domingo, 31 de janeiro de 2016

Palestra do arquiteto Paulo Mendes da Rocha na reunião do IAB em Vitória

O arquiteto Paulo Mendes da Rocha
Na última quarta feira dia 27 de janeiro de 2016, na cidade de Vitória, no contexto da reunião do Conselho Superior do IAB (COSU-IAB) foi feita uma palestra do arquiteto capixaba Paulo Mendes da Rocha, ganhador do Prêmio Pritzker de 2006. A palestra foi a primeira da noite, seguida dos comunicados dos arquitetos Demetre Anastassakis, sobre habitação popular com arquitetura, Alexandre Feu Rosa que abordou o Plano Lucio Costa da Barra da Tijuca e as novas demandas urbanas, e Alexandre Fernandes falando sobre Projetos de edifícios ambientalmente positivos. Todos os palestrantes destacaram o caráter cultural do fenômeno arquitetônico, como capacitado para produzir um vínculo de maior profundidade entre usuários e o espaço construído. Esse vínculo é de extrema importância para a sustentação dos lugares, onde o homem construiu essa outra natureza, que chamamos cidade, um lugar no mundo que é da ordem da cultura, que conceitualmente está muito próximo  do natural.

Há na sociedade contemporânea uma pressa desmedida na definição da ocupação desse lugar, fazendo com que grande parte dos empreendimentos fiquem presos numa lógica de resultados imediatos, que não olham para os comprometimentos com as gerações futuras. Grande parte dos impactos ambientais, que sentimos hoje no planeta Terra são consequências diretas dessa forma superficial e rápida de conceber a construção do lugar. Na medida que começarmos a compreender a cultura como algo extremamente próximo da ideia de cultivo, portanto muito ligado ao desenvolvimento de processos naturais, enfim uma outra natureza.

"Como cultura, a palavra 'natureza' significa tanto o que está a nossa volta como o que está dentro de nós, e os impulsos destrutivos internos podem facilmente ser equiparados às forças anárquicas externas. A cultura, assim, é uma questão de auto-superação tanto quanto auto-realização...A natureza humana não é exatamente o mesmo que uma plantação de beterrabas, mas, como uma plantação, precisa ser cultivada - de modo que, assim como a palavra 'cultura' nos transfere do natural para o espiritual, também sugere uma afinidade entre eles." EAGLETON 2005 página15

Nesse sentido, a palestra do arquiteto Paulo Mendes da Rocha versou sobre dois conceitos - linguagem e conhecimento - fundamentais para a construção de um mundo da vida mais compromissado com um tempo de mais longo prazo, portanto com as gerações futuras. Segundo o arquiteto, o conhecimento e a linguagem interagem de forma dialética construindo uma experiência, ou módus operandi, que consolida a forma da cultura do construir.

Nossas cidades são fruto direto dessa interação, que no passado operava manipulando uma gama restrita de elementos, e que no mundo contemporâneo, com a imensa acessibilidade a diversas linguagens, a forma de construir entra em uma crise de síntese. Atuar de forma estruturada, ou a partir da ideia kantiana de um uso público da razão sobre o desenvolvimento do ambiente construído nacional significa pensar uma política para o campo da arquitetura e do urbanismo, que irá manipular os conceitos de linguagem e conhecimento.

A ideia de linguagem envolve o conceito de transmissão, difusão e troca, que está contida nas sociedade modernas pela esfera da comunicação, e que deve partir do pressuposto de que há uma variedade de sistemas construtivos operando. Por outro lado, a ideia de conhecimento envolve o conceito de uma certa estratificação ou cristalização de uma determinada maneira de operar, se comportar, e enfim construir o nosso ambiente humano.

Precisamos portanto, catalogar a imensa diversidade de práticas construtivas atuantes no país, avaliando sua adequação ao meio ambiente social, cultural e econômico, e ao mesmo tempo valorar de forma crítica esses conhecimentos de forma a garantir a preservação das futuras gerações sobre o planeta.

BIBLIOGRAFIA:

EAGLETON, Terry - A idéia de Cultura - Editora Unesp São Paulo2005
HABERMAS, Jürgen - Mudança Estrutural da esfera pública - Editora Unesp São Paulo 2014

quinta-feira, 28 de janeiro de 2016

Encontro no IAB-RJ homenageia memória de Alfredo Brito

Na última segunda feira dia 25 de janeiro de 2016 foi homenageado o arquiteto, ativista social, professor, amante da música, das cidades e das mulheres Alfredo Brito, na sede do IAB-RJ,  que faleceu em dezembro de 2015. O evento reuniu arquitetos, amigos, músicos, colegas de profissão, e ex-alunos numa celebração emocionada e saudosa do velho entusiasta da arquitetura, da vida nas cidades e particularmente do Rio de Janeiro.

Alfredo Brito foi meu professor na FAU-UFRJ, no final dos anos 70 e começo dos anos 80 do século passado, na cadeira de Arquitetura Brasileira 2, na qual estudávamos o neoclássico, o ecletismo, o modernismo e a nossa contemporaneidade. Volta e meia nos encontrávamos nas reuniões da Associação de Moradores e Amigos de Santa Teresa (AMAST), bairro que compartilhamos há mais de vinte anos como vizinhos, e no qual sempre destacávamos a sua diversidade de gente e de culturas. Mais recentemente fomos professores juntos no curso da PUC-Rio, do qual participamos da montagem, nos seus primeiros anos.

O evento foi organizado pelos amigos e familiares de Alfredo Brito e se iniciou por um filme, montado a partir de vários depoimentos seus para diversos assuntos de interesse da cidade do Rio de Janeiro, como a demolição da perimetral, a zona portuária, o conjunto habitacional do Pedregulho, dentre outros. Logos após o filme foi colhido diversos depoimentos sobre a trajetória profissional e afetiva de Alfredo pelos presentes, tais como Dora Alcântara, Claudius Ceccon, Luiz Carlos Toledo, Margareth Pereira, Fabiana Izaga, Sérgio Magalhães, Jeronimo Moraes. Em seguida foi montada uma roda de músicos notáveis, que tocou chorinhos memoráveis, e que tradicionalmente se reunia na casa de Alfredo no primeiro sábado do ano, para celebrar os novos desafios que se apresentavam a cada reinício.

Meu depoimento na festa relembrou um fato, ao mesmo tempo inusitado e típico do que era o Alfredo Brito, um ativista militante pela construção de uma cidade com mais diversidade e pluralidade. Num debate na AMAST, no começo dos anos 2000, debatemos o empreendimento do Hotel de Santa Teresa que então se renovava, que trazia para o bairro a proposta de um perfil de hospedagem elitizada e voltada para um público de alto poder de consumo. Grande parte da audiência da assembleia se posicionava contra a nova instalação, defendemos eu e Alfredo a instalação do novo hotel como fator de promoção da diversidade da cidade.

Terminada a reunião, com eu e Alfredo exaustos, o velho ativista insistiu comigo que gostaria de me mostrar uma coisa muito peculiar, que tinha encontrado no meio de seus arquivos, na sua casa, que eram sistematicamente arquivados. Depois de muita insistência, Alfredo Brito me mostrou o meu fichamento que tinha entregue nos tempos da escola de arquitetura, no começo dos anoos oitenta, um trabalho realizado para a matéria de Arquitetura Brasileira 2. Alfredo destacava aspectos do trabalho de um jovem estudante, e que traziam uma abordagem sobre o bairro de Santa Teresa na escolha de edificações que traziam a tipologia repetida da torre, destacando as vistas para a cidade. Acabamos ainda debatendo aspectos sobre as várias personalidades de diferentes partes da cidade do rio de Janeiro.

Realmente, uma atitude que mostrava todo seu envolvimento apaixonado com a arquitetura, com nosso bairro e com as diversas personalidade dessa imensa metrópole.

domingo, 24 de janeiro de 2016

125 anos do nascimento de Gramsci e as nossas cidades contemporâneas

No dia 22 de janeiro de 2016, o filósofo italiano Antonio Gramsci teria completado 125 anos se estivesse vivo. Nascido na Sardenha em 1891, o político antifascista mudou a trajetória do pensamento marxista contemporâneo, criticando de forma veemente o economicismo, o determinismo e o cientificismo dessa linha do pensamento. A contribuição original de Gramsci ao marxismo se deve à crítica ao conceito de objetividade científica, que deveria ser contraposto a um relativismo subjetivo absoluto, principalmente no campo da história.

Marx e Engels são classificados como contaminados por um determinismo científico, pois sua localização histórica no século XIX demanda deles uma certeza mobilizadora, que seja capaz de ser persuasiva naquele momento específico. Em contraposição Gramsci irá se utilizar e se valer muito mais de leis tendenciais, do que da objetividade do determinismo científico histórico, buscando valorizar a interpretação subjetiva da história. Gramsci irá fazer a caracterização do marxismo como filosofia da práxis, pretendendo a reunificação entre ação e pensamento, tendo o sujeito como protagonista, que a cada novo ciclo reconstroe a interpretação histórica de forma a objetivá-la.

"O sujeito humano existe intervindo no mundo, sendo constituído pelo movimento da história e, simultaneamente, constituindo esse movimento." KONDER, 2002, p.109

Há dois conceitos fundamentais na filosofia de Gramsci -a ideologia e a hegemonia -, que demonstram seu esforço de adequar o método marxista ao seu tempo contemporâneo, o começo do século XX, com as presenças da primeira guerra mundial, da revolução russa e da ascenção do fascismo na Itália.

Marx e Engels enxergavam a ideologia como um condicionamento social ou de classe, que distorcia a capacidade de interpretação do real pelo sujeito, sendo portanto um termo carregado de negatividade. Gramsci irá reafirmar essa visão, mas dando-lhe um aspecto mais positivo, alertando que qualquer pensamento não pode se libertar das vicissitudes da ideologia. Mesmo a ciência, que Marx contrapunha a ideologia, para Gramsci está condenada a reconstruções, revisões e correções contínuas e constantes ao longo da história. Portanto, mesmo a ciência não é capaz de uma representação do real de forma permanente e eterna, estando sujeita a reconstruções e reinterpretações contínuas em função do contexto histórico.

Por outro lado, para Gramsci há ideologias arbitrárias ou conservadoras, que mantém o status quo, ou o módus operandi do mundo sem mudanças, e ideologias historicamente orgânicas ou progressistas, que estão comprometidas com uma visão de transformação e são vitórias da representação sobre o real. A essas últimas - ideologias historicamente orgânicas - Gramsci considerava como "hipóteses científicas de caráter educativo e energético", que tinham a capacidade crítica de realizar o desenvolvimento histórico.

O outro conceito importante na filosofia de Gramsci era a hegemonia, uma dinamização da concepção de ideologia, que na verdade pretendem conquistar o tecido social, tornando-se representações socialmente compartilhadas por todos. Portanto algumas ideologias se hegemonizam no tecido social, determinando práticas e costumes que estruturam nossa concepção de mundo, se transformando em representações socialmente convincentes para todos.

Um exemplo notável de ideologia, que se hegemonizou está na forma de representação dos Estados, que com as revoluções burguesas abandonaram a linha hereditária da realeza com delegação eterna para uma família, passando a adotar a escolha republicana do representante pela eleição de votos e o mandato temporário. A ideologia republicana penetrou nos mundos da vida, convencendo o tecido social de sua maior adequação, desempenhando um papel contra-hegemônico num tempo histórico específico, destituindo a nobreza hereditária que era então a ideologia predominante. Anote-se que a mudança foi de longa duração, afinal o voto demorou a se generalizar na sociedade como um todo, mantendo-se excluídos os analfabetos e as mulheres por longo período.

Nas cidades também temos ideologias arbitrárias ou predominantes que se hegemonizaram, determinando práticas e costumes que estruturam nossa forma de construí-las, e que se naturalizaram como ideias estabelecidas. Dois aspectos representam ideologias arbitrárias instaladas, que demandam formulações de ideologias contra-hegemônicas para desalojá-las de nossas práticas; o rodoviarismo imperante, e o idílio isolacionista da habitação.

Essas duas ordenações ideológicas se estruturam de uma maneira, que mutuamente se justificam, o automóvel individual induz a habitação isolada, que por sua vez também é indutora da necessidade da presença do pneu. As duas na verdade estão profundamente articuladas com a crise do espaço público que nossa sociedade vive, determinado pelo declínio da esfera pública, que também tem entre seus componentes o individualismo exagerado. Nossas cidades apresentam densidades baixas, ocupam um território muito maior que o necessário, e no mundo subdesenvolvido não conseguem universalizar o acesso as infraestruturas urbanas, que permanecem restritas a áreas privilegiadas. Apesar de todos os sinais do planeta de que o modelo baseado no isolamento unifamiliar e no automóvel particular são inviáveis, eles seguem representando o bem viver.

Como articular ideologias contra-hegemônicas que celebrem os meios de transportes públicos e o adensamento da habitação, fazendo-os representar o bem viver? É o desafio de nosso tempo...

BIBLIOGRAFIA:

KONDER, Leandro - A questão da ideologia - Editora Companhia das Letras, São Paulo 2002

MOREIRA, Pedro da Luz - Projeto, Ideologia e Hegemonia, em busca de um conceito operativo para a cidade brasileira - Tese de Doutorado Prourb FAU-UFRJ. Acesso a  http://www.prourb2.fau.ufrj.br/pedro-da-luz-moreira/

http://www.esquerda.net/artigo/125-anos-de-gramsci-o-intelectual-organico/40847, acesso em 23/01/2016

sexta-feira, 22 de janeiro de 2016

Encontro com arquitetos equatorianos no Rio de Janeiro

Reunião com arquitetos equatorianos
Nessa última terça feira tivemos um encontro proveitoso com arquitetos equatorianos na sede do CAU-RJ, com os representantes do Instituto Metropolitano de Planificación Urbana, Secretaria de Territorio, Habitat y Vivienda y Secretaria de Movilidad da cidade de Quito. A reunião pretende estreitar os contactos e as experiências entre arquitetos do Equador e do Brasil, pretendendo dar conhecimento as experiências dos campos da arquitetura e urbanismo desenvolvidas principalmente nas cidades de Quito e do Rio de Janeiro, tendo em vista o futuro Congresso Internacional de Arquitetura UIA 2020 RIO.

Como a cidade de Quito possui um valioso patrimônio histórico construído, a conversa inicialmente se desenvolveu no sentido da intensificação do intercâmbio sobre a preservação e sobre a reocupação desse contínuo, tanto no centro da capital Equatoriana, como também no Rio de Janeiro. A equipe da Prefeitura da cidade do Rio de Janeiro, do programa Novas Alternativas fez um breve relato sobre o contínuo construído da cidade e os programas de caráter habitacional, que pretendem reocupar essas antigas edificações. A principal questão levantada pelos arquitetos da municipalidade do Rio de Janeiro se baseou no atendimento à demanda por construção de unidades habitacionais para a baixa renda em imóveis de importância histórica. Como promover a construção do uso habitacional no centro da cidade carioca, onde existe grande oferta de empregos, infraestrutura adequada e uma baixa presença desse uso, mas também um custo mais elevado da obra, por se tratar de restauro?

Os arquitetos equatorianos descreveram também de forma breve o programa Ponga punto a tu casa, que possui recursos da Junta da Andaluzia, um organismo espanhol que incentiva ações de defesa do patrimônio nas cidades de colonização ibérica. O programa apesar de ter logrado a construção de algumas revitalizações importantes, não tinha alcançado a escala necessária para a requalificação de contínuos expressivos da cidade de Quito. Como a economia equatoriana é extremamente dependente da produção petrolífera, assim como a do estado do Rio de Janeiro, o declínio do valor do barril de petróleo de US$130,00 para US$30,00, nos mercados internacionais, a partir da crise sistêmica de 2008, determinou um forte recuo nessas iniciativas.

Os representantes dos arquitetos do Equador também assinalaram a importância da realização de dois eventos no ano corrente de 2016 na cidade de Quito; a Bienal Internacional de Arquitetura e Urbanismo e o Encontro da ONU-Habitat. Dois acontecimentos, que certamente mobilizarão a categoria dos arquitetos, e nos quais é de grande importância a presença de assuntos relativos às diversas formas de ocupação do território do planeta Terra. A arquitetura e o urbanismo precisam em nossa contemporaneidade reencontrar uma certa reessencialização de suas ações, convencendo o conjunto da sociedade de sua relevância.

Na minha fala, como presidente do Instituto de Arquitetos do Brasil Departamento do Rio de Janeiro (IAB-RJ) procurei também destacar a conquista do Congresso Internacional de Arquitetura do Rio UIA 2020, que foi conquistado em 2014, na cidade de Durban na África do Sul, numa disputa acirrada com as cidades de Paris na França, e de Meulborne na Austrália. Particularmente, procurei defender que a construção de um evento dessa monta, onde se espera a presença 15 mil arquitetos de todas as partes do mundo na cidade do Rio de Janeiro, era de fundamental importância a articulação e a concatenação de nossos esforços de forma a valorizar as ações de plano e de projeto. O tema do Congresso será "Todos os mundos. Um só mundo. Arquitetura 21", pretendendo sensibilizar agentes públicos e privados, tanto para o respeito das diversas formas de produção do ambiente construído pelo homem, nas diferentes culturas e partes do mundo, como também, para o fato de que ocupamos o mesmo planeta, onde cada vez mais as atitudes humanas representam impactos sobre o meio ambiente, a sustentação econômica e social, enfim, a sobrevivência das futuras gerações.

A conecxão e a articulação das ações e eventos promovidos pelos arquitetos na América Latina precisam construir objetivos claros, capazes de sensibilizar o conjunto de nossas sociedade para a relevância da ocupação do território em nossa contemporanieidade.

terça-feira, 12 de janeiro de 2016

A Espanha e o fracasso da política habitacional baseada no Estado Neo-liberal

O drama do endividamento das famílias na Espanha
Após a segunda guerra mundial, as bases do Estado de Bem Estar Social foram lançadas na Europa e nos Estados Unidos, tendo como premissa evitar enfrentar uma outra crise semelhante a de 1929, determinada pelo crack da Bolsa de Nova York. A doutrina de John Maynard Keynnes determinava um pacto redistributivo, para se evitar a tendência concentradora e especulativa do sistema capitalista, eterno produtor de crises cíclicas. Além da promoção da saúde, um dos campos de ação era a promoção e o subsídio a obtenção da moradia pelas classes menos favorecidas, seja pela alocação social ou pelo subsídio à hipoteca. Portanto, o modelo de regulação, tanto do Estado, quanto da Iniciativa Privada reunia o desenvolvimento econômico e a justiça social, num pacto que gerou uma continuidade de crescimento econômico e distribuição de renda, entre os anos de 1945 a 1975.

Assim, no Reino Unido e na Irlanda do Norte cerca de 5,5 milhões de unidades habitacionais foram construídas entre 1945 e 1981. Mesmo nos EUA, país de tradição liberal, ao final dos anos 1970 o estoque de moradias públicas para aluguel a famílias de baixa renda chegou a 1,4 milhão de unidades. Ao final dos anos setenta, começo dos anos oitenta, o Estado de Bem Estar Social começa a ser desmanchado, ressurgindo a ideologia do (neo) liberalismo que havia gerado o crack da bolsa de Nova York em 1929.

A Espanha nunca teve uma política baseada no Estado de Bem Estar Social para a produção da habitação. No tempo da ditadura franquista, enquanto países como a Holanda e a Inglaterra investiam fortemente numa política de locação social, a Espanha mantinha-se presa a ideia de "quem tem um título de propriedade tem algo a perder, interesses concretos a defender e pouco tempo para conspirar." COLAU e ALEMANY 2012 página35 Era então a típica mentalidade propalada e divulgada pela ditadura franquista, que frente as tendências de outros países vizinhos da Europa, mantinham a Espanha num claro isolamento.

Após a segunda guerra mundial a Espanha permaneceu isolada, não tendo participado sequer da ONU, mantendo-se  à margem, dominada por um atraso sistêmico, que parecia ser o programa da ditadura franquista. A guerra civil espanhola (1936-39) determinou uma enorme cisão no país entre a Frente Popular e os Nacionalistas, o primeiro grupo apoiado pela União Soviética, México e pelas Brigadas Internacionais, enquanto o segundo recebia o apoio dos Nazistas alemães e dos Fascistas italianos. A guerra civil espanhola foi uma terrível ferida, tirou a vida de 500 mil, e forçou a imigração de outros 500 mil, apenas a Argentina recebeu nesse período 300 mil espanhóis.

As duas potências ocidentais, EUA e Inglaterra, que irão combater os países do Eixo, Alemanha, Itália e Japão se isentaram do conflito da guerra civil espanhola, por isso durante a segunda guerra, a Espanha se declara neutra, apesar de sua clara simpatia pelo nazi-fascismo. Na primeira década logo após o final da segunda guerra, com a guerra fria o alinhamento espanhol, assim como o português permanece dúbio, envolvendo um anti-comunismo com pitadas também de anti-capitalismo.

Franco irá falecer apenas em 1975, assumindo o poder de forma provisória o rei Juan Carlo, que convoca eleições para a formulação de uma nova constituição, que é declarada em 1978. Em 1981 ocorre uma tentativa de golpe apoiado pelos EUA, que o rei Juan Carlo contorna, enquadrando as forças armadas espanholas. Portanto a redemocratização espanhola ocorre exatamente no momento de ascensão dos ideais neo liberais, na Inglaterra e nos EUA, a primeira ministra britânica Margareth Thatcher é eleita em 1979, e o presidente norte americano Ronald Reagan em 1980.

Desde a redemocratização da Espanha dois partidos tem se revesado no poder, o PSOE (Partido Socialista Operário Espanhol) de cunho social democrata e o PP (Partido Popular) de posicionamento liberal de direita. Apesar disso, tanto o partido social democrata, quanto o liberal implantam uma política habitacional alinhada com os ideais do neo-liberalismo, isto é, baseado na casa própria e no crédito hipotecário.

"O problema não é que na Espanha, a maioria das pessoas não tenham moradia - diz-se que 82% das moradias são habitadas por proprietários - mas o fato de que a maioria das famílias tem financiamentos que levarão a vida inteira para pagar e que os riscos de exclusão aumentam. Em 2003, só os créditos para a moradia representavam 62% da renda disponível, e a relação da dívida creditícia total sobre a renda atingia 91%. Também não se trata de que não se construam moradias, uma vez que nunca tinham sido construídas tantas - setecentos mil em 2004 - ,mas de que muitas delas se encontram vazias, pois são objeto de investimento ou então de abandono." MONTANER e MUXI 2014 página172

No ano de 2007 ocorre uma forte crise, com o estouro da bolha imobiliária, lançando um grande contingente de espanhóis na inadimplência. Em 2008, 2,7 milhões de pessoas terminam o ano sem poder pagar suas dívidas, no ano seguinte 850mil imóveis são requisitados pelos bancos para cubrirem as dívidas. Em 2011 existiam 3,5 milhões de imóveis vazios na Espanha, grande parte desse contingente tinham passado para as mãos dos bancos, que com os imóveis subvalorizados continuavam cobrando das familias mesmo depois de despejadas. ROLNIK 2015 página 77

O resultado disso tudo foi que em 2008, 170 milhões de euros do contribuinte espanhol foram utilizados para resgatar entidades financeiras em dificuldades por conta da farra das hipotecas, assim como nos EUA no mesmo ano, a ideologia do Estado Neo-liberal considera justo resgatar o sistema financeiro em dificuldade, mas não acha correto subsidiar a habitação de interesse social. Enfim, parece claro em todas essas operações a hegemonia do capital financeiro no mundo contemporâneo, que dita a atuação do estado e dos indivíduos.

BIBLIOGRAFIA:

COLAU, Ada e ALEMANY, Adriá - Vidas hipotecadas: de la burbuja imobiliária al derecho a la vivienda - Cuadrilátero de Libros, Barcelona 2012

MONTANER, Josep Maria e MUXI, Zaida - Arquitetura e política: ensaios para mundos alternativos - Gustavo Gilli São Paulo 2014

 ROLNIK, Raquel - Guerra dos Lugares: a colonização da terra e da moradia na era das finanças - Editora Boitempo São Paulo 2015

sexta-feira, 8 de janeiro de 2016

Desafios das próximas gestões das cidades brasileiras e do Rio de Janeiro

Rede de mobilidade da cidade, com alguns trechos ainda em projeto

O texto que escrevi sobre a transparência e a gestão de projetos para o município do Rio de Janeiro defende a ideia, de que a explicitação dos programas, planos e projetos a serem realizados pela gestão política é um poderoso instrumento para tomada de consciência do modelo de cidade, que pretendemos legar para as gerações futuras. O processo de desenvolvimento dos planos e projetos são uma oportunidade única para checar se as prioridades apontadas atendem as demandas do interesse público geral, ou estão aprisionadas por interesses particulares. Essa atitude garante ao governante e aos governados a pactuação de um modelo de cidade a ser perseguido, dando mais clareza sobre as transformações prioritárias e as de menor monta.

No texto defendo a ideia de que três eixos devem ser prioritários na cidade do metropolitana do Rio de Janeiro; a questão da moradia articulada à urbanização de favelas, a mobilidade urbana e o meio ambiente. Na figura mostrada acima, da Rede de Mobilidade da cidade metropolitana do Rio de Janeiro percebe-se alguns trechos que ainda não foram entregues a população, como o BRT da Transolímpica e a Linha 3 do metrô, que liga Itaboraí ao centro de Niterói. Obras fundamentais para a melhoria da mobilidade na cidade, uma está para ser inaugurada, enquanto a segunda ainda nem foi iniciada. Além da mobilidade menciono a questão da despoluição da Baía de Guanabara como principal eixo do meio ambiente e a articulação entre construção de novas unidades habitacionais (Programa Minha casa, Minha vida) e a requalificação das favelas.

Abaixo um trecho do texto e o link do site do IAB-RJ, onde o artigo pode ser lido na íntegra.

"A prefiguração de planos e projetos por governantes permite que os governados avaliem sua relevância, seu grau de prioridade, comparem as propostas do ponto de vista de seu custo e benefício, enfim, a sua adequação ao interesse público. A prefiguração das propostas, em suas fases iniciais da concepção e da ideia, permite ao governante aprovar uma pauta de transformações, que são de interesse geral, evitando o aprisionamento da sua gestão por grupos de pressão particulares e específicos."

http://www.iabrj.org.br/os-desafios-da-cidade-do-rio-de-janeiro

quarta-feira, 6 de janeiro de 2016

Responsabilidade Fiscal, Irresponsabilidade Social e a Questão da Habitação

Ausência de políticas públicas no setor da habitação
impulsionam processos especulativos
A pauta da mídia brasileira não muda de assunto envolvendo sempre o equilíbrio entre arrecadação e gastos públicos, a responsabilidade fiscal, enfim, as pedaladas fiscais que são panfletadas como principal motivo para o impedimento da presidente. Constantemente se faz uma analogia entre o governo e os gastos domésticos, reafirmando-se a integridade orçamentária da dona de casa, que mantém seus gastos dentro de seu orçamento, enquanto que o Estado gasta mais do que arrecada. As virtudes de uma contabilidade familiar austera são celebradas, em contraposição a despesas perdulárias e descontroladas do governo, que só pensa em aumentar sua arrecadação via aumento de impostos. Me parece, que há uma simplificação interessada nesse posicionamento recorrente.

Na verdade, não é bem assim, ou melhor historicamente não foi sempre assim, havendo um tempo relativamente recente em que os gastos públicos eram encarados como importante fator para reverter tendências inerciais do capitalismo, evitando recessões cíclicas. Durante o segundo pós guerra, as democracias ocidentais mais desenvolvidas implantaram o que se convencionou chamar de Estado de Bem Estar Social, que atuava a partir de investimentos públicos em infraestruturas e benfeitorias sociais acabando por reverter tendências cíclicas depressivas da iniciativa privada. Cabe ainda enfatizar que durante esse periodo, de 1945 a 1970, o sistema capitalista distribuiu renda e apresentou crescimento constante, sem as crises recorrentes.

Mas, segundo dados do Banco Central o endividamento das famílias no Brasil não anda assim tão austero, tendo crescido muito, comprometendo quase 46,3% da sua renda em abril de 2015, quase a metade dos recebimentos domésticos. Grande parte dessa dívida é consequência do crédito habitacional, que ao ser retirado da conta faz essa média descer para apenas 27,94%, o que demonstra de forma inequívoca que é a compra da casa própria que rompe o equilíbrio orçamentário. Tais dados nos levam para uma reflexão sobre a capacidade de regulação dos governos sobre o preço da terra urbana no Brasil e no Mundo, e o debate sobre a financeirização geral da moradia, a partir da hegemonia neo-liberal. E, aqui parece que a simplificação interessada de parte da mídia começa a ser demonstrada, pois a interconectividade entre orçamentos público e privado é cada vez maior no mundo globalizado dominado pela ideia neo-liberal.

Tal hegemonia vem sendo construída no mundo, a partir dos governos da primeira ministra britânica Margareth Thatcher em 1979, e do presidente norte americano Ronald Reagan em 1980, que iniciam o esforço de adequação da produção e da manutenção da moradia social à lógica do mercado de serviços financeiros, com o argumento de equilibrar o orçamento público. E, essa atitude ainda se mantém dominante, apesar da recorrente sucessão de crises financeiras que passam a assolar o mundo, chegando ao ápice com a crise das hipotecas subprime de 2008 nos Estado Unidos, que levou a bancarrota instituições de crédito e de seguros da nação mais poderosa economicamente, gerando uma enorme insegurança, da qual o mundo ainda não se livrou.

O fato é que tal atitude e alinhamento ideológico acaba determinando como consequência inevitável uma sobre valorização da terra urbana, que atinge até países com ampla tradição de atuação pública para regulação do preço da terra, como a Holanda ou a Inglaterra. Segundo o Bauco Nacional da Holanda "no final dos anos 1990, metade do crescimento econômico do país teria se dado em função do aumento do valor da home equity e não do crescimento real." ROLNIK 2015 página72. Na Inglaterra, entre os anos de 1981 e 2012 o número de famílias locatárias, que migrou do setor social para o privado foi de 1,9 milhão. ROLNIK 2015 página50

Há muito que economistas e especialistas advertem, que se a propriedade privada do solo fosse socializada, desapareceria a dedução do lucro representada pela renda da terra, mas o capitalismo não só continuaria existindo, mas inclusive se fortaleceria. Pois o lucro imobiliário ou financeiro quando muito incrementado rouba recursos e energias da acumulação de capital investido na produção. O "capital" imobiliário é, portanto, um falso capital SINGER 1973 página65.

Efetivamente, o capital imobiliário e o capital financeiro possuem tendências especulativas claras, podendo ser conceituados como um valor, que se valoriza, mas a origem de sua valorização pode não ser uma atividade produtiva efetiva, mas a monopolização do acesso a uma condição indispensável àquela atividade, posse da terra ou posse de moeda. Esse caráter da propriedade imobiliária ou de ativos financeiros na economia capitalista não aparece de imediato, porque eles raramente se apresentam em sua forma "pura", ou seja, como propriedade de uma extensão de solo urbano, ou como base monetária intocadas por atividades humanas.

Na verdade, o modelo de financeirização da casa própria determina uma sobre valorização do mercado da terra no mundo todo, fazendo com que somas expressivas de capitais abandonem atividades produtivas, para se dedicar a especulação. O crítico literário inglês Frederic Jameson já havia identificado, que a terra e o dinheiro haviam deixado de ser meios, para passarem a ser fins em si mesmos, na nossa sociedade contemporânea.

"A relação entre valor real e final do objeto e sua representação por uma ação perdeu toda estabilidade. Isso mostra claramente a flexibilidade absoluta dessa forma de valor, uma forma que os objetos ganharam através do dinheiro e que os separou completamente de sua base real." JAMESON 2001 página178

Me parece cada vez mais claro, que a cidadania só pode ser alcançada na medida em que for garantido o direito a todos de habitar na cidade, essa responsabilidade social não pode ser suplantada pelo controle fiscal. O cidadão quando passa a ser encarado, como um mero consumidor ou tonador de crédito dispara um processo especulativo incontrolado, que transforma o meio em um fim em si mesmo. Portanto, a questão da habitação urbana para todos é responsabilidade de toda sociedade interessada em contar com cidadãos efetivos.

BIBLIOGRAFIA:
JAMESON, Frederic - A cultura do Dinheiro, ensaios sobre a globalização especificamente o ensaio O tijolo e o Balão: arquitetura, idealismo e especulação imobiliária - Editora Vozes Petrópolis 2001
 ROLNIK, Raquel - Guerra dos Lugares: a colonização da terra e da moradia na era das finanças - Editora Boitempo São Paulo 2015
SINGER, Paul - Economia Política da Urbanização - São Paulo: Brasiliense, 1973