sábado, 5 de março de 2022

A arquitetura do Império Romano

Mapa da Pax Romana

Seguindo a sequência histórica da disciplina de Teoria e História da Arquitetura 1 (THArq1) da Escola de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal Fluminense (EAU-UFF), da qual sou professor, chegamos ao Império Romano e sua arquitetura, urbanismo e sua gestão do território. Uma das civilizações que demonstrou um enorme apuro no esforço construtivo, e articulou um território imenso, o Império Romano, que ia da península Ibérica até a borda da Índia, a partir de obras como estradas, aquedutos, pontes e fortificações. As origens da cultura de Roma são muito antigas, sua fundação remonta a 756 a.C., e os registros da cidade antecedem ao Império Grego no mar Mediterrâneo e nos apresentam uma certa disponibilidade inicial de interação franca com as mais diversas culturas. Os etruscos, que dominaram a região da antiga Roma a partir de 616 a.C. sentiam profunda afinidade pelas manifestações da Grécia Antiga, que dominava o sul da península itálica, com vários entrepostos coloniais. Ao norte estavam os povos bárbaros, gauleses e normandos, que dominavam a região, a partir do vale do Rio Pó, a partir dessa diversidade de culturas, que se constituirá o imenso império, que se estabiliza na República Romana, a partir de 416 a.C.. Amplo período, que na verdade foram identificados por alguns historiadores como a Pax Romana, desde 27 a.C. a 180 d.C., que constroe a coesão de um território imenso, que no limite ocidental envolve os atuais países da Inglaterra, Espanha e Portugal, passando pelo norte da África, Egito, Oriente Próximo, e chegando aos atuais Irã e Iraque. Na verdade, o Mar Mediterrâneo, aquilo que os romanos chamavam de "Mare Nostrum" era a grande coesão dessa imensa região, que articulada por estradas, pontes e cidades, constituíram uma rede coesa de impostos e taxações, que fizeram a fortuna da cidade de Roma. Como em todo império, existia a força coercitiva das legiões romanas, às opressões e revoltas dos diferenciados povos escravizados, mas também houve a disseminação de uma cultura e de uma arte singular e pragmática. 

“A Itália antiga não tinha unidade étnica nem cultural: era um mosaico de povos diversos pela origem, pelas tradições, pelos costumes e pela língua. Ao norte do Pó, já era a terra dos bárbaros, gauleses e germanos; o sul era um pedaço da Grécia. A única cultura autóctone, ainda que fortemente influenciada pela arte grega, era a etrusca, nas regiões centrais. Mesmo, a cultura romana, que acabara por dominar toda a península, tem suas raízes na grega, mas a combina, em seu desenvolvimento histórico, com a tradição etrusca e a renova, acolhendo grandemente as infiltrações bárbaras.” ARGAN, 2003

Nesse contexto, de forte referência a cultura grega, toda a arte de Roma reproduz as ordens presentes em suas colunas, em seus capitéis, a sistematização dessas ordens é realizada por um tratado, Os dez livros da Arquitetura, ou simplesmente De Arquitetura, de um arquiteto-engenheiro militar Marcos Vitrúvio Polião, que viveu no século I a.C. O tratado é dedicado ao imperador Augusto, e inaugura a tradição da arquitetura de vinculação com o poder, com o patronato, o papado, devido ao imenso dispêndio de recursos que a arte de construir envolve.  Vitrúvio, no único tratado que nos chegou graças a Idade Média, será o formulador da classificação da linguagem clássica da arquitetura grega, com a presença de apenas uma coluna originária da península itálica, a Toscana. Na verdade uma derivação da mais sóbria das colunas gregas, a Dórica, que parece nos mostrar o espírito prático da civilização de Roma, que objetiva e sintetiza seu decoro, se desfazendo até das caneluras.

 “Construído sobre um alto pedestal, com colunas maciças e baixas, o templo etrusco evocava longinquamente as formas de um templo dórico; mas era mais largo do que longo e dividido em duas partes, das quais a anterior era aberta e de pórticos, enquanto a outra continha uma cela tríplice. As colunas ‘toscanas’ não tinham caneluras e o capitel era constituído por um anel equino fortemente comprimido.” ARGAN 2003 página 163


Mas o elemento síntese da arquitetura romana, não é mais a coluna, mas o Arco, uma arquitrave em arco pleno no qual o centro do raio corresponde ao meio do inter-colúnio ou do vão a ser vencido, a chave ou fechamento, é a pedra ou o tijolo colocada no vértice que confere toda a estabilidade a estrutura. Uma composição estrutural, que trabalha a partir dos conceitos de encaixe de posição e reciprocidade mútua, que desembocará como uma linguagem em outros elementos mais complexos, tais como; abóbodas, abóbadas de berço, abóbodas cruzadas. Manipulados primeiro pelos etruscos e depois pelos romanos, farão a fortuna da sua arquitetura, configurando espacialidades como naves centrais, laterais, absides, etc..., que disponibilizam a solução da curva, libertando-nos da mera reta. As imensas possibilidades oferecidas por esse elemento, o Arco, e suas infinitas combinações oferecerá a arquitetura, as infra estruturas, as estradas uma rede construtiva de criatividade.

“Nos muros e nas portas urbanas revela-se o gênio construtivo dos etruscos, mestres no entalhar e no compor encaixes a macia pedra local; sobre o princípio do encaixe e da recíproca sustentação dos blocos funda-se o sistema da cobertura em arco e abóboda que constitui, na ordem da técnica construtiva, o caráter notável da arquitetura etrusca e tornar-se-á, também na ordem estética, o tema base da arquitetura romana.” ARGAN 2003 página163

O Coliseu de Roma

A intencionalidade, a proporção entre elementos e uma representação da organização das instituições humanas se desenvolvem, sem deixar de ter uma certa monumentalidade dominadora, que assinala a centralidade de Roma, a cidade eterna. Ritos, mitos e racionalidade se fundem na expressão de uma civilidade com hábitos particulares, que constituem-se em edificações concretas como; o Arco Triunfal, o Fórum, a Basílica, as Termas, o Anfiteatro, os Aquedutos, as Estradas, as Pontes. O edificar, a base física e material da sociedade; a cidade, seus confortos, suas infra estruturas passam também a espelhar a civilidade ou a cidadania do homem, como construções mútuas e retro alimentadas. As construções públicas expressam e concentram uma série de práticas e hábitos, que espelham um Bem Viver,a cidade romana garante o acesso a confortos, comodidades e asseamentos higiênicos jamais pensados. A urbs e a civitá, construções e comportamentos humanos parecem estar interligados numa didática mútua, num desenvolvimento compartilhado e interdependente. A construção da personalidade do cidadão é impulsionada, dependente e mutuamente interligada com a estrutura física do espaço construído pelo mesmo cidadão, como numa rua de mão dupla, não só na cidade mas no território que vivencia. A grande cidade, a fuga para os idílios das Villas do interior, as obras de infra estrutura, tais como; aquedutos, pontes e estradas, a compreensão do território vivenciado conformam uma consciência particular e única na história da humanidade.

"O texto do arquiteto e engenheiro Marco Vitrúvio Polião, ou só Vitrúvio foi escrito no século I a.C., e foi redescoberto pelo Renascimento no século XVI. Um texto seminal da Antiguidade Clássica, pode ser considerado como o texto fundador de um entendimento moderno da arquitetura, da construção e da cidade. “Em meados do século XVI o rei Dom João III, consciente da importância do tratado de Vitruvio para a renovação da cultura portuguesa da construção, encomendou a sua tradução ao célebre matemático Pedro Nunes... Segundo Vitrúvio, a arquitetura nasce da fabrica e da ratiocinatio. A primeira consiste na experiência que o arquiteto vai adquirindo com o acto de construir. A segunda é a teoria que se vai constituindo como resultado da prática.”  MACIEL 2006 páginas 7

As Termas de Caracala, a "commoditas" romana

A arquitetura nasce portanto da manipulação mecânica de uma materialidade concreta e específica que se articula numa espacialidade, que demanda uma intencionalidade antecipadora alcançada pela racionalidade humana. Uma síntese complexa entre artes mecânicas e artes liberais, ainda não conscientemente explicitada pela antiguidade clássica, mas já implicitamente presente, e, que será alcançada apenas no Renascimento italiano. O Tratado de Vitrúvio é representativo desse espírito, aonde a boa cidade, o bem viver, a vida com o diálogo, se somam no sentido de humanizar o homem torná-lo civilizado e disponível para a vida pública, que mira o interesse de todos. A Grécia no espaço da Ágora mostra-nos como o diálogo, o discurso convincente e argumentativo persuade a comunidade, Roma terá o Fórum, a Basílica como espaço da construção também do diálogo e da justiça, que passa a ser proclamada por uma lógica da impessoalidade. Apesar do militarismo romano, que perpassa a história de todo o Império, as legiões, que voltando de campanhas vitoriosas, volta e meia usurpam o poder civil, Roma terá na justiça a representação de um código escrito consolidado que regula a atuação das pessoas. São um exemplo dessa mentalidade, os escritos do Cônsul Marco Túlio Cícero (106a.C. - 43a.C.), redescobertos por Francisco Petrarca (1304-1374) no pré renascimento italiano nos mostram a constituição do interesse comum, a res publica. Também o tratado de Vitrúvio nos mostra, o que significa edificar uma linguagem clássica, profundamente vinculado aos gregos, mas também a commoditas (utilidade e comodidade) romana, que procura desvendar a eleição da materialidade, dos procedimentos construtivos, da escolha do lugar, da adequação da edificação ao seu contexto, etc.

“Dependente, pelo menos em parte, de fontes gregas, demonstra, como se quisesse traduzir, a grande lição clássica em uma série de regras quase gramaticais, aplicáveis a todo tipo de discurso construtivo e a todas as exigências ditadas pelo sentido prático, pela commoditas romana. Vitrúvio enquadra a arquitetura em toda a problemática técnica e urbanística, que vai da escolha e da elaboração dos materiais aos procedimentos construtivos, à escolha do lugar, à adaptação do edifício ao terreno, à paisagem e à decoração... distingue os tipos dos edifícios com relação as suas funções práticas e representativas; descreve até mesmo a figura moral e profissional do arquiteto, cuja a função é considerada essencial à estrutura do Estado. Demasiado romano para desaprovar a tradição pátria, reduz a “ordem” também a arquitetura etrusca, toscana, confirmando, assim, sua intenção de inserir a experiência estética grega na praxe construtiva etrusca e romana. Como gramático e filólogo, Vitrúvio deduz da viva linguagem da arquitetura grega uma morfologia e uma sintaxe, mas, exatamente porque as formas gregas se tornam uma espécie de léxico, podem adaptar-se a uma arquitetura que deseja ser sobretudo discurso, desenvolvimento articulado de elementos representativos e funcionais no contexto de uma cidade.” ARGAN 2003 página

A Basílica de Constantino

A ânsia pragmática de Roma se expressa na sanha classificatória de Vitrúvio, que se manifesta também na ordenação das funções edilícias, e na sua disposição no território, ou inserção urbana, que lançam um conceito fundamental para a estruturação projetual, a ideia de "Tipo". O planejamento e a projetação entenderá o conceito de "Tipo", como algo diferenciado do "Modelo", que portanto seria uma ordenação esquemática que sintetizaria a distribuição arquitetônica no contexto, no terreno, no lugar mostrando-nos constâncias históricas do construir humano. Como, uma gênese da forma, um processo de esquematização das proporções entre espaço edificado e não edificado; a casa em torno de um pátio, a torre, a evolução do Templo Paleo-cristão a partir da Basílica Romana, e outros. A lógica do Tipo envolve também diversas escalas e interrelações numa relação de proporção esquemática que envolve a função prática e contemplativa da edificação, o construído e o não construído, como formas em interação dialética, que se constituem mutuamente. A metodologia do "Tipo" só será plenamente sistematizada pelos arquitetos do Iluminismo, mas ela já se apresenta de forma implícita no Tratado de Arquitetura, os Dez Livros de Vitrúvio.

“Diversamente do cânon grego, que consiste em um sistema de relações ou proporções ideais, o tipo é um esquema de distribuição de espaços e partes em relação à função prática ou representativa do edifício. O tipo, mesmo conservando o esquema, permite as mais amplas possibilidades de variantes na determinação formal e na decoração.” ARGAN 2003, página

O cotidiano de uma cidade nova
do Império Romano

Enfim, uma forma de pensar que transita entre as várias escalas do pensamento construtivo, desde a concepção geral e abrangente da disposição edificatória até o detalhe do decoro, pensando-os como uma unidade inseparável e coesa. A partir dessas reflexões fornecidas pelo Tratado de Vitrúvio e as leituras de Giulio Carlo Argan sobre esse texto fundador, a aula procurou apresentar numa ordem classificatória os esforços da Arquitetura Romana. Entendendo cada um desses temas como inseridos num determinado contexto pré-existente, que desvendava e explicava a obra: os Arcos Triunfais, os Templos, os Anfiteatros, a Basílica, o Circo Máximo, as Residências e a Insulae de Roma, as Grandes Construções como Aquedutos e Pontes. Até chegar a uma fictícia Cidade Romana de colonização do território, que na Europa se apresenta em grande número e em grande variedade de ocorrências, tais como; Paris (Lutécia), Londres (Londum), Barcelona (Barce), e outras. Na verdade, esta referência a uma cidade nova de colonização romana foi retirada do livro de David Macaulay, que tem como título; Construção de uma Cidade Romana. Ele nos mostra que a configuração da cidade é um elemento central no processo de colonização, dominação, controle e doutrinação da cultura de Roma frente aos diferentes contextos nos quais se insere. A cidade é um elemento fundamental na articulação do imenso território do Império de Roma, marcando o lugar e mostrando nas suas especificidades o módus vivendi dessa cultura

BIBLIOGRAFIA:

ARGAN, Giulio Carlo – História da Arte Italiana – da antiguidade a Duccio vol.1 - Cosac & Naif São Paulo 2003
MACAULAY, David - Construção de uma Cidade Romana - Editora Martins Fontes São Paulo 1989
MACIEL, Justino – Tratado de Arquitetura, Decem Libri – Editora Universitária, Lisboa 2006