloriza assume sucessivamente no decorrer de sua vida, chegaremos a estas duas proposições: capital é dinheiro, capital é mercadoria. Na verdade, porém, o valor se torna, aqui o sujeito de um processo em que ele, por debaixo de sua constante variação de forma, aparecendo ora como dinheiro, ora como mercadoria, altera sua própria grandeza e, como mais valor, repele a si mesmo como valor originário, valoriza a si mesmo." MARX, O Capital, citado em SAITO 2021 pág.156

A teoria da alienação de Marx vem da constatação de uma singularidade destrutiva, que é inerente a anarquia da competição capitalista, que visa gerar uma subjetivação isolada onde declina o associativismo e emerge a luta de todos contra todos. Um processo de destruição do mundo material, que parece encontrar uma redenção no desenvolvimento tecnológico e científico, que no entanto, ao permanecer governado pela lógica do valor permanece gerando mais alienação e destruição. Tome-se como exemplo, o desenvolvimento de determinados softwares contemporâneos, como os aplicativos de mobilidade tais como; Uber e outros. Aquilo, que parece atender uma necessidade fundamental humana de deslocamento no território de forma racional e rápida, acaba por ser sua prisão a lógica do valor, super explorando trabalhadores, que destinam 25% do seu tempo de trabalho para pagar o desenvolvedor da tecnologia. Tecnologia, que foi desenvolvida certamente pelo acúmulo de conquistas variadas no campo da informática por diversificados agentes, mas que foi reunida, patenteada, cercada e monetizada por uma agente isolado, que segue sendo o principal beneficiário de algo que teve uma gênese coletiva. O objetivo, ao seguir a imperiosa determinação de mais-valor acaba destruindo e super explorando o mundo material e humano de uma maneira predatória, causando mais alienação e sofrimento para a vida. Talvez o exemplo mais emblemático da dinâmica entre "valor de uso" e "valor de troca" em nossa sociedade esteja concentrado na moradia urbana, uma necessidade humana, um direito. Sua transformação em mercadoria vinculada a uma parte determinada da cidade, na lógica da cidade capitalista, que possui distribuição diversificada da presença de confortos e infra estruturas acaba determinando, que extratos específicos de renda mais aquinhoados monopolizem áreas da cidade, empurrando o precariado ou os despossuídos para áreas carentes destas benesses, nas periferias. A questão da renda fundiária, no sistema de Marx é de certa forma algo em processo ou estudo, uma vez que consta do livro 3, editado após sua morte por Engels. Marx identificava que a lógica do valor era complexa de ser implantada sobre duas esferas muito claras; a terra e o trabalho, exatamente as duas esferas da interação metabólica entre homens e natureza. Enfim, a riqueza do pensamento de Marx para as ciências sociais, e particularmente para a arquitetura e urbanismo é enorme e complexa, e continua operando, apesar de sua formulação no século XIX.

BIBLIOGRAFIA:

BERMAN, Marshall  - Tudo o que é sólido desmancha no ar; a aventura da modernidade - Companhia das Letras, São Paulo 1986

EAGLETON, Terry - Marx e a liberdade - Unesp São Paulo 1999

FERNANDES, Sabrina - Prefácio a O ecossocialismo de Karl Marx: capitalismo, natureza e a crítica inacabada á economia política - Boitempo São Paulo 2021

MARX, Karl - A diferença entre a filosofia da natureza de Demócrito (460-370 a.C.) e a de Epicuro (341-270 a. C.) - Boitempo, São Paulo 2018 

NETTO, João Paulo - Karl Marx: uma biografia - Boitempo São Paulo 2020

____________- Introdução ao estudo do método de Marx - Expressão Popular São Paulo 2011

SAITO, Kohei - O ecossocialismo de Karl Marx: capitalismo, natureza e a crítica inacabada á economia política - Boitempo São Paulo 2021