sábado, 28 de maio de 2016

O livro sobre o arquiteto Carlos Leão

Na última terça feira dia, dia 24 de maio de 2016 foi lançado o livro sobre o arquiteto Carlos Leão (1906-1983) com produção de Claudia Pinheiro, Maria Helena Rohe Salomon e do historiador Roberto Conduru. O livro teve uma longa maturação, pois era um projeto antigo da década de oitenta do arquiteto Jorge Cjajkowski, já falecido. De forma enviesada participei do nascimento do projeto, pois Jorge Cjajkowski, que me conheceu na FAU-UFRJ, entre o final dos setenta e começo dos oitenta, como meu professor, identificou um parentesco distante com Carlos Leão, que era na verdade primo da minha avó. Fiquei então responsável por agendar com Tia Ruth, uma entrevista com Carlos Leão, o Caloca em sua casa em Ipanema. O casal então passava a maior parte do tempo na cidade de Vassouras, num sítio desenhado pelo arquiteto. Nessa ocasião, ainda me lembro de Carlos Leão me pedir para acender um cigarro, que ele gostaria de dar umas tragadas, que já não eram mais permitidas por Ruth, dado ao seu estado de saúde. A entrevista foi uma amostra da personalidade boêmia e sensível de um artista culto, irreverente e provocador, que nos apresentou sua visão da cultura arquitetônica da sua geração.

De uma maneira geral, a parte da obra de Carlos Leão mais conhecida é a de desenhador de mulheres nuas, além de como arquiteto ter participado da equipe que elaborou o emblemático edifício do Ministério da Educação e Saúde (MES), chefiada por Lucio Costa, a partir de uns esboços imprecisos de Le Corbusier. Na casa de minha mãe em Belo Horizonte ainda está pendurado na parede da nossa sala, um retrato de uma bela mulher, algo voluptuosa, definida apenas por um traço minimalista, elegante e seguro de Caloca.

Ainda me lembro, que o crítico de arquitetura Jorge Cjajkowski tinha estruturado um plano para o livro, que pretendia lançar uma luz sobre um dos representantes da primeira geração modernista brasileira, que se envolvera em sua trajetória arquitetônica, principalmente nas demandas domésticas com casas que se afastavam do racionalismo corbusieano e tendiam para uma atitude romântica, próximo de um nativismo da arquitetura colonial brasileira. Esse conjunto de obras longe da ortodoxia racionalista e modernista, com uma feição mais tradicional era o que mais incitava a Czaikowski a produzir uma reflexão sobre Carlos Leão.

"Até recentemente a avaliação crítica desse conjunto esbarrava num problema de difícil superação: a maioria das obras apresenta uma feição tradicionalista e é posterior a projetos modernos de importância do MES e da Cidade Universitária - fato que talvez explique a clandestinidade a que foram relegadas." CZAIJKOWSKI 2016 página 13

Interessante assinalar que essa atitude de se aproximar de um vernáculo arquitetônico mais tradicional, não significa perder de vista a continuidade dos espaços, obtida pela independência estrutural, ou a fluidez entre interior e exterior, tão presente na arquitetura dos trópicos. Afinal, muito desssa atitude está também presente na primeira obra de Lucio Costa, principalmente em suas casas unifamiliares. Parece-me que o temperamento afável de Carlos Leão admitia fazer concessões ao gosto de uma clientela nostálgica, sem abrir, no entanto, mão de uma qualidade espacial notável, e muitas vezes contraditoriamente moderna.

Ao final, o livro me parece uma oportunidade única de rever leituras históricas cristalizadas e posicionamentos ortodoxos e rígidos, mostrando-nos que auto-construção do Brasil está sempre aberta para reinterpretações e releituras.

BIBLIOGRAFIA:
CZAJKOWSKI, Jorge - Carlos Leão: Arquitetura - Bazar do Tempo Rio de Janeiro 2016

terça-feira, 24 de maio de 2016

O filme São Sebastião do Rio de Janeiro, a formação de uma cidade

O filme São Sebastião do Rio de Janeiro, a formação de uma cidade, que estreou na última segunda-feira dia 26 de maio de 2016, com produção e direção de Juliana de Carvalho e apoio do IAB-RJ tem o mérito de reconhecer a cidade, como um personagem. E, no caso específico do Rio de Janeiro, com uma personalidade bastante particular e única no mundo, afinal segundo as palavras do jornalista Rui Castro no filme; "Aqui tudo se transforma em carioca".  Localizada num sítio mágico, na beira do Atlântico Sul, onde massas graníticas expressivas e verticais contrastam com a horizontalidade do mar, com uma Baía, chamada de Guanabara, que literalmente está cercada por um anfiteatro de montanhas. A região é pontuada por ícones geológicos, tendo portanto uma personalidade que antecede em muito as diferentes ocupações humanas, sejam elas; indias, francesas ou portuguesas.

Outro mérito do filme, é sua referência contínua à base espacial concreta do construído, A Arquitetura da Cidade, seu desenvolvimento que sempre foi determinado pelo sítio natural, sua transformação e domesticação, por planos e projetos humanos. Daí a presença quase massiva de depoimentos de arquitetos e urbanistas - Augusto Ivan, Carlos Fernando, José Pessoa e Pedro Rivera - , que desfiam os processos de desenvolvimento da grande metrópole, que implicam em mazelas, mas também em potencialidades inumeráveis de transformação.

No final, o filme também aborda uma questão central para a cidade e seu futuro, as condições da Baía de Guanabara, a partir de um sintomático travelling da câmera sobre o Piscinão de Ramos, onde fica clara a imensa concentração de amenidades e benfeitorias na grande metrópole. A despoluição, a obtenção da balneabilidade da Baía de Guanabara, e a valorização de diversos bairros e municípios do Grande Rio se entrelaçam num desejo de se conquistar uma cidade com maior equidade. A imensa escala da Baía de Guanabara, origem e razão do aparecimento da cidade colonial portuguesa, poderá apontar para um futuro, onde as benesses da vida urbana estão mais bem distribuídas e compartilhadas.

domingo, 22 de maio de 2016

Saber e Fé no mundo contemporâneo

O texto Fé e Saber de Habermas possui um caráter circunstancial, foi escrito como discurso do filósofo alemão ao receber o Prêmio da Paz da Associação dos Livreiros da Alemanha, um mês após os dramáticos acontecimentos de 11 de setembro de 2001 em Nova York. Diante dos atentados às torres gêmeas do World Trade no sul de Manhattan, Habermas reencontra e repensa as questões colocadas pelas tendências a secularização dos mundos da vida, impostos pela ampliação geral da modernização, procurando claramente encontrar pontos de conciliação. Sempre houve uma tensão entre fé e saber, de um lado o temor pelo obscurantismo da exaltação de sentimentos arcaicos que desconfiam da ciência, de outro, uma prepotência científica baseada num naturalismo cru destruidor da ética e da moral.

"Mas em 11 de setembro a tensão entre a sociedade secular e a religião explodiu de um modo inteiramente diverso." HABERMAS 2013, página 02

Diante do suicídio dos fundamentalistas, que transformaram máquinas da aviação civil em mísseis atirados contra símbolos capitalistas da civilização ocidental, a reação dos Estados ameaçados tendeu a ser bíblica, numa tonalidade próxima ao velho testamento. De certa maneira, esse tem sido a tônica da reação aos atentados terroristas, desde os das torres gêmeas do arquiteto Minouru Yamasaki em Nova York, até aos de Paris na França de novembro de 2015. HABERMAS caracteriza o fundamentalismo como um fenômeno exclusivamente moderno, apesar de sua linguagem religiosa, e também entende nosso tempo como um processo de secularização ainda inconclusa. Retoma a ideia do cosmopolitismo kantiano, reafirmando um conceito meio vago de crença num poder mundial carregador de uma proposição civilizadora, afastando-se das reações policialescas, que vem caracterizando os estados nacionais atacados.

"Nós só conseguiremos aferir adequadamente os riscos de uma secularização que saiu dos trilhos em outros lugares, se tivermos claro o que significa a secularização em nosas sociedades pós-seculares." HABERMAS 2013 página 05

Na secularização ocidental, desenvolvida a partir do século XVIII, havia a ideia de domesticação do poder eclesiástico e de controle de registros e dados por parte do Estado, que durante muito tempo haviam sido manipulados pela Igreja. A secularização nos países de cultura muçulmana assumiu uma dimensão diversa, uma certa assincronia acelerada entre cultura e sociedade, com fortes consequências desenraizadoras promovidas por uma modernização não endógena. O tema já foi abordado num rexto anterior nesse blog com o título de, A política externa americana no segundo pós guerra e os recentes acontecimentos em Paris, a partir de um texto de ANDERSON 2015.

De qualquer modo, do ponto de vista do Estado Liberal só merecem o status de razoáveis aquelas crenças, que aceitam três predicados muito claros; a coexistência com outras religiões, a aceitação da autoridade das ciências, que detêm o saber mundano, e a adequação ao estado constitucional, que compartilha e divulga uma moral profana. Essas condições pressupõe a ampla aceitação das tradições fortes e aos conteúdos impregnados de visões do mundo, permanecendo aberta para a possibilidade de aprender com todas elas. Mas esses três predicados estão longe de ser aceitos e compartilhados socialmente mesmo nos países centrais ocidentais, que ainda apresentam tensões em questões como o aborto, ou da engenharia genética, ou ainda da posição da espécie humana na história natural, fruto da teoria de Darwin. Tudo isso denota questões extremamente complexas e profundas do ponto de vista do agir humano;

"...o conceito de conformidade a fins, que introduzimos no jogo de linguagem darwinista de mutação e adaptação, seleção e sobrevivência, é pobre demais para abarcar a diferença entre ser e dever ser (Sein und Sollen) que está em jogo quando nós burlamos regras - quando empregamos um predicado equivocadamente ou agimos contrariamente a um mandamento moral. HABERMAS 2013 página12

Me parece que a crença cientificista, ou qualquer outra crença são incapazes de superar a riqueza da interação com o outro, com o diferente de nós, que exatamente por isso relativiza nossas pré-concepções. O reconhecimento dessa possibilidade firmada pela interação entre diferentes é o que garante o sentido da permanência do dever categórico religioso e a autonomia do interesse autoesclarecido. O conceito da reciprocidade do humano não significa sua homogenização, afinal só seremos livres na medida em que não desfaçamos nossas diferenças, como o filósofo pergunta ao final do texto;

"O primeiro homem a determinar um outro em seu ser assim natural, a seu bel prazer, não destruiria aquelas mesmas liberdades que existem entre iguais para, assim assegurar a sua diferença?" HABERMAS página 26

BIBLIOGRAFIA:

HABERMAS, Jürgen - Fé e Saber - Editora Unesp 2013 São Paulo
ANDERSON, Perry - A política externa norte-americana e seus teóricos - editora Boitempo São Paulo 2015

sábado, 21 de maio de 2016

Debate com Janice Perlman no IAB-RJ mostra o desenvolvimento humano das favelas cariocas

Foi realizado na última quarta feira dia 18 de maio de 2016, debate com a americana Janice Perlman no IAB-RJ sobre o desenvolvimento humano da população das favelas cariocas. O evento foi carregado de forte carga emocional, pela apresentação do desenvolvimento social de moradores concretos das favelas cariocas, numa trajetória de mais de quarernta anos. O encontro celebrou também o centenário de nascimento da jornalista, também americana, Jane Jacobs, - autora do livro Morte e Vida das Grandes Cidades Americanas - que estaria comemorando cem anos, se estivesse viva. A jornalista e ativista americana teve um papel fundamental na cultura arquitetônica do segundo pós guerra, com sua proposta de dar protagonismo ao usuário dos espaços da cidade, impondo uma nova práxis para os profissionais.

"As cidades tem a capacidade de prover algo para alguém, somente porque, e apenas quando, são criadas por todos... Não existe melhor expert na cidade do que aqueles que vivem e experimentam seu dia a dia." JACOBS 2000 página 20

O posicionamento de Jacobs formou e informou as práticas de Janice nos anos sessenta no Rio de Janeiro, trazendo um olhar respeitoso para os esforços comunitários das comunidades faveladas, que impulsionaram a inserção social dos seus habitantes. A compreensão do espaço das favelas como máquinas impulsionadoras da inserção social e da melhoria das condições de vida foram descritas e analisadas a partir de casos concretos de famílias variadas e em localidades diferenciadas.

A coordenadora da ONG Megacities, Janice Perlman iniciou sua apresentação mostrando as condições de favelas como Catacumba e Praia do Pinto no ano de 1968, quando iniciou suas pesquisas na cidade do Rio de Janeiro. Nesse momento, Janice morou na extinta favela da Catacumba, na Lagoa Rodrigo de Freitas, num barraco de madeira, com uma familia que já naquela época não contava com a presença do pai, que num dia saiu para ir a farmácia e nunca mais voltou. Janice também apresentou um panorama da luta das comunidades faveladas no Rio de Janeiro, que parte do estigma da remoção nos anos sessenta, passa pela consolidação nos anos oitenta e noventa com os programas do Mutirão e depois com o Favela-Bairro, chegando ao momento atual, quando retorna o fantasma da marginalidade e novamente da remoção.

Os casos da Vila Autódromo, do PAC de Manguinhos e da implantação do teleférico no Complexo do Alemão foram apontados como esforços desestruturados e impensados, que acabaram apresentando poucos benefícios para as comunidades, atendendo mais aos interesses das construtoras, do que dos moradores. Nessas experiências percebe-se o declínio do tempo e da importãncia dada à fase de planejamento e de projeto, determinando um declínio na participação e mobilização das populações interessadas. A experiência de Medellin na Colômbia, que foi em grande parte inspirada nos exemplos do Favela-Bairro, foi apontada como um caso notável, onde a estruturação dos projetos a partir da participação e mobilização dos moradores, a implantação das obras e sua manutenção seguem apresentando resultados eficientes e notáveis.

Após a exposição de Janice Perlman foi franqueado o microfone para perguntas e questionamentos da platéia, destaco aqui apenas uma questão suscitada pelo presidente nacional do IAB, Sérgio Magalhães. Que a partir da menção ao sociólogo Richard Senett no livro A corrosão do caráter, mencionou a monetarização da produção habitacional nos EUA, gerando a partrir disso um forte desenraizamento dos usuários com relação ao seu habitat. O problema colocado pela questão é extremamente complexo, e sua resposta não pode ser simplificada ou romantizada, mas sem dúvida, o engajamento na auto-produção de seu próprio espaço é um aspecto fortalecedor dos laços entre morador e lugar.

A cidade do Rio de janeiro possui 22% de sua população morando em favelas, São Paulo apresenta 20%, esses números demonstram a importância desses assentamentos na constituição da própria realidade de nossas metrópoles. O enfrentamento dessa dinâmica demanda urbanização e políticas continuadas de manutenção dos serviços públicos implantados, de forma a que essa população participe das benesses da cidade. Janice Perlman, com seu olhar estrangeiro e suas pesquisas levou-nos de forma suave e serena para o cotidiano dessa população mostrando como a micro economia desses locais pode impulsionar nosso desenvolvimento humano de forma potente.

quinta-feira, 19 de maio de 2016

Debate no IAB-RJ sobre a utilização da energia solar em edificações

Na última segunda feira dia 09 de amio de 2016 foi realizado um debate na sede do IAB-RJ com Hans Rauschmayer, engenheiro especialista na implantação de placas foto voltaicas e sistemas de aquecimento de água por aquecimento solar, sócio gerente da empresa Solarize, e o engenheiro Claudio Brandão, gerente de vendas da Octagon Solar, que é uma fábrica que se instala no Brasil de produção de painéis fotovoltaicos. A palestra se fixou em aspectos bastante operativos da instalação tanto de placas fotovoltaicas, quanto de módulos de aquecimento de água.

Foram apresentadas as diferentes formas de aproveitar a energia solar para aquecimento de água e geração de eletricidade, os palestrantes também abordaram as modalidades de micro e minigeração em residências e empresas com destaque para o novo compartilhamento em condomínios, bem como o novo marco institucional da ANEEL. O debate apontou para as amplas possibilidades que se abrem para o conjunto da sociedade brasileira, a partir do projeto e de uma assessoria técnica adequada das diversas economias possíveis com a utilização da captação solar. O Brasil, pelo seu posicionamento planetário - inserido no cinturão solar - apresenta um potencial de exploração da energia solar, que corresponde a uma capacidade 45% superior a países como a China e Alemanha, que já exploram de forma expressiva essa fonte.

terça-feira, 10 de maio de 2016

Carta da Andrade Gutierrez aponta falta de protagonismo para o plano e o projeto nas obras brasileiras

A Andrade Gutierrez publicou no dia 09 de maio de 2016, carta de página inteira em alguns jornais nacionais de grande circulação, além de um pagamento de indenização de R$1 bilhão, como parte do acordo de leniência feito com a justiça brasileira. A carta da Andrade e Gutierrez, a segunda maior empreiteira do Brasil, reconhece a falta de protagonismo dos planos e projetos nas obras contratadas no país. Num trecho da carta a empresa aponta erros graves, e destaca que é necessário mudar práticas e costumes, que ainda estão arraigadas nas formas de contratação das obras brasileiras.

"Reconhecemos que erros graves foram cometidos nos últimos anos e, ao contrário de negá-los, estamos assumindo-os publicamente. Entretanto, um pedido de desculpas, por si só, não basta: é preciso aprender com os erros praticados e, principalmente, atuar firmemente para que não voltem a ocorrer."

No mesmo comunicado, a Andrade Gutierrez lista oito pontos que devem nortear a mudança nas práticas e costumes das obras brasileiras. Destaco aqui tres pontos, que fazem parte da pauta da rede do IAB nos últimos anos; a autonomia do projeto, que pré figura a obra, determinando sua forma. seu orçamento e cronograma de forma precisa. A obrigatoriedade de projeto executivo, coordenado pela disciplina de arquitetura, que define os princípios gerais, coleta as informações das diversas disciplinas e compatibiliza-as entre si. E, por último a manipulação do projeto como o documento que impulsiona o debate sobre a adequação da obra a seu contexto específico, sendo aprovada por diversas esferas sociais e ambientais, evitando-se as contestações judiciais;
 
"1) Obrigatoriedade de estudo de viabilidade técnico-econômica anterior ao lançamento do edital de concorrência, descartando-se obras que não contribuam para o desenvolvimento do país;
2) Obrigatoriedade de projeto executivo de engenharia antes da licitação do projeto, permitindo a elaboração de orçamentos realistas e evitando-se assim previsões inexequíveis que causem má qualidade na execução, atrasos, rescisões ou a combinação de todos estes fatores;
3) Obrigatoriedade de obtenção prévia de licenças ambientais, evitando-se contestações judiciais ao longo da execução do projeto e o início de obras que estejam em desacordo com a legislação;"

Me parece importante frizar aqui, que os últimos acontecimentos ligados as obras públicas brasileiras precisam de um realinhamento geral e de novas práticas de amplos setores; gestores públicos, planejadores, projetistas, empreiteiras e subempreiteiras, que devem passar a considerar o plano e o projeto como o verdadeiro protagonista da obra. Recentemente afiliados do IAB-RJ comunicaram ao instituto licitações para escolha de projetos públicos de Arquitetura Hospitalar, da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, pela modalidade de Pregão Eletrônico, o que demonstra claramente a continuidade do aviltamento do projeto em nossa sociedade. O pior no caso desse certame licitatório, é que os preços que resultaram dessa concorrência foram totalmente aviltantes, chegando a disciplina de arquitetura ao valor de R$1,90/m2, quando o preço inicial era de R$44,14.

Há muito que planos e projetos não são considerados em sua devida importância, fazendo com que a sociedade não tenha consciência daquilo que está para ser realizado, e não possa discutir e ajustar o seu próprio vir-a-ser de forma adequada e compartilhada. Programar, desenhar, detalhar, especificar, quantificar, orçar e prever prazos são tarefas dos planos e dos projetos, que precisam ser corretamente remuneradas e respeitadas. Afinal, as sociedades mais transparentes, simplesmente pensam antes de fazer...

domingo, 8 de maio de 2016

Técnica e ciência como "ideologia"

O texto do filósofo alemão Jürgen Habermas, Técnica e ciência como "ideologia", é datado de 1968, mesmo ano do livro Conhecimento e Interesse, tendo o escrito sido caracterizado pelo autor como um trabalho de ocasião, em contraposição a um estudo mais sistemático, que corresponde ao livro. No entanto, o mesmo Habermas já se posicionou que as proposições do livro foram abandonadas, enquanto as construções do texto Técnica e ciência como "ideologia" convergiram para formulações posteriores, como os contidos em Teoria da ação comunicativa, que hoje podem ser considerados como a referência central de sua obra. Há uma questão importante no texto, que se refere fortemente a nossa contemporaneidade, onde algumas vozes se levantam para afirmar a desideologização dos discursos em nome de uma melhor técnica. Quando, por exemplo, menciona-se a necessidade de composição de um ministério técnico e de alto gabarito, em contraposição a um ministério político. Toda técnica precisa dialogar, e portanto precisa ser política, no sentido de ser eleita ou de ser persuasiva para o conjunto da sociedade.

O cerne da construção de Habermas parece estar contido na distinção proposta pelo filósofo entre; trabalho, ou ação racional com respeito a fins, ou regras técnicas e interação, ou ação comunicativa simbolicamente mediada, ou normas sociais. Ambas se encontram em nossas sociedades modernas, ao mesmo tempo dirigidas e impostas por expectativas de comportamento reciprocamente entrelaçadas e sancionadas por instituições. A proposição de Habermas parte das reflexões de Max Weber que caracterizou a modernidade como a ampliação da racionalidade, que incluia a urbanização dos modos de vida, e a ampliação do controle burocrático;

"Max Weber introduziu o conceito de "racionalidade" para designar a forma de atividade econômica capitalista, das relações do direito privado burguês e da dominação burocrática...Isso corresponde à industrialização do trabalho social, tendo por consequência a penetração dos critérios da ação instrumental em outros âmbitos da vida (como a urbanização dos modos de vida, a transformação técnica das trocas e da comunicação)." HABERMAS 2014, página 75

A racionalidade com respeito a fins, se distingue portanto do debate e da concertação, que envolvem a interação entre uma diversidade de proposições, o contraditório e a eleição de prioridades, a razão instrumental, particular e subjetiva se diferencia da razão intersubjetiva, que é pública e coletiva. A técnica e a ciência se ideologizaram pois desfrutam de um reconhecimento e de uma legitimação obtidos num mundo que as celebra de forma exclusiva. Mas em nosso mundo contemporâneo, de grande ampliação da comunicação é possível imaginar uma única direção para a técnica, ou a eleição de uma mais desenvolvida e adequada do que outras? Ou a comunicação manipulada pela melhor técnica nos imporia de forma definitiva a alienação dos nossos desejos e vontades de construir uma vida melhor?

Na verdade, as diferentes técnicas se adequam a contextos específicos em função de sua acessibilidade por atores e agentes diversificados, toda ciência ou técnica é dependente do grau de sua aceitação ou manipulação social. A técnica e a ciência é em cada um dos possíveis pontos de sua elegibilidade parte de um projeto histórico-social, que portanto deve ser explicitado, debatido e eleito como forma adequada da superação.

Habermas em seu texto, ainda faz uma distinção importante entre tradição e modernidade, num movimento que Weber denominou como a secularização, que se refere ao abandono das interpretações cosmológicas do mundo, que são trocadas pela imposição da racionalidade com respeito a fins. A expressão sociedade tradicional, se relaciona exatamente com a circunstância de que o quadro institucional repousa, sobre uma base legitimadora não questionada das explicações místicas, religiosas ou metafísicas. Esse movimento de crítica ao dogmatismo das interpretações tradicionais do mundo, que são substituídas por um caráter científico objetivante, também precisam ser legitimadas como práticas. Segundo o filósofo alemão é assim que nascem as ideologias, paradoxalmente na mesma origem da sua crítica;

"É assim que nascem as ideologias em sentido estrito: elas substituem as legitimações tradicionais da dominação ao se apresentarem com a pretensão da ciência moderna e se justificarem como crítica da ideologia. As ideologias possuem a mesma origem que a crítica da ideologia. Nesse sentido não podem existir 'ideologias' pré-burguesas." HABERMAS 2014 página 101

O Iluminismo, e de forma mais restritiva, o Positivismo, são essas ideologias que legitimam a técnica e a ciência no nosso mundo contemporâneo. Essa destruição contínua da tradição, mencionada por Marx e também por Schumpeter, faz com que o modo de produção seja entendido como um mecanismo de expansão contínua da ação racional com respeito a fins, abalando a supremacia da tradição. A idealização do mercado como um mecanismo nivelador, sem hierarquia entre agentes e atores promete a justiça na equivalência entre trocas, onde os proprietários de mercadorias se encontram com os desprovidos de qualquer propriedade, ou com sua única mercadoria, a sua própria força de trabalho, de maneira igualitária.

"O capitalismo é na história universal o primeiro modo de produção que institucionalizou um crescimento auto-regulado...A novidade encontra-se muito mais em um estágio de desenvolvimento das forças produtivas que torna permanente a expansão dos subsistemas de ação racional com respeito a fins e que, por seu meio coloca em questão os modos como as civilizações legitimam a dominação por meio de interpretações cosmológicas do mundo." HABERMAS 2014 página 96,97

Habermas menciona então dois sentidos para essa ampliação da racionalização ou secularização dos mundos da vida, um de baixo para cima e outro de cima para baixo, deixando entender que esse último mantém a dominação, enquanto o primeiro amplia a autonomia. De um lado, no sentido de cima para baixo a ciência e a técnica legitimam a permanência da dominação, no lado oposto de baixo para cima percebe-se a ampliação da autonomia dos indivíduos.

Desenvolve-se uma interdependência entre técnica e ciência, que antes do final do século XIX, com o advento operativo do mundo moderno ainda não existia, articulada por uma expansão significativa da intervenção estatal. A técnica passa a impulsionar de tal forma a produção, com uma significativa elevação da produtividade do trabalho, que se transforma numa fonte de mais valia independente, fazendo com que a força dos produtores imediatos tenha cada vez menos peso. 

"Desde o último quarto do século XIX tornam-se perceptíveis nos países capitalistas mais avançados duas tendências de desenvolvimento: 1. um crescimento do intervencionismo estatal, o qual procura assegurar a estabilidade do sistema; e 2. uma interdependência crescente da pesquisa e da técnica, que transformou a ciência na principal força produtiva." HABERMAS 2014 página 102

Aqui é importante localizar o texto de HABERMAS no ano 1968, como já mencionado, quando ainda não havia o forte impulso neo-liberal determinado por Thatcher e Reagan do final dos anos setenta, que determinaram um forte declínio da intervenção estatal. Por outro lado, o autor também retrocede ao último quarto do século XIX, localizando nesse momento a expansão do intervencionismo do estado na economia, com o declínio do capitalismo liberal, enquanto outros autores apenas o identificam no segundo pós guerra. De qualquer modo, para HABERMAS tal ordenação reduziu a força da aplicação do sistema criado por Marx, uma vez que a ideologia da troca justa desmascarada por ele, também será admitida e adotada pelo sistema, com a intervenção reguladora do estado.

A pesquisa fomentada pelo Estado promove o progresso técnico e científico inicialmente para o aparato militar de dominação, sendo depois apropriada pelo domínio civil da produção de bens, se transformando numa fonte de mais valia independente. Essa institucionalização do progresso técnico e científico, coincidente com o interesse pela manutenção do sistema, determina a supressão da diferenciação entre trabalho e interação das nossas consciências. Dessa condição deriva uma sensação de que a evolução do sistema social parece ser determinada pela lógica do progresso técnico e científico.

"A isso corresponde, subjetivamente, que a diferença entre ação racional com respeito a fins e a interação desapareça não apenas do conhecimento científico, mas da consciência dos próprios homens. A força ideológica da consciência tecnocrática é garantida pela ocultação dessa diferença." HABERMAS 2014, página 112

Dentro desse contexto a identificação das classes sociais se torna extremamente difícil, pois os interesses na manutenção do modo de produção não são mais claramente identificáveis. Paradoxalmente, os potenciais de conflito são acirrados, conflitos de raça, de religiões e crenças beiram explosões semelhantes muitas vezes às guerras civis, mas não se sustentam como questionadores continuados do módus operandi do sistema. A mais vigorosa força produtiva, o progresso técnico-científico, submete-se ao controle e se auto-legitima como ideologia desideologizada, transformando a ciência num fetiche.

Essa condição determina uma adequação passiva do quadro institucional, contraposta a uma submissão ativa da humanidade, e da natureza, que se amplia de forma descoordenada, que se manifesta na maneira como os homens fazem a sua história. O quadro institucional, que é do âmbito da interação se adequa de forma passiva, enquanto que o trabalho e a produção submetem natureza e humanidade de forma ativa. Há um extraordinário desenvolvimento produtivo, contraposto a um débil desenvolvimento institucional e associativo. Percebe-se claramente esse desequilíbrio no desenvolvimento extraordinário contemporâneo da circulação de moeda pelo mundo, em contraposição a debilidade de controle fiscal desse mesmo dinheiro.

Os tecnocratas do planejamento sejam capitalistas, ou do socialismo burocrático querem submeter o conjunto da sociedade ao controle produtivo como foi feito com a natureza, no entanto se deparam com um contexto linguisticamente mediado. Portanto, nos deparamos com dois conceitos distintos de racionalização, de um lado a razão instrumental, e de outro lado a razão intersubjetiva ou dialógica, construída a partir da discussão sem entraves e livre de dominação.

Habermas irá concluir seu texto projetando uma grande esperança sobre os movimentos de ativistas estudantis, que no ano de 1968 questionaram fortemente o sistema na Europa, nos EUA e em outras partes do mundo. Para o contexto brasileiro, me parece fundamental reforçar que é pelo questionamento da despolitização que pode-se questionar a ideologia do desempenho e da produtividade, trocando-a pela auto constituição da cidadania, que me parece essencial nesse nosso momento.

BIBLIOGRAFIA:

HABERMAS, Jürgen - Técnica e Ciência como "ideologia" - Editora Unesp São Paulo 2014