sexta-feira, 11 de março de 2022

Os Tratados de Arquitetura e Urbanismo do Renascimento e do Maneirismo, ou a Arquitetura e o Urbanismo: arte ou ciência

 

Capa da Tradução portuguesa do Tratado Decem Libri
de Arquitetura de Vitrúvio, tradução do latim de M.
Justino Maciel

A autora Petra Lamers-Schütze em seu livro
Teoria da Arquitetura, do Renascimento até os nossos dias lista 13 Tratados sobre a arte de construir apenas na Itália, num período que parte do fundador Tratado do De re aedificatória de Leon Battista Alberti de 1452, até o Tratado de Guarino Guarini Architeture Civile de 1737. Se, levamos em conta apenas o período de vida dos escritores, e não a data da edição das diversas publicações o período reduz significativamente, pois parte de Alberti (1404-72) e chega a Guarino Guarini (1624-83). Mas, todos fazem alguma referência ao Tratado da antiguidade clássica escrito por Marco Vitrúvio Polião, Os dez livros da Arquitetura ou na acepção consagrada pelo Renascimento, De Architectura, do século II a.C. A grande contribuição do engenheiro militar Vitrúvio, que dedica seu tratado ao Imperador Augusto é a caracterização da arquitetura pautada entre três vertentes; firmitas (firmeza), comoditas (1) ou utilitas (comodidade e utilidade) e venustas (beleza). Interessante também assinalar que Vitruvio coloca entre seus axiomas a ideia de que; "Arquitetura é ciência", "architectura est sciencia". Danielle Bardaro (1514-70), um dos tratadistas renascentistas ou maneiristas desenvolve esse argumento no seu, I dieci libri dell´architectura di M. Vitruvio numa edição de Veneza de 1570, classificando a arquitetura nas ciências matemáticas, fazendo dela uma expressão da verdade. Mas, muito além desse debate o esforço de Vitrúvio me parece por caracterizar a arquitetura como uma linguagem construtiva, estruturada por um elemento fundamental na sua existência, a coluna. Os treze tratados de arquitetura do renascimento ao maneirismo mencionados por Petra Lamers-Schültze são:

1. Leon Battista Alberti (1404-1472) - De re aedificatória libri decem - Editado no Vaticano 1442-52

2. Antonio Averlino (Filareto) (1400-1465) - Codex Machliabechianus II, I, 140 - editado em Florença 1461-64

3. Francesco do Giorgio Martini (1439-1501) - Codex Ashburnham 361 - editado em Florença 1470-90 - Codex Saluzzianus 148 - editado em Turim 1482-86, e - Codex Machliabechianus II, I, 141 - editado em Florença 1489-92

4. Anônimo - Hypnerotomachia Poliphili, O sonho de Polifilio - editado em Veneza 1499

5. Fra Giovanni Giocondo da Verona (1433-1515) - M. Vitruvius per locundumsolito castigator factus, cum figuris et tabula ut iam legi et intellegi possit - editado em Veneza 1511

6. Cesare Cesariano (1476/78- 1543) - Di Lucio Vitruvio Pollione de Architetura - editado em Como 1521

7. Sebastiano Serlio (1475- 1553/55) - Tutte l´opere d´architettura et prospectiva - editado em Veneza 1619

8. Jacono Barozi da Vignola (1507-1573) - Regola delli cinque ordini d´architettura - editado em Roma 1562

9. Pietro Cataneo (1510 - 1571) - I quattro libri di Architettura - editado em Veneza 1554

10. Daniele Barbaro (1514-1570) - I dieci libri dell´architettura universale - editado em Veneza 1615

11. Andrea Palladio (1508 - 1580) - I quatro libri dell´architettura - editado em Veneza 1570

12. Vicenzo Scamozzi (1548-1616) - L´idea della architettura universale - editado em Veneza 1615

13. Guarino Guarini (1624 - 1683) - Disegni di architetura civile ed ecclesiastica - editado em Turim 1686 - Architetture civile 2 volumes - editado em Turim 1737

As chaves classificatórias do Tratado de Vitrúvio são muitas, mas todas pretendem reduzir o ato construtivo a uma língua manipulada pelos seres humanos na ordenação e constituição dos seus espaços construído. Vitruvio inaugura, ou melhor explicita a profunda dependência do ofício da arquitetura e do urbanismo ao poder; imperadores, reis, papas, patronato, etc precisam ser convencidos da justeza do construir. E, muitas vezes serem seduzidos, que essa adequação precisa ser cultivada pelo poder, fazendo uma demonstração de suas intenções cultas, justas e sofisticadas sem ostentação. Apesar dessa doutrinação com claros pressupostos civilizatórios, a arquitetura e o urbanismo demonstram em sua fundação, nesses posicionamentos, um claro vínculo com o poder instituído. Giulio Carlo Argan, o crítico de arte e arquitetura, que foi também prefeito de Roma destacava nos seus comentários do tratado dos Decem Libri;

“... distingue os tipos dos edifícios com relação as suas funções práticas e representativas; descreve até mesmo a figura moral e profissional do arquiteto, cuja a função é considerada essencial à estrutura do Estado. Demasiado romano para desaprovar a tradição pátria, reduz a “ordem” também a arquitetura etrusca, toscana, confirmando, assim, sua intenção de inserir a experiência estética grega na praxe construtiva etrusca e romana. Como gramático e filólogo, Vitrúvio deduz da viva linguagem da arquitetura grega uma morfologia e uma sintaxe, mas, exatamente porque as formas gregas se tornam uma espécie de léxico, podem adaptar-se a uma arquitetura que deseja ser sobretudo discurso, desenvolvimento articulado de elementos representativos e funcionais no contexto de uma cidade.” ARGAN 2003

Mas, o que cabe aqui também destacar é que, a revisitação promovida pelos humanistas do texto fundador de Vitrúvio aproxima e institucionaliza a teoria da Arquitetura da teoria da Arte, transformando-a de arte mecânica em arte liberal, destacando-a dos procedimentos das corporações de ofício medievais. Nesse sentido, a emblemática obra da Cúpula de Santa Maria del Fiori, na cidade de Florença, projetada e executada por Filippo Brunelleschi, e sobre a qual nunca escreveu uma linha de texto, mas que foi tema de uma pleiade de pensadores e críticos que o sucederam, demonstra-nos o potencial legitimador da reflexão textual no campo do espaço construído. A independência da proposição de Brunelleschi, com relação as determinações das corporações de ofício da construção é sublinhada pela articulação das duas cúpulas; uma interna, com dois metros de espessura, baseada nas formas de amarrar os tijolos das abóbadas persas, e outra externa, com oitenta centímetros de espessura, com clara inspiração nas abóbadas nervuradas da arquitetura gótica. Ambas articuladas, promoveram a realização da obra sem que fossem necessárias escoras e cimbramentos, que pré apoiariam a materialidade, antes de sua consolidação como corpo íntegro. Essa atitude nos mostram a emergência de um profissional que elege o desenho, proporções, materialidade e processos construtivos a partir da sua avaliação e juízo, e dita isso para o canteiro de obras, como um cientista isolado. Volta-se para o tema já mencionado de Bardaro, que vincula arquitetura à ciência e à verdade no exercício do plano ou do projeto, como ações intermediada pelas tecnologias, pelas artes, mas também pelas antropologias e sociologias do comportamento humano. O vínculo entre plano, projeto e procedimentos científicos não advém do isolamento e personificação da solução, como no caso de Brunelleschi, afinal é perfeitamente possível realizar, arte e ciência de forma coletiva. Mas, o vínculo com uma forma de proceder que pretende se antecipar e portanto prever e controlar os desenvolvimentos futuros das obras e da cidade, dirigindo-as no sentido do "Bem Viver". O que já foi destacado, na atitude de Brunelleschi é a sua subversão dos procedimentos instituídos para a construção de cúpulas, se arriscando numa nova forma de fazer, que avalia o contexto, os recursos disponíveis e o resultado a ser alcançado, num procedimento próximo ao científico.

" Se aceitarmos a tese de que o objeto arquitetônico é o mediador das relações sociais, além de ser uma totalidade de fruição, uso e construção, muitas perguntas teremos de fazer sobre o tempo e o mundo em que vivemos, para criarmos os seus objetos de mediação.[...] A sociedade da informação é algo que começamos a viver e que precisamos entender. Não sabemos como ela se espacializa, se é que ela se espacializa. A arquitetura não sabe mais o que ela vai mediar, pois ainda não criamos as formas que podem mediar as relações virtuais, se é que elas podem ser criadas. Não sabemos, ainda, quais são as espacializações da sociedade da informação, quais são os novos programas, se é que eles são realmente novos. O problema não está sequer formulado; portanto não pode ser resolvido." MALARD 2013 página260

O que nos coloca diante do vínculo da imagem arquitetônica aos procedimentos, processos e costumes de fruição, uso e construção da nossa sociedade contemporânea, baseada nas tecnologias de informação e comunicação (TICs). Mas, também nos revela num paradoxo, uma permanência dos desafios da arquitetura e da cidade com relação a um tempo de cinco séculos atrás, quando a totalidade de fruição, uso e construção delimitam nosso ofício, e deveriam sintetizar espacialmente nosso modo de ser. Os tratados renascentistas são uma antecipação do desenvolvimento teórico que a arquitetura e urbanismo demandam, não só dos profissionais, mas da sociedade como um todo. Num ofício marcado pela construção do espaço humano, que envolve a interação  intra humana, mas também com a natureza e o planeta. Nessas artes ou ciências se desenvolve uma interessante interação entre o construir do mundo humano, e a própria humanização do mesmo ser, como um ente dependente de sua coletividade, que nessa dependência engendra a superação das suas determinações naturais, pelo menos de forma parcial. A ideia de vínculo entre o "Bem Viver" individual e coletivo estão condicionados e se impulsionam mutuamente, gerando uma sinergia que precisa cuidar tanto do interesse público, quanto da comodidade individual, que quando se desenvolvem de forma conjunta nos demonstram a felicidade.

NOTAS:

(1) Alguns autores como BRANDÃO 2016, apontam a inserção do termo comoditas na tríade vitruviana ao tratado de Alberti, apontando que Vitruvio apontava apenas o termo utilitas

BIBLIOGRAFIA:

ARGAN, Giulio Carlo – História da Arte Italiana; da antiguidade a Duccio vol.1 - Editora Cosac & Naif São Paulo 2003

BRANDÃO, Carlos Antônio Leite - Arquitetura, Humanismo e República; a atualidade do De re aedificatoria - Editora UFMG Belo Horizonte 2016

BRANDÃO, Carlos Antônio Leite (org.) - Na gênese das racionalidades modernas; em torno de Leon Battista Alberti - , MALARD, Maria Lucia - Projeto Arquitetônico e Pensamento Científico - Editora UFMG Belo Horizonte 2013

LAMERS-SCHÜTZE, Petra - Teoria da Arquitetura, do Renascimento até os nossos dias - Editora Taschen Tóquio 2003

MACIEL, M. Justino - Tratado de Arquitetura de Vitrúvio - Editôra 1st Press Lisboa 2006

sábado, 5 de março de 2022

A arquitetura do Império Romano

Mapa da Pax Romana

Seguindo a sequência histórica da disciplina de Teoria e História da Arquitetura 1 (THArq1) da Escola de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal Fluminense (EAU-UFF), da qual sou professor, chegamos ao Império Romano e sua arquitetura, urbanismo e sua gestão do território. Uma das civilizações que demonstrou um enorme apuro no esforço construtivo, e articulou um território imenso, o Império Romano, que ia da península Ibérica até a borda da Índia, a partir de obras como estradas, aquedutos, pontes e fortificações. As origens da cultura de Roma são muito antigas, sua fundação remonta a 756 a.C., e os registros da cidade antecedem ao Império Grego no mar Mediterrâneo e nos apresentam uma certa disponibilidade inicial de interação franca com as mais diversas culturas. Os etruscos, que dominaram a região da antiga Roma a partir de 616 a.C. sentiam profunda afinidade pelas manifestações da Grécia Antiga, que dominava o sul da península itálica, com vários entrepostos coloniais. Ao norte estavam os povos bárbaros, gauleses e normandos, que dominavam a região, a partir do vale do Rio Pó, a partir dessa diversidade de culturas, que se constituirá o imenso império, que se estabiliza na República Romana, a partir de 416 a.C.. Amplo período, que na verdade foram identificados por alguns historiadores como a Pax Romana, desde 27 a.C. a 180 d.C., que constroe a coesão de um território imenso, que no limite ocidental envolve os atuais países da Inglaterra, Espanha e Portugal, passando pelo norte da África, Egito, Oriente Próximo, e chegando aos atuais Irã e Iraque. Na verdade, o Mar Mediterrâneo, aquilo que os romanos chamavam de "Mare Nostrum" era a grande coesão dessa imensa região, que articulada por estradas, pontes e cidades, constituíram uma rede coesa de impostos e taxações, que fizeram a fortuna da cidade de Roma. Como em todo império, existia a força coercitiva das legiões romanas, às opressões e revoltas dos diferenciados povos escravizados, mas também houve a disseminação de uma cultura e de uma arte singular e pragmática. 

“A Itália antiga não tinha unidade étnica nem cultural: era um mosaico de povos diversos pela origem, pelas tradições, pelos costumes e pela língua. Ao norte do Pó, já era a terra dos bárbaros, gauleses e germanos; o sul era um pedaço da Grécia. A única cultura autóctone, ainda que fortemente influenciada pela arte grega, era a etrusca, nas regiões centrais. Mesmo, a cultura romana, que acabara por dominar toda a península, tem suas raízes na grega, mas a combina, em seu desenvolvimento histórico, com a tradição etrusca e a renova, acolhendo grandemente as infiltrações bárbaras.” ARGAN, 2003

Nesse contexto, de forte referência a cultura grega, toda a arte de Roma reproduz as ordens presentes em suas colunas, em seus capitéis, a sistematização dessas ordens é realizada por um tratado, Os dez livros da Arquitetura, ou simplesmente De Arquitetura, de um arquiteto-engenheiro militar Marcos Vitrúvio Polião, que viveu no século I a.C. O tratado é dedicado ao imperador Augusto, e inaugura a tradição da arquitetura de vinculação com o poder, com o patronato, o papado, devido ao imenso dispêndio de recursos que a arte de construir envolve.  Vitrúvio, no único tratado que nos chegou graças a Idade Média, será o formulador da classificação da linguagem clássica da arquitetura grega, com a presença de apenas uma coluna originária da península itálica, a Toscana. Na verdade uma derivação da mais sóbria das colunas gregas, a Dórica, que parece nos mostrar o espírito prático da civilização de Roma, que objetiva e sintetiza seu decoro, se desfazendo até das caneluras.

 “Construído sobre um alto pedestal, com colunas maciças e baixas, o templo etrusco evocava longinquamente as formas de um templo dórico; mas era mais largo do que longo e dividido em duas partes, das quais a anterior era aberta e de pórticos, enquanto a outra continha uma cela tríplice. As colunas ‘toscanas’ não tinham caneluras e o capitel era constituído por um anel equino fortemente comprimido.” ARGAN 2003 página 163


Mas o elemento síntese da arquitetura romana, não é mais a coluna, mas o Arco, uma arquitrave em arco pleno no qual o centro do raio corresponde ao meio do inter-colúnio ou do vão a ser vencido, a chave ou fechamento, é a pedra ou o tijolo colocada no vértice que confere toda a estabilidade a estrutura. Uma composição estrutural, que trabalha a partir dos conceitos de encaixe de posição e reciprocidade mútua, que desembocará como uma linguagem em outros elementos mais complexos, tais como; abóbodas, abóbadas de berço, abóbodas cruzadas. Manipulados primeiro pelos etruscos e depois pelos romanos, farão a fortuna da sua arquitetura, configurando espacialidades como naves centrais, laterais, absides, etc..., que disponibilizam a solução da curva, libertando-nos da mera reta. As imensas possibilidades oferecidas por esse elemento, o Arco, e suas infinitas combinações oferecerá a arquitetura, as infra estruturas, as estradas uma rede construtiva de criatividade.

“Nos muros e nas portas urbanas revela-se o gênio construtivo dos etruscos, mestres no entalhar e no compor encaixes a macia pedra local; sobre o princípio do encaixe e da recíproca sustentação dos blocos funda-se o sistema da cobertura em arco e abóboda que constitui, na ordem da técnica construtiva, o caráter notável da arquitetura etrusca e tornar-se-á, também na ordem estética, o tema base da arquitetura romana.” ARGAN 2003 página163

O Coliseu de Roma

A intencionalidade, a proporção entre elementos e uma representação da organização das instituições humanas se desenvolvem, sem deixar de ter uma certa monumentalidade dominadora, que assinala a centralidade de Roma, a cidade eterna. Ritos, mitos e racionalidade se fundem na expressão de uma civilidade com hábitos particulares, que constituem-se em edificações concretas como; o Arco Triunfal, o Fórum, a Basílica, as Termas, o Anfiteatro, os Aquedutos, as Estradas, as Pontes. O edificar, a base física e material da sociedade; a cidade, seus confortos, suas infra estruturas passam também a espelhar a civilidade ou a cidadania do homem, como construções mútuas e retro alimentadas. As construções públicas expressam e concentram uma série de práticas e hábitos, que espelham um Bem Viver,a cidade romana garante o acesso a confortos, comodidades e asseamentos higiênicos jamais pensados. A urbs e a civitá, construções e comportamentos humanos parecem estar interligados numa didática mútua, num desenvolvimento compartilhado e interdependente. A construção da personalidade do cidadão é impulsionada, dependente e mutuamente interligada com a estrutura física do espaço construído pelo mesmo cidadão, como numa rua de mão dupla, não só na cidade mas no território que vivencia. A grande cidade, a fuga para os idílios das Villas do interior, as obras de infra estrutura, tais como; aquedutos, pontes e estradas, a compreensão do território vivenciado conformam uma consciência particular e única na história da humanidade.

"O texto do arquiteto e engenheiro Marco Vitrúvio Polião, ou só Vitrúvio foi escrito no século I a.C., e foi redescoberto pelo Renascimento no século XVI. Um texto seminal da Antiguidade Clássica, pode ser considerado como o texto fundador de um entendimento moderno da arquitetura, da construção e da cidade. “Em meados do século XVI o rei Dom João III, consciente da importância do tratado de Vitruvio para a renovação da cultura portuguesa da construção, encomendou a sua tradução ao célebre matemático Pedro Nunes... Segundo Vitrúvio, a arquitetura nasce da fabrica e da ratiocinatio. A primeira consiste na experiência que o arquiteto vai adquirindo com o acto de construir. A segunda é a teoria que se vai constituindo como resultado da prática.”  MACIEL 2006 páginas 7

As Termas de Caracala, a "commoditas" romana

A arquitetura nasce portanto da manipulação mecânica de uma materialidade concreta e específica que se articula numa espacialidade, que demanda uma intencionalidade antecipadora alcançada pela racionalidade humana. Uma síntese complexa entre artes mecânicas e artes liberais, ainda não conscientemente explicitada pela antiguidade clássica, mas já implicitamente presente, e, que será alcançada apenas no Renascimento italiano. O Tratado de Vitrúvio é representativo desse espírito, aonde a boa cidade, o bem viver, a vida com o diálogo, se somam no sentido de humanizar o homem torná-lo civilizado e disponível para a vida pública, que mira o interesse de todos. A Grécia no espaço da Ágora mostra-nos como o diálogo, o discurso convincente e argumentativo persuade a comunidade, Roma terá o Fórum, a Basílica como espaço da construção também do diálogo e da justiça, que passa a ser proclamada por uma lógica da impessoalidade. Apesar do militarismo romano, que perpassa a história de todo o Império, as legiões, que voltando de campanhas vitoriosas, volta e meia usurpam o poder civil, Roma terá na justiça a representação de um código escrito consolidado que regula a atuação das pessoas. São um exemplo dessa mentalidade, os escritos do Cônsul Marco Túlio Cícero (106a.C. - 43a.C.), redescobertos por Francisco Petrarca (1304-1374) no pré renascimento italiano nos mostram a constituição do interesse comum, a res publica. Também o tratado de Vitrúvio nos mostra, o que significa edificar uma linguagem clássica, profundamente vinculado aos gregos, mas também a commoditas (utilidade e comodidade) romana, que procura desvendar a eleição da materialidade, dos procedimentos construtivos, da escolha do lugar, da adequação da edificação ao seu contexto, etc.

“Dependente, pelo menos em parte, de fontes gregas, demonstra, como se quisesse traduzir, a grande lição clássica em uma série de regras quase gramaticais, aplicáveis a todo tipo de discurso construtivo e a todas as exigências ditadas pelo sentido prático, pela commoditas romana. Vitrúvio enquadra a arquitetura em toda a problemática técnica e urbanística, que vai da escolha e da elaboração dos materiais aos procedimentos construtivos, à escolha do lugar, à adaptação do edifício ao terreno, à paisagem e à decoração... distingue os tipos dos edifícios com relação as suas funções práticas e representativas; descreve até mesmo a figura moral e profissional do arquiteto, cuja a função é considerada essencial à estrutura do Estado. Demasiado romano para desaprovar a tradição pátria, reduz a “ordem” também a arquitetura etrusca, toscana, confirmando, assim, sua intenção de inserir a experiência estética grega na praxe construtiva etrusca e romana. Como gramático e filólogo, Vitrúvio deduz da viva linguagem da arquitetura grega uma morfologia e uma sintaxe, mas, exatamente porque as formas gregas se tornam uma espécie de léxico, podem adaptar-se a uma arquitetura que deseja ser sobretudo discurso, desenvolvimento articulado de elementos representativos e funcionais no contexto de uma cidade.” ARGAN 2003 página

A Basílica de Constantino

A ânsia pragmática de Roma se expressa na sanha classificatória de Vitrúvio, que se manifesta também na ordenação das funções edilícias, e na sua disposição no território, ou inserção urbana, que lançam um conceito fundamental para a estruturação projetual, a ideia de "Tipo". O planejamento e a projetação entenderá o conceito de "Tipo", como algo diferenciado do "Modelo", que portanto seria uma ordenação esquemática que sintetizaria a distribuição arquitetônica no contexto, no terreno, no lugar mostrando-nos constâncias históricas do construir humano. Como, uma gênese da forma, um processo de esquematização das proporções entre espaço edificado e não edificado; a casa em torno de um pátio, a torre, a evolução do Templo Paleo-cristão a partir da Basílica Romana, e outros. A lógica do Tipo envolve também diversas escalas e interrelações numa relação de proporção esquemática que envolve a função prática e contemplativa da edificação, o construído e o não construído, como formas em interação dialética, que se constituem mutuamente. A metodologia do "Tipo" só será plenamente sistematizada pelos arquitetos do Iluminismo, mas ela já se apresenta de forma implícita no Tratado de Arquitetura, os Dez Livros de Vitrúvio.

“Diversamente do cânon grego, que consiste em um sistema de relações ou proporções ideais, o tipo é um esquema de distribuição de espaços e partes em relação à função prática ou representativa do edifício. O tipo, mesmo conservando o esquema, permite as mais amplas possibilidades de variantes na determinação formal e na decoração.” ARGAN 2003, página

O cotidiano de uma cidade nova
do Império Romano

Enfim, uma forma de pensar que transita entre as várias escalas do pensamento construtivo, desde a concepção geral e abrangente da disposição edificatória até o detalhe do decoro, pensando-os como uma unidade inseparável e coesa. A partir dessas reflexões fornecidas pelo Tratado de Vitrúvio e as leituras de Giulio Carlo Argan sobre esse texto fundador, a aula procurou apresentar numa ordem classificatória os esforços da Arquitetura Romana. Entendendo cada um desses temas como inseridos num determinado contexto pré-existente, que desvendava e explicava a obra: os Arcos Triunfais, os Templos, os Anfiteatros, a Basílica, o Circo Máximo, as Residências e a Insulae de Roma, as Grandes Construções como Aquedutos e Pontes. Até chegar a uma fictícia Cidade Romana de colonização do território, que na Europa se apresenta em grande número e em grande variedade de ocorrências, tais como; Paris (Lutécia), Londres (Londum), Barcelona (Barce), e outras. Na verdade, esta referência a uma cidade nova de colonização romana foi retirada do livro de David Macaulay, que tem como título; Construção de uma Cidade Romana. Ele nos mostra que a configuração da cidade é um elemento central no processo de colonização, dominação, controle e doutrinação da cultura de Roma frente aos diferentes contextos nos quais se insere. A cidade é um elemento fundamental na articulação do imenso território do Império de Roma, marcando o lugar e mostrando nas suas especificidades o módus vivendi dessa cultura

BIBLIOGRAFIA:

ARGAN, Giulio Carlo – História da Arte Italiana – da antiguidade a Duccio vol.1 - Cosac & Naif São Paulo 2003
MACAULAY, David - Construção de uma Cidade Romana - Editora Martins Fontes São Paulo 1989
MACIEL, Justino – Tratado de Arquitetura, Decem Libri – Editora Universitária, Lisboa 2006