sábado, 21 de janeiro de 2017

O legado de Barack Obama, não rompeu com teses neo-liberais

Típica Main Street americana
Acabou ontem dia 20 de janeiro de 2017 o governo de oito anos do primeiro presidente negro norte americano, Barack Obama, um acontecimento que por sua carga simbólica carrega um valor intangível, que certamente irá demorar para que possamos entender. A questão que se coloca é; será mais fácil agora eleger uma mulher para esse cargo? Ou um latino? Ou ainda um muçulmano? Ou, quem sabe um assumido homosexual? A diversidade foi um valor celebrado pelos discurso e pela administração Obama, como uma característica louvável e celebrável da América, em que pese a pouca mudança obtida nessa matéria. Para tal basta lembrarmos da emergência do movimento; Black lives matter, Vidas negras importam. Um movimento que aparece no governo Obama, numa demonstração da rebelião de cidades contra a violência recorrente por parte dos aparelhos que possuem o monopólio da violência nos EUA, a polícia. Diante de Donald Trump, Obama ganha efetivamente contornos de grande estadista, e portanto sua avaliação ganha com essa comparação desproporcional um valor alto.

A rua Wall Street em Nova Yorque, sede da bolsa de valores
mais poderosa do mundo
No entanto, há um aspecto da campanha de Obama, que representava no início uma importante mudança na inércia operativa dos governos dos EUA, que não foi materializado, representando para mim a grande frustração do seu periodo. Trata-se da promessa de campanha, que definia, More Main Street, and Less Wall Street, Mais ruas comerciais e Menos Wall Street, que chegava a rivalizar com o bordão; Yes, we can, Sim nós podemos. Numa clara referência de uma nova direção da economia norte americana no sentido da diminuição do poder especulativo das finanças, em favor da ampliação da atividade produtiva. Era clara a menção espacial da proposta, que remetia às anônimas ruas comerciais das pequenas cidades e mesmo bairros periféricos das grandes cidades americanas, celebradas como representantes de um comércio produtivo e real, contrapostas a sede da bolsa de Nova York, localizada em Wall Street, que representava a hegemonia das finanças e de suas abstrações na lógica da maior economia do mundo. Tal promessa era a mais importante de ser realizada durante a administração Obama, tendo sua frustração impactado fortemente na corrida eleitoral seguinte. Tanto, que esteve presente de forma explícita na campanha do outsider Bernie Sanders, como também de forma tímida na de Hilary Clinton, como também de forma implícita na de Donald Trump. O mundo não suporta mais os movimentos especulativos e a lógica da criação de valor a partir de dinheiro, sem qualquer vinculação com a produção real, sem qualquer respaldo na produtividade de empresas reais.

É absolutamente imperioso que nossa economia passe a beneficiar o conjunto maior da população, ao invés de beneficiar os mais ricos, que invariavelmente produzem mais riqueza para si a partir de processos especulativos, que sequer impulsionam atividades efetivamente empregadoras de mão de obra, produtivas de mercadorias reais, e produtoras de benfeitorias para todos. Nesse sentido, o mesmo presidente Obama declarou em seu último discurso no Conselho de Segurança da ONU;

"um mundo no qual 1% da humanidade controla uma riqueza equivalente à dos demais 99% nunca será estável"

Há fortes indícios de que a concentração de renda está aumentando, segundo recente pesquisa do economista Thomas Pickety nos EUA revela que nos últimos 30 anos, a renda dos 50% mais pobres permaneceu inalterada, enquanto a do 1% mais rico aumentou 300%. O discurso neo-liberal da eficiência produtiva a partir de salários reprimidos e fragilizados ganhou o mundo, determinando um decréscimo da produção na participação da riqueza socialmente construída. Na década de 1980,
produtores de cacau ficavam com 18% do valor de uma barra de chocolate – atualmente,
ficam com apenas 6%. Tal situação mostra como a efetiva produção das mercadorias perde para a circulação, distribuição e comercialização, que assumem volta e meia características especulativas e financeiras. A Organização Internacional do Trabalho (OIT) estima que 21 milhões de pessoas são trabalhadores forçados que geram cerca de US$ 150 bilhões em lucros para empresas anualmente, sendo que a grande parte desse contingente é de mulheres e meninas. Tal situação, deprime a demanda, elitiza o mercado, e radicaliza a concentração de renda.

Por outro lado, há um recorrente discurso, que pleiteia a redução de impostos e a criação de oportunidades a partir da isenção tributária, que impulsionaria a atividade econômica de forma virtuosa para todos. A poderosa Federação das Industrias do Estado de São Paulo (FIESP) no Brasil acaba de fazer violenta campanha contra um imposto denominado Contribuição Provisória sobre Movimentações Financeiras (CPMF) proposto pelo governo federal. E, essa prática não se restringe aos países da semi-periferia do capitalismo central, há relatos de que a Apple pagou apenas 0,005% de imposto sobre seus lucros na Europa em 2014. Na Inglaterra, com um investimento de 2 milhões de libras é possível desfrutar do direito de viver, trabalhar e comprar imóveis no Reino Unido, bem como beneficiar-se de generosas isenções fiscais. Nos EUA a maior alíquota do imposto de renda em 1980 era de 70%, hoje em dia não passa de 40%. O Quênia perde US$ 1,1 bilhão por ano em isenções fiscais para empresas: valor quase duas vezes mais alto que o do seu orçamento para a saúde – em um país no qual a probabilidade de mulheres morrerem no parto é de uma em 40. Uma série de paraísos ficais espalhados pelo mundo disputam o interesse de super-ricos, que não querem mais pagar impostos já reduzidos.

Por tudo isso percebe-se os motivos da vitória de Donald Trump, ou a ameaça que Bernie Sanders representou para as eleições, e a incapacidade de Obama de construir uma continuidade na Casa Branca, apesar dos aspectos simbólicos de suas duas vitórias eleitorais. Enfim, o mundo parece se revoltar de uma maneira não muito consciente, para as consequências criminosas da política do neo-liberalismo.

Bibliografia:

Relatório OXFAM Uma economia para os 99% disponível em https://www.oxfam.org.br/noticias/8-homens-tem-mesma-riqueza-que-metade-mais-pobre-do-mundo
PIKETY, Thomas - O capital no século XXI - Editora Intrínseca Rio de Janeiro 2014

quinta-feira, 12 de janeiro de 2017

"O sertão é do tamanho do mundo" João Guimarães Rosa

Museu Casa Guimarães Rosa, na esquina as quatro portas da
venda de seu Fulô pai do escritor
"O correr da vida embrulha tudo, a vida é assim: esquenta e esfria, aperta e daí afrouxa, sossega e depois desinquieta. O que ela quer da gente é coragem."ROSA, João Gumarães - Grande Sertão: veredas - Editora Nova Fronteira Rio de Janeiro 1987

Recentemente tive uma grata surpresa, numa viagem para o sudeste da Bahia, partindo de Belo Horizonte, parei na terra natal do autor de Grande Sertão: veredas, Cordisburgo, e me encantei com o Museu Casa de Guimarães Rosa. A casa onde o escritor nasceu e viveu até seus nove anos de 1908 a 1917. Com um acervo bem montado, uma sede bem cuidada e um bom material de divulgação, na pequena cidade de Cordisburgo, no interior de Minas Gerais, o museu mostra a potência da cultura brasileira e sua capacidade de ilustrar a diversidade do país. Com um orçamento modesto e sem pretensões grandiosas, o pequeno museu cumpre um papel fundamental, cooptar novos leitores para uma das maiores obras literárias da língua portuguesa. E, a partir da conformação da antiga casa de Florduardo Pinto Rosa, o pai de Guimarães Rosa, que apresenta alguns aspectos notáveis, não só na sua disposição interna, mas também em sua relação com a cidade e o sertão das Gerais, o visitante pode despertar para a relevância de sua obra.


Implantação da Casa de Guimarâes Rosa

Desde pequeno fui levado a Cordisburgo por meu pai de forma repetida. Quando morávamos em Belo Horizonte, houve um tempo, em que sempre que chegava uma visita de familiares do Rio de Janeiro, íamos todos a terra de Guimarães Rosa. O museu era uma atração, mas o que mais mobilizava a garotada era a Gruta de Maquiné, uma imensa formação de rocha calcária com águas subterrâneas, que também ficava adjacente à cidade. Sem as inscrições rupestres de Lagoa Santa, Maquiné é uma gruta mais básica, onde se observava de forma direta as estalactites e estalagmites que se formavam pela longa infiltração de água. O fato é que desde os meus onze anos fui apresentado ao maravilhoso mundo do velho Guima. O engraçado nisso tudo é, que meu pai apesar dessas recorrentes idas a Cordisburgo se definia muito mais como machadiano, que rosiano. Mas uma das inúmeras visitações familiares, talvez a mais memorável foi com meu velho tio-avô, Paulo Leão de Moura, que ainda por cima tinha conhecido o próprio João Guimarães Rosa, pois eram colegas do Itamaraty. Me lembro até hoje de uma narrativa desse meu tio-avô, no restaurante Sarapalha em torno da boa comida mineira, contando que encontrou-o no Ministério das Relações Externas então no Rio de Janeiro,  para um pedido de dedicatória do então recente lançado livro Grande Sertão: veredas. Nesse encontro, meu tio perguntara a Guimarães Rosa, qual a sensação após o lançamento do livro. A resposta, até hoje me intriga, pois mistura auto-celebração e ao mesmo tempo alívio, sinceridade e consciência do feito, simplesmente; "Deslumbramento".


Interior da venda do seu Fulô, preciosamente restaurada

Mas a casa de Florduardo, ou "seu Fulô, pai de Guimarães Rosa fica próxima a antiga estação de trens de Cordisburgo, e era dotada de uma venda, que generosamente abria tres portas para a rua Padre João, a principal, e uma para a rua vicinal, dominando a esquina, como parece adequado para a fortuna do comércio. A entrada íntima e familiar, se posiciona do lado oposto é junto a divisa lateral do lote vizinho, deixando já da rua antever um generoso quintal arborizado, que se desenvolve num suave aclive em direção ao fundo do terreno. Na frente da casa a rua Padre João determina um platô amuralhado que desce em direção aos trilhos do trem, que logo um pouco mais abaixo surge a antiga edificação da estação de Cordisburgo (ver a situação). Lembrando um campo comum, Aí certamente, nesse espaço, na infância do jovem Guimarães Rosa se agrupavam as manadas de boi vindas do sertão, que aguardavam as composições férreas para ser contados e levados para Belo Horizonte. Ali na venda do seu Fulô, no Museu Casa de Guimarães Rosa os vaqueiros deviam se reabastecer para a longa viagem de retorno, para as fazendas na imensidão do grande sertão, com a presença de um menino curioso e indagador, que colhia suas estórias.


Nada nessa casa parece gratuito, mesmo uma alcova sem ventilação parece ter seu uso, naqueles tempos, quando ao burburinho das manadas de boi e dos vaqueiros deviam se suceder longos tempos de calmaria e pasmaceira. Por último, a cozinha como sempre antecede o acesso ao quintal arborizado, que naqueles tempos devia trazer algumas galinhas ciscando, com a presença indelével do fogão a lenha num canto de duas paredes. Aqui, não há forro de palha como nos outros cômodos, apenas a telha vã, o piso de tijolos diverso também do assoalho de madeira do restante, marca o caráter produtivo dessa unidade. Enfim, o Museu Casa de Guimarães Rosa semeia nossa imaginação e parece ainda guardar em suas paredes e utensílios a sucessão de histórias que contaminaram de forma definitiva o jovem escritor. A vida íntima da família e os tropeiros das Gerais, que naqueles dias iam e voltavam em suas montarias, tangendo os bois, contando e recontando histórias de amores, tristezas, jagunços e outras das imensidões.


"Aí namorei falso, asnaz, ah essas meninas por nomes de flores. A não ser a Rosa´uarda - moça feita, mais velha do que eu, filha de negociante forte, seo Assis Wababa, dono da venda O Primeiro Barateiro da Primavera de São José - ela era estranja, turca, eles todos turcos, armazém grande, casa grande, seo Assis Wababa de tudo comerciava. Tanto sendo bizarro atencioso, e muito ladino, ele me agradava, dizia que meu padrinho Selorico Mendes era um freguesão, diversas vezes me convidou para almoçar em mesa. O que apreciei - carne moída com semente de trigo, outros guisados, recheio bom em abobrinha ou em folha de uva, e aquela moda de azedar o quiabo - supimpas iguarias. Os doces, também... Assim mesmo afirmo que a Rosa´uarda gostou de mim, me ensinou as primeiras bandalheiras, e as completas, que juntos fizemos, no fundo do quintal, num esconso, fiz com muito anseio e deleite. Sempre me dizia uns carinhos turcos, e me chamava de :- 'Meus olhos.'. Mas os dela era que brilhavam exaltados, e extraordinários pretos, duma formosura mesmo singular. Toda a vida gostei demais de estrangeiro." ROSA 1987 páginas106 e 107

Enfim, entre a imensidão do sertão e a dimensão dos compartimentos da casa, seus utensílios e equipamentos percebemos a sutileza do imbricamento das estórias entre o macro e o micro, naquilo que os arquitetos denominam movimentos entre escalas. Afinal, o livro é Grande Sertão: veredas, como se o todo só pudesse ser abarcado tanto pelo que olhamos, ou temos próximos aos nossos olhos, na nossa vivência, como também pelo mapa, pelo distanciamento, pela amplidão. 

Bibliografia:

ROSA, João Gumarães - Grande Sertão: veredas - Editora Nova Fronteira Rio de Janeiro 1987

domingo, 8 de janeiro de 2017

Democracia, pobre democracia e os 100 anos da Revolução Russa

No final de um ano, ou no começo de outro há sempre um clima de causalidade e revisão contraposto ao duro desenrolar dos fatos muito mais ligados a simultaneidade, a supremacia da notícia sobre a história, que impera durante todo o ano. Memória e revisão são supremos no final do ano, e para mim 2016 marca o enfraquecimento da democracia, não só no Brasil, mas no mundo todo, afinal; Dilma Roussef, presidenta do Brasil sofreu um golpe parlamentar, a Inglaterra declinou de participar da Comunidade Européia, e Donald Trump foi eleito presidente nos EUA. Os três fatos foram golpes decisivos na ampliação da democracia, e ainda irão produzir retrocessos importantes numa dinâmica fundamental do nosso mundo contemporâneo; a radicalização democrática. Um processo que cada vez mais toca a consciência do homem contemporâneo, em várias partes do mundo, que envolve a radicalização da democracia representativa, em experiências diretas e participativas. E, que também envolve a promoção de uma melhor distribuição de renda no mundo, melhorando o acesso a diferentes oportunidades por toda a espécie humana. Como recentemente declarou o sociólogo português, Boaventura de Souza Santos;

"Como tenho defendido, o neoliberalismo e a lógica disciplinar e antidemocrática do capital financeiro internacional entraram na Europa via instituições europeias e tratados europeus, não pela via direta dos governos nacionais nos quais havia mais resistência política, com a exceção parcial da Inglaterra e de alguns países do Leste Europeu. As instituições europeias são hoje o principal agente de imposição da lógica neoliberal em contradição explícita com a tradição social-democrática que presidia o projeto europeu." SANTOS 2016 página10

A redução da liberdade à liberdade de empreendimento, desencadeia um ambiente de competição desenfreada, que recalca as solidariedades e identidades, tornando difícil o combate e o controle de comportamentos anti-sociais. Na verdade, o mundo contemporâneo sofre um desenvolvimento geográfico desigual, no qual tradições políticas e culturais representam diferenciados níveis de resistência ou aceitação às teses neo-liberais, que se expandiram. O tempo passou a ser um tempo imediato, não havendo preocupações com relação as futuras gerações, há uma busca desenfreada por resultados imediatos. A ideologia neo liberal se espalhou pelo mundo de forma desigual, não adotando um padrão único e sem um conjunto de princípios coeso. No entanto, há um fato, que caracteriza o nosso tempo contemporâneo, a ausência da ameaça comunista, que durante todo o século XX, ou pelo menos desde 1917, que instou as classes privilegiadas e o Estado democrático a buscar a promoção de maior igualdade, por meio de políticas habitacionais, educacionais e de saúde. A revolução russa e os posteriores desenvolvimentos do século XX, como a Revolução Cubana na década de cinquenta e outros irão alertar o mundo do livre mercado para a adoção de regulamentações que promovam maior equidade social. Esse fato, desresponsabiliza as reestruturações neo-liberais, que ocorreram a partir dos anos 1980s no Brasil, na Coréia do Sul, ou em países de maior tradição social-democrata como a Suécia, a se preocupar com suas consequências recorrentes, que envolvem desemprego em massa, concentração de renda, e ampliação da pobreza.

Houveram momentos, como na privatização da habitação social na Inglaterra, na aplicação do programa de Margaret Thatcher, quando as classes baixas pensaram que estavam sendo beneficiadas, pois passavam de locatários para proprietários, a partir de custos relativamente baixos. Logo a especulação imobiliária assumiu o controle expulsando as populações de baixa renda, pela compra coercitiva ou por outros artfícios, levando massas para a periferia, expulsando-a do centro de Londres. A acumulação por expoliação passou a ser regra, pessoas, grupos retritos passaram cada vez mais a produzir dinheiro a partir de dinheiro. O volume de dinheiro diário circulando em atividades especulativas passou de US$2,3bilhões em 1983, para cerca de US$130bilhões em 2001. Segundo HARVEY 2005 página173, o volume anual de transações especulativas em 2001 chegou a US$40trilhões, enquanto segundo estimativas do FMI apenas US$800bilhões seriam suficientes para sustentar o comércio internacional. Grande parte desses fluxos especulativos, quando realizam seus lucros exorbitantes migram para outras paragens, forçando recursos governamentais a cobrirem ameaças de quebradeiras, como no caso das hipotecas subprime nos EUA, onde os lucros são privatizados e os prejuízos socializados.

Tal fato fez com que governos, com alinhamentos ideológicos distintos, tais como Reagan e Clinton, ou Thatcher e Marjorie, e mesmo Fernando Henrique Cardoso e Lula seguissem a cartilha do ajuste fiscal e do combate à inflação a qualquer custo. Dando-nos a sensação de que fora do ajuste fiscal não há saída. Na verdade, alguns autores mesmo liberais, tais como Piketi e Stglitz começam a questionar esse pensamento único, como um beco sem saída. Para mim, a melhor interpretação desse desenvolvimento ainda é de ARRIGHI (1996), que já foi comentado aqui no blog no texto O longo século XX, que pode ser acessado no link abaixo. A interpretação, que me parece fundamental destacar na construção de ARRIGHI 1996 é a de que, a partir de argumentos colhidos em Marx, Braudel e Weber, o autor  identifica um padrão geral na história de longa duração do capitalismo, que intercala épocas de expansão material e expansões financeiras.

Assim existiriam quatro ciclos sistêmicos de acumulação referenciados a bases geográficas específicas e a tendência do capital a procurar sua forma monetária, como uma consequência natural do sistema.. O primeiro seria o ciclo Genovês e iria do século XV ao início do XVII, o segundo seria o ciclo holandês do fim do século XVI até meados do século XVIII; o terceiro seria o ciclo britânico da segunda metade do século XVIII até o início do século XX; e por fim um ciclo americano, iniciado no fim do século XIX até a nossa atual fase de expansão financeira da atualidade. Todos envolvem bases produtivas vigorosas que migraram para os serviços financeiros, tornando-se de certa forma os banqueiros do mundo, a partir da constatação de que a verdadeira flexibilidade e liberdade estava no acúmulo de moeda. Sem dúvida, o nosso tempo é o da hegemonia financeira, que dita nossa pauta em torno do ajuste fiscal, não admitindo outra receita, emburrecendo o mundo em torno de unanimidade burra.

O mercado sempre foi associado a liberdade de escolha, no entanto seu vínculo com o capital financeiro, e a tendência inexorável do sistema de identificar na base monetária a realização dos lucros, acaba dando a essa autonomia uma capacidade de barrar a ampliação da democracia no mundo contemporâneo, que demanda maior equidade social. Abaixo o link com meus comentários sobre o livro do ARRIGHI.

http://arquiteturacidadeprojeto.blogspot.com.br/search?q=arrighi

Bibliografia:
ARRIGHI, Giovanni - O longo século XX, dinheiro, poder e as origens do nosso tempo - editora Unesp São Paulo 1996
HARVEY, David - O neoliberalismo, história e implicações - edições Loyola São Paulo 2005
SANTOS, Boaventura de Souza - A difícil democracia: reinventar as esquerdas - Editorial Boitempo São Paulo 2016

quarta-feira, 4 de janeiro de 2017

A Capela do Menino Jesus em Itapetinga, Bahia, uma grata surpresa

A Planta da Capela do Menino Jesus
Em 1964 o fazendeiro Juvino Oliveira encomendou ao arquiteto de Salvador Guarani V. Araripe o projeto de uma pequena capela em homenagem ao Menino Jesus, que seria edificada junto a sede de sua fazenda na cidade de Itapetinga, no sudeste da Bahia. Na ocasião trabalhava no escritório de Guarani, o arquiteto japonês Yoshiakira Katsuki, que nesse trabalho desenvolveu uma maquete volumétrica prévia de argila, que depois foi desenhada. A obra é atribuída a Yoshiakira Katsuki, Guarani V. Araripe e Albert Hoisel. A planta mostrada no desenho ao lado, apresenta o arranjo expressivo dos dois volumes, da nave e da sacristia, construídos integralmente num granito da região da cidade. Já havia visitado essa obra nos anos 1990s, por ocasião de um seminário de Desenho Urbano realizado na cidade de Itapetinga e em Vitória da Conquista, sob a organização da Universidade Estadual do Sudeste da Bahia (UESB), e lembro do expressionismo de sua concepção, algo inusitada e provocadora. Na primeira visita ainda não tinha desenvolvido esse blog, e portanto não me referi a essa obra peculiar e provocadora, que tanto me instigou a desenvolver essas reflexões que trago agora a público.

O Adro da Capela do Menino Jesus
O interessante na pequena capela, que hoje se encontra nas bordas da cidade de Itapetinga é que foram agregadas a ela um Memorial ao fazendeiro Juvino Oliveira, também primorosamente desenhado, e uma série de equipamentos de apoio como restaurante e buffet, que garantem a familia a possibilidade de aluguel para festas e eventos da cidade. A experiência me parece exemplar da capacidade de aglutinação, que a boa arquitetura é capaz de gerar num lugar, impulsionando tanto a auto-estima da população local, quanto referenciando-a com um exemplo inusitado e complexo de esforço construtivo, que se afasta de forma definitiva das zonas de conforto e da banalidade. Aqui, também se reforça o caráter coletivo do fato arquitetônico, que não é fruto apenas de um projeto bem lançado, mas também de um esmero construtivo da mão de obra engajada na construção. Há na obra construída uma série de registros dos operários, que grafaram pedras com preciosas expressões, que com certeza pretendia franquear a autoria aos anônimos operários, uma proposição teórica que se aproxima de manifestações próximas do TeamX na Europa nos mesmos anos sessenta. A professora Nelma Gusmão de Oliveira, que é de Itapetinga, e que me mostrou a obra nas duas ocasiões que visitei a Capela do Menino Jesus já escreveu sobre a obra, destacando também esse caráter coletivo, inusitado e único dessa construção.


"A harmonia entre idealização do projeto e execução da obra, refletindo uma perfeita integração entre o sonho de seu Juvino, os arquitetos, o engenheiro Fidelino Lopes Ribeiro, o mestre de obras Gilberto Assis, o escultor Lênio Braga, o calculista Francisco Lemos Santana, o ferreiro João Batista de Souza, o marceneiro José Berilo do Nascimento e os operários da cidade de Itapetinga, que durante quatro anos, se dedicaram a essa construção num trabalho sem pressa que mais parecia um ritual, se torna um dos pontos principais que conferem a essa capela um caráter tão especial..." OLIVEIRA 2006

Aberturas junto ao piso e as lajes geram fluxos de ventilação
O caráter perene, e de um envelhecimento adequado, robusto e resistentte ao tempo e as intempéries naturais certamente é determinado pela materialidade escolhida paras as paredes de pedra, que também gera uma espacialidade adequada ao simbólico e ao sagrado. Essa mesma materialidade reforça a potente adequação do edifício ao clima extremamente quente da região. As aberturas junto ao solo, conjuminadas com as aberturas próximas as lajes de cobertura geram um fluxo de ar constante no seu interior, que ameniza o intenso calor da região, que atingem máximas bem próximas aos trinta e cinco a quarenta graus celsius. Toda a obra me parece bastante provocadora e inusitada, e apesar das claras referências já assinaladas por outros autores com Ronchamp de Le Corbusier e os Metabolistas japoneses, ela me parece dotada de uma potência ímpar.

Autonomia entre piso e paredes
Há ainda um aspecto bastante notável, na concepção da pequena Capela do Menino Jesus de Itapetinga, que está no desenho do piso no seu interior, que nunca se consolida junto aos planos das paredes, como que mantendo sua autonomia. Essa decisão de desenho acaba por definir um piso artificializado, confortável ao andar humano, plano, que contrasta com o retorno ao piso do sítio antes da intervenção humana. Além disso, tal decisão reforça um caráter artificialmente natural dos planos de pedra das paredes, remetendo-nos ao espaço da gruta, no qual o altar mor e o batistério se posicionam para além desse piso, como que sacralizando-os. O único ponto em que o piso se consolida com o plano vertical da parede é junto a entrada da capela, onde também ocorre o único plano ortogonal de parede ao piso, numa ênfase de sua artificialidade humana.

Por último, a construção do Adro da capela num desenvolvimento triangular, marcado pela presença do cruzeiro esculpido pelo escultor Lenio Braga em pedra sabão cumpre um papel claro de assinalar o acesso principal ao altar mor, a axialidade do templo. Mas mesmo aqui, a axialidade não é apresentada ao observador de forma simples e linear. Há uma quebra. O visitante sobe ao plano do Adro de maneira lateral, sendo apresentado a porta principal por duas escadas hierarquicamente construídas, uma mais generosa e direta e outra tortuosa, que segue o desenho dos degraus do batistério no interior. As duas escadas acabam sendo articuladas por um pequeno púlpito, que parece cumprir o papel de ponto focal para cerimônias mais concorridas, além da capacidade da pequena capela. Tudo aqui parece reforçar um caminhar pausado, a ser construído pelo visitante, no qual a legibilidade só é fixada na memória com a experiência de vivência efetiva do espaço, nunca como premissa.

Enfim, a Capela do Menino Jesus de Itapetinga faz parte de um conjunto de obras de arquitetura onde o conjunto dos esforços construtivos desprendidos estruturam um objeto único, no qual cada decisão de projeto nos incita a ver como o fenômeno do espaço é potente, capaz de articular uma comunidade de forma marcante.

BIBLIOGRAFIA:

OLIVEIRA, Nelma Gusmão de - Capela do Menino Jesus: monumento da Arquitetura Moderna Brasileira - Edição 1379 de 01/04/2006