sexta-feira, 13 de setembro de 2019

A presença da Ideologia

Desenho do grupo Archi5 arquitetos associados para a exposição Penso 
Cidade em 2003, para o adensamento da Ilha do Fundão
O livro de Carlos Guilherme Mota, A Ideologia da Cultura Brasileira (1933 a 1977) foi fundamental para a construção de minha tese de doutorado em 2007, Projeto, ideologia e hegemonia; em busca de uma conceituação operativa para a cidade brasileira no âmbito do PROURB da FAU-UFRJ. Continuo considerando que o alinhamento ideológico é fundamental de ser explicitado e debatido, pois não há possibilidade de escape dele para os intelectuais contemporâneos, em qualquer área do pensamento e da prática. Hoje o termo ideológico tende a ser substituído por "discurso" ou "lugar de fala", querendo denotar a vivência por trás da construção teórica que apresenta uma construção perpassada por parcialidades e incompletudes. A dedicação e a pesquisa mais aprofundada em determinados aspectos, ou mesmo a vivência acabam condicionando a impossibilidade de superação das parcialidades ideológicas, que eram e continuam sendo premissas básicas de qualquer pensamento ou reflexão. A reflexão de qualquer nível, profundidade ou área está condicionada por essas premissas, afinal a totalidade que opera de forma efeftiva foge aos nossos campos e especialidades. Na verdade, na minha tese de doutorado entendia o projeto e o plano como discursos persuasivos e convincentes, que apontavam para o convencimento do outro para serem realizados, portanto carregados pelo ordenamento ideológico. O plano e o projeto eram e ainda são entendidos como uma forma de abordagem do real, estruturados pela análise do existente, mas investindo fortemente no vir-a-ser. A capacidade de convencimento era fundamental para materialização do plano ou do projeto, uma vez que essas ações pré figuravam uma série de desejos e expectativas de diversos agentes e atores. Tinham, portanto a capacidade de explicitar conflitos e interesses divergentes, o consenso provisório e a acomodação de visões pelo desenho não os extinguia, mas podiam ser vistos como etapas de superação sempre parciais. A cidade, como lócus da diversidade, e do choque de interesses era celebrada como estrutura concreta e objetiva, que denunciava o plano e o projeto da sociedade brasileira de exclusão de parcelas substanciais de sua população.

"Ainda no plano do vocabulário, não parece difícil visualizar o circuito percorrido de 1930 a 1974 no plano das produções culturais, indicando a existência de uma sucessão de momentos nos quais as noções como 'civilização brasileira', 'cultura brasileira', 'cultura nacional', 'cultura popular', 'cultura de massa' marcariam os horizontes ideológicos da intelectualidade progressista - incrustada ela mesma, na camada dominante" MOTA 1994 página287

Havia aqui um etapismo redutor que lia a cultura brasileira, ou melhor sua construção intelectual como estruturada a partir de grandes intérpretes, que a leram através de conceitos como; "democracia racial", "história incruenta", "homem cordial", "caráter nacional", "cultura popular", "cultura de massas". Mas o argumento era convincente, chegando mesmo a afirmar que essa mobilização da intelectualidade brasileira provinha de um conceito autofágico e de raiz estamental, que desembocava na afirmação do próprio MOTA 1994, página287; "não existe, nesse sentido, uma Cultura Brasileira no plano ontológico, mas sim na esfera das formações ideológicas de segmentos altamente elitizados..." Sem dúvida, ecoava aqui a interpretação de Raimundo Faoro, da fraqueza de nossa sociedade civil, que sempre permitiu o pensar mais crítico, apenas para o estamento do servidor público. Um esforço que a geração mais radical da década de sessenta e setenta procurava superar com os Centros Populares de Cultura (CPCs) e outras aproximações com a massificação como as de Herzog ou de Vianninha, que aliás recorta de forma precisa o problema;

"Reduzir uma sociedade de 100 milhões de pessoas a um mercado de 25 milhões exige um processo cultural muito intenso e sofisticado. É preciso embrutecer essa sociedade de uma forma que só se consegue com o refinamento dos meios de comunicação, dos meios de publicidade, com um certo paisagismo urbano que disfarça a favela, que esconde as coisas." Oduvaldo Vianna Filho, citado em MOTA 1994 página 317

É engraçado como no mapeamento geral, naquela ocasião, que tinha então de Carlos Guilherme da Mota em minhas anotações e antes de sua leitura, apontavam para um enquadramento na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP, o que significava a filiação a segunda inteligência universitária paulista, que tinha uma linha que partia de Fernando Azevedo e chegava a Florestan Fernandes para desembocar em figuras como Otavio Ianni, Fernando Henrique Cardoso, e o próprio Carlos Guilherme da Mota. Nada mais esquemático e redutor, e pior, pouco representativo da real complexidade do livro de MOTA 1994, que só por ter a menção na origem aos dois pensadores paulistas já dava a real dimensão complexa do trabalho. Na verdade, naquela época a USP representava para mim uma escola de origem agrário-elitista-oligárquica, que se transformara numa radicalidade urbano-burguesa-paternalista, sem uma dimensão popular ou de massas. Parecia-me então, que figuras, que estão no livro de MOTA 1994, e que fogem a essa instituição como Gilberto Freire, Raymundo Faoro e Ferreira Gular não eram bem avaliados, enquanto personalidades uspianas como; Fernando Azevedo, Florestan Fernandes, Dante Moreira Leite e Roberto Schwarz eram. Tudo não passava de uma visão sectária e superficial, que foram pelos ares principalmente com a leitura de Florestan Fernandes e Francisco Oliveira, e também Otavio Ianni e o próprio Carlos Guilherme Mota. Naquela ocasião como agora, compartilhava com MOTA 1994 a ideia de que o elitismo exacerbado da sociedade brasileira a condenava a repetir um pedantismo isolacionista, que as reformas dos anos sessenta, radicalizadas pelo fechamento do regime procuravam superar. Parecia então, que o fechamento do regime ou sua incursão por caminhos autoritários era inadmissível principalmente após ao ocorrido com Herzog nas celas do DOI-CODI em São Paulo.

"Na noção de organização social, por exemplo, ao ser retirado seu potencial crítico, o privilégio, o desemprego sistemático, a exclusão cultural e a política passam a ser dados estáveis e neutros nas interpretações do Brasil, quando não omitidos." MOTA 1994 página 288

Disso decorre o imenso retrocesso que sofremos com a última eleição, quando parece que a tese da ausência de autoritarismo levou nossa sociedade a esquecer sua memória mais recente, esquecendo-se das atrocidades da Ditadura de 1964. Nesse campo, a cidade e sua arquitetura eram a materialização física e mais concreta dessa contínua exclusão e da dimensão continuada do autoritarismo brasileiro, nossa incapacidade de universalizar as infraestruturas urbanas para toda nossa população, determinava uma espacialidade didática, aonde o elitismo e a segregação eram um fato. Basta comparar São Gonçalo e Ipanema, ou os Jardins e a Zona Leste paulistana. No meu esquema inicial e final, também no campo da arquitetura e da cidade, os ideólogos foram; Lucio Costa, Vilanova Artigas e Carlos Nelson dos Santos, a partir desse último assumia que a proximidade do tempo me impedia de selecionar pensadores com efetiva permeabilidade na cultura geral da arquitetura. As escolhas recairam em Elvan Silva e Carlos Antonio Brandão, dois engajados na academia brasileira, que desenvolveram reflexões importantes para o método do plano e do projeto, dentro da minha perspectiva. Minha expectativa então, no começo dos anos 2000 era sublinhar a importância do plano e do projeto, como uma prática antecipadora que pensa antes de fazer, uma constatação crítica da forma de operar da sociedade brasileira, que de forma ansiosa realiza sem pensar de forma recorrente. Basta pensar nas práticas arraigadas no Estado Brasileiro, que pensa na obra como uma meta independente A partir da leitura de MOTA 1994 percebi que o enquadramento ideológico não deveria reduzir a superficialidade o pensamento e a reflexão de alguns pensadores notáveis, que se debruçaram sobre a realidade brasileira, uma dinâmica por si só, tão complexa e fluída, que ainda hoje é difícil de ser mapeada. Questões como a escravidão, o imperialismo, a dependência, a subalternidade, o autoritarismo que permanecem em nosso horizonte como obstáculos insuperáveis, que volta e meia reaparecem eram enfrentados muito além de uma lógica dualista. E, mais a interpretação mais aprofundada tinha a capacidade de nos remover de uma posição de conforto, muito além dos confrontos simplificadores.

BIBLIOGRAFIA:

FAORO, Raymundo - Os donos do Poder, Formação do Patronato Político Brasileiro - Editora Globo Porto Alegre 1958

MOTA, Carlos Guilherme - A Ideologia da Cultura Brasileira (1933 a 1977) - Editora Ática São Paulo 1994