quinta-feira, 20 de setembro de 2018

O Comum, uma nova abordagem crítica do nosso tempo

O comum, nosso patrimônio construído, aquilo que resiste
ao cercamento
"Aviso aos não comunistas:
Tudo é comum, até mesmo Deus." Charles Baudelaire, Mon Coeur mis à nu.

Diversos filósofos e teóricos apontam em suas reflexões uma esfera muito além do Estado e do Mercado, o Comum, uma entidade operante que ultrapassa os limites dessas duas instituições, e, que ganha relevância principalmente a partir da crise de consciência dos limites dos recursos naturais do planeta e da emergência da economia do conhecimento. A crise ecológica e as Tecnologias de Informação e Comunicação (TICs). A sustentabilidade, ou a consciência ecológica é uma típica emergência do nosso tempo, que conquista corações e mentes a partir dos anos cinquenta do século XX, quando os desequilíbrios no clima e nos biomas passam a gerar impactos concretos em todas as partes do planeta. O comum também emerge a partir da queda do muro de Berlim em 1989, quando o comunismo de Estado desmorona de forma definitiva. Não se trata mais de estatizar, pois o Estado está sempre capturado pelos interesses das grandes corporações, e pela expansão mercantilista, que promove o cercamento contínuo de bens comuns. A luta pelo comum envolve a compreensão de que existem bens como a água, o mar, o ar, o conhecimento, o patrimônio construído e genético, a cultura, a educação, a língua, os seres vivos, que ainda não foram privatizados pela expansão capitalista neoliberal. Em 2009 houve um manifesto declarado do Fórum Social Mundial de Belém do Pará no Brasil, em plena cidade de acesso a floresta e bacia amazônica, um dos comuns em disputa;


"A privatização e a mercantilização dos elementos vitais para a humanidade e para o planeta estão mais fortes do que nunca. Depois da exploração dos recursos naturais e do trabalho humano, esse processo se acelera e se estende ao conhecimento, à cultura, à saúde, à educação, às comunicações, ao patrimônio genético, aos seres vivos e a suas modificações. O bem estar de todos e a preservação da Terra são sacrificados pelo lucro financeiro de uns poucos. As consequências desse processo são nefastas. Elas são visíveis e notórias: sofrimento e morte dos que não têm acesso a tratamentos patenteados e são negligenciados pelas pesquisas voltadas para o lucro comercial, destruição do meio ambiente e da biodiversidade, aquecimento climático, dependência alimentar dos habitantes dos países pobres, empobrecimento da diversidade cultural, redução do acesso ao conhecimento e à educação em razão do estabelecimento do sistema de propriedade intelectual sobre o conhecimento, impacto nefasto da cultura consumista." FSM Belém, citado em DARDOT e LAVAL 2017 página117

Paradoxalmente foi o neoliberalismo, que acabou impondo a guinada do pensamento político para o comum, pois foi ele que contrariando o liberalismo tradicional, cada vez mais se associou ao Estado para buscar uma regulação, que resguardasse e ampliasse seus interesses, que claramente pretendiam expandir os cercamentos e a mercantilização. Afinal, quem foi o responsável por imensas privatizações de companhias estatais por valores subdimensionados, quem pretende regular a proteção a propriedade intelectual na internet, quem vem privatizando conhecimentos ancestrais preciosos para nossa saúde, quem pretende regular e cercar bens públicos como os oceanos, as águas de chuvas, ou o ar que respiramos. Enfim, o Estado, seja comunista ou liberal sempre atendeu as demandas de grupos minoritários de interesse, estando sempre privatizado, regulando para otimizar os ganhos particulares, longe portanto dos anseios do comum. O interesse do neoliberalismo foi sempre o da conquista do Estado para que esse regulasse a partir de suas pautas, que envolvem a ampliação da comercialização e financeirização do nosso cotidiano.


"A lógica predatória atua também por intermédio da ação governamental, quando sistemas de aposentadoria por repartição simples são substituídos por seguros privados ou quando universidades públicas perdem força em benefício de estabelecimentos privados...A acumulação por despossessão é um incremento de valor que se produz não por meio de mecanismos endógenos clássicos da exploração capitalista, mas do conjunto dos meios políticos e econômicos, que permite à classe dominante apossar-se - se possível sem custos - do que não era de ninguém ou do que era até então propriedade pública ou patrimônio cultural e social coletivo." DARDOT e LAVAL 2017 página137

A partir da década de oitenta, com a ascenção de Thatcher  (1979) e Reagan (1981) nas duas potências de cultura anglo-saxônica se ampliou um relato da privatização da moradia social, das telecomunicações, dos transportes  e da água, com promessas de que essa ampliação significaria aumento de prosperidade para todos. Esse discurso se dispersará pelo mundo, a partir da queda da União Soviética e do Muro de Berlim em 1989, produzindo a repressão de narrativas alternativas, que se articulavam a partir da ampliação da solidariedade e da repressão da concorrência. Nos últimos quarenta anos, as desigualdades se aprofundaram, o patrimônio dos mais ricos cresceu, a especulação imobiliária se generalizou, junto com a segregação urbana. De uma hora para outra, o raciocínio concorrencial se naturalizou, bloqueando as práticas de solidariedade em operação existente. Hoje, passados quase quarenta anos da instalação e ampliação desse discurso, já foi possível perceber, que essas práticas e procedimentos na verdade ampliam a concentração de renda, principalmente ao liberar a especulação financeira que se autonomiza em relação a produção. A partir disso, que alguns autores - ARRIGHI 1996 e HARVEY 2005 - caracterizam nossa era como a hegemonia do capital financeiro, onde o rentismo e os mecanismos especulativos não se referem mais ao financiamento da produção, se tornando autônomos. Tal conformação nos empurrou para a crise da quebra do Lehman Brothers e da securitização dos financiamentos imobiliários nos EUA e na Espanha em 2008, que claramente apontaram para a necessidade de regulação do sistema financeiro internacional. Essa crise assumiu proporções equivalentes a quebra da Bolsa de Valores de Nova York em 1929, representando um forte encolhimento dos investimentos produtivos no mundo todo, configurando um retrocesso produtivo sem paralelo. O Brasil e outras economias emergentes resistiram a essa crise até 2013, por conta da manutenção da forte demanda por commodities primárias, tais como; minério, soja, milho e outras vindas da China. Por conta disso, grande parte da mídia conservadora no Brasil continua colocando de forma equivocada a questão como uma polarização entre Estatismo e Mercado, quando na verdade o que está em jogo é o acesso amplo à produção.


"O que ganhamos com a compreensão do capitalismo contemporâneo, interpretando analogicamente seu desenvolvimento como a repetição histórica do grande movimento de despossessão iniciado no fim da Idade Média nos campos europeus? Trata-se também de saber se as práticas e os espaços dos comuns que caracterizaram as sociedades pré capitalistas podem nos ajudar a captar a originalidade de práticas e espaços novos como a internet." DARDOT e LAVAL 2017 página104

O que os autores pretendem deixar claro, com o texto acima é que os Estados de uma maneira geral sempre foram agentes ativos na construção e manutenção dos mercados, e que, a sua constituição, ao contrário do que prega um certo hegelianismo visava não o interesse comum, mas principalmente a ampliação da lógica da propriedade e da concorrência. Aliás essa foi a crítica mais contundente de Marx à Hegel, que enxergou no advento do Estado a emergência do interesse público, quando na verdade significava a ampliação dos interesses dos proprietários. E, aqui acontece uma diferenciação importante entre dois tempos e duas ampliações do cercamento; uma no pós Idade Média, que privatiza recursos naturais, tais como, terras, pastos, recursos de água, ou peixes, outra são na Idade Contemporânea é a particularização de recursos do conhecimento. Os recursos naturais são raros e esgotáveis, enquanto os recursos do conhecimento são em sua essência colaborativos, e impulsionados por seu compartilhamento, que na verdade aumenta e se potencializa na medida em que mais pessoas o alcançam. Quando o conhecimento fica restrito a poucas pessoas ou apenas a uma, ele tende a ser represado e inviabilizado no seu desenvolvimento, na verdade, a difusão e o compartilhamento potencializam o saber. Nesse sentido, os dois autores franceses, DARDOT e LAVAL 2017, levantam uma interessante citação de um dos father founding dos EUA, o terceiro presidente, Thomas Jefferson:


"Um indivíduo pode conservar a propriedade exclusiva da ideia enquanto a guardar para si mesmo; mas a partir do momento em que ela é divulgada, torna-se irresistivelmente propriedade de todos, e aquele que a recebe não pode desfazer-se dela. Seu caráter particular é que a propriedade de ninguém sobre uma ideia é diminuída pelo fato de outros a possuírem em sua totalidade. Aquele que recebe uma ideia de mim recebe um saber que não diminui o meu, do mesmo modo que aquele que ascende sua vela na minha recebe luz sem se deixar na escuridão." Thomas Jefferson, citado em DARDOT e LAVAL 2017 página171

Um dos exemplos mais recorrentes do comum do conhecimento é a internet, que nasceu nos anos 1960 a partir da Advanced Research Projects Agency Network (ARPANET), que fazia parte do Network Working Group, que mesmo restrita aos meio militares já afirmava; 


"Esperamos promover intercâmbio e discussão, em detrimento de propostas autoritárias." citado em DARDOT e LAVAL 2017 página175

Mesmo dentro da lógica hierarquizada militar já se acreditava fortemente que a colaboração era mais eficiente que a competição, para o partilhamento e desenvolvimento de pesquisas. O trabalho universitário impulsionou de forma definitiva a cooperação, pois nesse meio já se sabia de larga data, muito antes das TICs, que a interlocução e o intercâmbio de ideias impulsionava seu desenvolvimento. A velha tradição da ciência aberta enfatizava o caráter do conhecimento como um patrimônio comum e universal, que tinha como fundamento a autonomia da pesquisa com relação aos poderes econômicos e políticos. Nesse ambiente da autonomia universitária emerge um movimento denominado copyleft, que se distingue do copywright pela sua declaração de negar a exclusividade do conhecimento. Na verdade, o copyleft não é a negação da propriedade do seu criador, mas o reconhecimento de que sua ampla acessibilidade por diversas camadas impulsiona seu desenvolvimento de forma exponencial. O compartilhamento e a cooperação exigem apenas a citação, e mobilizam o movimento dos comuns criativos alcançando desenvolvimentos muito mais efetivos, do que as limitações exclusivas. Essa lógica parte da ideia de que o conhecimento não é um objeto fixo e limitável, mas um processo coletivo de desenvolvimento, que demanda livre acesso de todos. Os softwares e ações colaborativas disponibilizadas pela rede demonstram esses procedimentos de forma exemplar inclusive no campo jurídico, dentro dos esforços de um novo regime de propriedade comum e compartilhada. O sistema operacional GNU/ Linux*, que surgiu como alternativa ao Windows pretende disponibilizar mais do que uma articulação de software, mas uma plataforma colaborativa, onde o próprio usuário contribui e aprimora as rotinas. A enciclopédia livre e colaborativa do Wikipedia disponibiliza verbetes de forma ampla, e acaba questionando a concepção dominante de que o estímulo financeiro é o único capaz de incentivar a produtividade. A produção cada vez mais ampliada de relações horizontalizadas, e baseadas na igualdade absoluta dentro da rede acabam colocando em cheque a eficiência da propriedade privada, principalmente no campo da economia do conhecimento.

Enfim, a categoria do comum, ou dos comuns envolvem dinâmicas econômicas complexas, principalmente na lógica ambiental e na produção de conhecimento, essas, não são tendências inevitáveis, ou vetores inexoráveis, mas demandam da atividade política alinhamentos claros, onde o campo da esquerda e da direita se redefinem de forma mais clara, rompendo o maniqueísmo entre Estatismo e Mercado.

NOTAS:

*Desenvolvido por Richard Stallmann, após se demitir do cargo que ocupava no MIT, por ter que usar computadores e impressoras da Xerox em seu laboratório com sistemas operacionais próprios, que ele não podia divulgar. O sistema é denominado Unix, e é compatível com o utilizado nas Universidades

BIBLIOGRAFIA:

HARVEY, David - O novo imperialismo - Edições Loyola São Paulo 2005

ARRIGHI, Giovanni - O Longo Século XX, dinheiro, poder e as origens do nosso tempo - Editora Unesp Contraponto São Paulo 1996

DARDOT, Pierre e LAVAL, Christian - Comum, ensaio sobre a revolução no século XXI - Boitempo,  São Paulo 2017