domingo, 19 de janeiro de 2020

Ciclos históricos na América Latina, a partir do século XX, um projeto de continente e a questão indígena

A América Latina e suas afinidades nos ciclos históricos
A América Latina compartilha ciclos históricos semelhantes, desde os diferenciados processos de independência dos seus países ainda no século XIX, quando no período de 1808 a 1829 há a formação dos diversos países da América Ibérica. Na verdade, a Espanha e Portugal, perdem uma área colonial imensa nesse período do século XIX, que vai da Patagônia até uma parte substancial do território do atual Estados Unidos, que então fazia parte do Vice Reinado da Nova Espanha (México), que ia muito além da hoje Califórnia. A Espanha manterá apenas Cuba e Porto Rico como suas colônias até 1898, que com a Guerra Hispano-Estado Unidense, que procurou afirmar um anti colonialismo convencional, promovendo o que se padronizou chamar do neocolonialismo da emergente e nova potência. Nesse momento, a história latino americana já mostra grande afinidade, pois as elites promotoras da libertação mantém as populações das novas nações a margem dos processos de descolonização, demonstrando uma profunda demofobia, no seu nascedouro. Esse mesmo temor da massificação dos processos de independência contamina, na verdade, todo o continente americano, incluindo as treze colônias Estado Unidenses, que se separam da Inglaterra ainda no século XVIII (1776). A então proclamada democracia americana, apesar de influenciada pelo iluminismo, jamais se aproximou da radicalização do processo revolucionário, que ocorrerá na França em 1789, treze anos depois. Vários historiadores de diferentes tendências apontam as inclinações restritivas com relação a participação popular nas democracias do Novo Mundo, articulado com as declarações de independência dos diferentes países.

Essa característica determinará no Novo Mundo, um certo alijamento das massas populares fazendo da democracia um regime de elites isoladas, que em diferentes nuances sempre perpassou as democracias em nosso continente. Mas iniciado o século XX, os países latino americanos seguem um padrão de ciclos históricos, que se repetem de diferentes formas da patagônia ao Rio Bravo no México. Com diferentes gradientes de autonomia e heteronomia, os projetos nacionais alternam uma subordinação ao irmão mais poderoso do norte, os Estados Unidos, ou a explicitação de um projeto construtor de uma efetiva independência, sempre precária e descontínua. Dentro de uma perspectiva de auto construção de um projeto de autonomia para os países latino americanos podemos identificar quatro ciclos, ao longo do século XX. O primeiro, de 1920 até meados dos anos 1930, no qual impera uma crença numa transformação radical simultaneamente, socialista, democrática e anti-imperialista, muito pautada pela Revolução Russa. A insurreição de 1905 a 1917, na Russia trazia uma promessa para as nações deixadas para trás pelo desenvolvimento capitalista mais vigoroso, afinal o grande império dos Czares ainda estava preso numa economia pré-capitalista, e tinha conseguido fazer uma revolução socialista. O segundo ciclo, que vai de meados de 1930 até 1961, aonde predomina uma visão soviética, ortodoxa e stalinista da obtenção da autonomia latino americana, e que proclama um certo etapismo para a transformação, no qual seria necessário primeiro fazer a revolução burguesa. Para então desenvolver a classe operária na América Latina, e só assim empreender a revolução socialista, partia-se de um etapismo rígido, que tinha uma premissa baseada na crença da capacidade de revolução, das burguesias nacionais. O terceiro ciclo, se inicia com a Revolução Cubana em 1961 e se encerra com a queda do Muro de Berlim em 1989,e se caracteriza pela crença na conquista pelo poder a partir da guerrilha armada. Nesse terceiro ciclo, uma minoria radicalizada propõe a tomada violenta do poder a partir da estratégia da guerrilha, tendo como exemplo a vitória de Fidel Castro, Ernesto Che Guevara e sua turma contra a ditadura de Batista, em Cuba. Por último, com a queda do Muro de Berlim em 1989 e o fracasso do bloco soviético em 1991 inicia-se um processo de valorização da democracia como um princípio básico de convivência com a diversidade. Num texto ainda de 1979, Carlos Nelson Coutinho já afirmava o valor universal da democracia, como uma alternativa ao modelo soviético, ou do socialismo real, que haviam vivido experiências de democracia direta, como os sovietes, mas que se burocratizaram e se encastelaram num isolamento do poder. Nesse mesmo texto, citando Enrico Berlinguer, Secretário Geral do PCI, num discurso de 1977 em plena Moscou por ocasião dos festejos oficiais dos 60 anos da Revolução de Outubro, já destacava;

“A democracia é hoje não apenas o terreno no qual o adversário de classe é obrigado a retroceder, mas é também o valor historicamente universal sobre o qual fundar uma original sociedade socialista”. COUTINHO 1979 página35 

Nesse sentido, a experiência chilena do governo popular de Salvador Allende (1970-73) é uma experiência notável, dotada de um caráter vanguardista para os tempos de sua ocorrência, e por sua concepção de reconhecer na democracia a explicitação do conflito, que é contínuo e impossível de ser suplantado pela decretação do socialismo. Como um ponto fora da curva das tendências majoritárias, a experiência do governo popular no Chile envolve claramente a pretensão de construção de uma autonomia efetiva, não apenas relativa a potência do norte do continente, mas também ao domínio soviético. Interessante também notar, que ao longo dos quatro ciclos apontados acima há sempre a presença de um gradiente entre uma certa intensidade de euro-centrismo, sempre contraposto pelas teses do excepcionalismo indo-americano de alguns teóricos. Desde a Aliança Popular Revolucionária Americana  (APRA) peruana de Haya de la Torre(1) até José Carlos Mariatégui(2), ou Carlos Manoel Cox(3), ou ainda Alejandro Martinez Cambero(4) percebe-se o embate entre teses eurocêntricas e o excepcionalismo indo-americano. Sem dúvida nenhuma, a questão indígena, em suas complexas proposições nas diferentes sociedades latino americanas é um dos pontos mais importantes no projeto de construção de uma efetiva autonomia desses países.

NOTAS:

(1) Victor Raúl Haya de la Torre (1985-1979) político peruano fundador da APRA
(2) José Carlos Mariategui (1894-1930) escritor, jornalista marxista peruano, com um pensamento bastante original dentro dessa tradição, que escreveu;  Sete Ensaios de Interpretação da Realidade Peruana
(3) Carlos Manuel Cox (1902-1986) advogado, economista e político aprista no Peru
(4) Alejandro Martinez Cambero (1916-1999) advogado poeta mexicano

BIBLIOGRAFIA:

COUTINHO, Carlos Nelson - A democracia como valor universal - captado no site https://www.marxists.org/portugues/coutinho/1979/mes/democracia.htm em janeiro de 2020

LÖWE, Michael - O marxismo na América Latina, uma antologia de 1909 aos dias atuais - Expressão Popular Perseu Abramo São Paulo 2016


quinta-feira, 2 de janeiro de 2020

A Revolução Cubana; e um projeto comum e compartilhado para a América Latina

Ernesto Che Guevara e Fidel Castro, com menos de trinta
anos conquistam o poder em Cuba
Além do primeiro dia do ano, o dia 01 de janeiro de 2020 comemora  os 61 anos da Revolução Cubana, que alcançou Havana vitoriosa em 1959 nesse mesmo dia. Longe da perfeição ou da celebração acrítica, a Revolução Cubana construiu índices invejáveis em relação com outros países latino americanos; inexistência de crianças fora das escolas, um serviço de saúde pública
universalizado e invejável mesmo em relação a países super desenvolvidos, e analfabetismo zerado. Passados 61 anos, ela nos traz a um debate importante em nosso mundo contemporâneo, haveriam áreas ou regiões de nosso planeta que representam unidades históricas e geográficas, que compartilham passados comuns? E, que por isso se constituiriam em unidades solidárias, que compartilham anseios e desejos comuns? A América Latina do sul do Rio Bravo até a Patagônia se constituiria nessa unidade histórica e geográfica, que compartilha passados comuns, e portanto anseios de autonomia comuns. A Revolução Cubana, em seu tempo produziu essa identidade com uma certa celebração da conquista do Estado por meio violento, a partir da guerra de guerrilhas, que de certa forma já foi superado (0), mas a mensagem de construção autônoma dos países latino americanos ainda permanece atuante.

É claro, no entanto que tal construção jamais poderia ser tocada por um governo como o de Jair Bolsonaro, que não se remete a coletivos, não se considera representativo de nenhum grupo, mas apenas afirma uma vontade de destruição do anteriormente constituído, celebrando um anti intelectualismo, um espontaneísmo anti científico e primário. O próprio economista Paulo Guedes, que se diz ligado a Escola de Chicago foi recentemente classificado por seu colega Pérsio Árida como um desqualificado. Em setembro de 2018, Arida declarou ao jornal O Estado de S. Paulo que “Paulo Guedes é um mitômano (…). Nunca escreveu um artigo acadêmico de relevo e tornou-se um pregador liberal. (…) Ele nunca dedicou um minuto à vida pública, não tem noção das dificuldades. Partiu para uma campanha de difamação que é de um grau de incivilidade que não se vê em outro assessor econômico”.  Envolvido em acusações de fraudes em fundos de pensão, Guedes pode ser classificado sem erro como um representante de si mesmo.(1) Enfim, o governo Jair Bolsonaro, por característica inata, é avesso a qualquer projeto coletivo de longo prazo, que a União Latino Americana poderia vir a representar.

"Não é classe, não é coletivo, não forma grupos. Não há previsibilidade ou rotina possível em um conjunto de indivíduos para os quais vigoram as saídas individuais e a disputa de cada um contra todos." (2)

Mas deixemos passar esses quatro anos de desconstrução desse governo torpe e despreparado, avesso a solidariedades ou projetos de identidade coletiva ou de mais longo prazo. Devemos lembrar que a identidade latino americana é uma construção, que não se iniciou com a Revolução Cubana, ela retrocede a tempos anteriores, como no texto abaixo de 1924;

"Formar uma frente unida é executar um ato de solidariedade no que diz respeito a um problema concreto e uma necessidade urgente. Isso não significa renunciar às teorias que cada partido sustenta nem à posição que cada um ocupa na vanguarda. Uma variedade de tendências e de grupos bem-definidos e distintos não é um mal; ao contrário, um sinal de um período avançado no processo revolucionário. O que importa é que esses e essas tendências saibam como agir concertadamente ao confrontar a realidade do dia... Que não empreguem suas armas... para ferir um ao outro, mas para combater a ordem social, as suas instituições, as suas injustiças e os seus crimes." MARIÁTEGUI citado em LÖWE 2016 página65 

O texto acima é uma citação de um marxista peruano conhecido, José Carlos Mariátegui, em 1o de maio de 1924, defendendo a ideia de uma frente única, uma proposição que passados noventa anos segue sendo importante para os países latino americanos. Principalmente, para aqueles que lutam por um desenvolvimento com maior inclusão social, um projeto que rompe com a inércia de nossas histórias, que sempre se pautaram por uma dinâmica de submissão aos ditames internacionais. Um desenvolvimento autônomo, que inclua a maioria de sua população, e não apenas uma minoria de privilegiados. Na verdade, desde os diferenciados processos de independência do colonialismo ibérico percebe-se nos países latino americanos, que uma minoria se apropria do Estado, usando-o em seu benefício. Uma das características mais marcantes de nossas histórias, apesar de suas diferenças e especificidades, é a ausência de uma elite pensante autônoma, que não estivesse desde a independência comprometida com os mecanismos do império, sejam às antigas ou novas metrópoles. A presença e proximidade dos Estados Unidos no mesmo continente, nação hegemônica e central no sistema capitalista mundial condicionou uma dependência cômoda, que bloqueou a construção autônoma de um projeto de inclusão geral, mantendo o processo econômico capitalista restrito a uma minoria privilegiada. A construção de um bloco de países latino americano deveria se esforçar para contemplar pelo menos economias como as da: Argentina, Brasil, Bolivia, Colômbia, Chile, México, Paraguai, Perú, Uruguai e Venezuela.

Todas essas nações são manifestações de um desenvolvimento capitalista tardio, desigual e combinado, apresentando cidades nas quais a inequidade é um fato, que está emblematicamente representada em baixos indices de saneamento, coleta precária de lixo, déficit habitacional, periferias precarizadas, transportes públicos deficientes e caros, patrimônio dilapidado, etc.... Todos esses sintomas demonstram um desenvolvimento sem autonomia própria, que atendeu a interesses exteriores articulados com elites exclusivas, que não souberam generalizar seus benefícios. A espacialidade latino americana, principalmente em suas grandes cidades manifesta esse estágio da distribuição desigual do desenvolvimento. A divisão social do trabalho, no sistema produtivo contemporâneo condenou à exclusão parcelas significativas das suas populações, que não conseguem acesso a; saneamento básico, habitação, segurança, coletas de esgoto e lixo, iluminação, transporte público, etc... Uma urbanidade incompleta, desigual e combinada. No regime atual de desenvolvimento do mundo percebe-se uma clara produtividade socializada e disseminada no mundo, enquanto sua apropriação é particularizada e individualizada num universo restrito. Tal regime fez com que a concentração de renda se disseminasse pelo mundo de uma maneira explosiva, gerando indices nunca vistos de excluídos e deixados a margem. Reverter essa tendência e incluir parcelas expressivas da nossa população estava no programa da Revolução Cubana, no Governo da Unidade Popular de Allende e segue sendo uma demanda importante para a América Latina.

NOTAS:

(0). Um texto clássico de Carlos Nelson Coutinho de 1979, tem como título; A Democracia como valor universal, e procura reforçar o vínculo estreito entre democracia e socialismo, que não foi realizado no modelo soviético. Em 1994, o talentoso jornalista mexicano Jorge Castanheda publicou A utopia desarmada, que também aborda como a conquista violenta do poder condicionou um modelo autoritário do seu exercício. Interessante também destacar, que a experiência de acesso ao poder por meio do voto universal ocorreu no Chile com a coalizão de esquerda comandada por Salvador Allende, a Unidade Popular, que foi destituída a força pelo General Augusto Pinochet em 1973, num golpe de Estado violento, comandado pela direita.
(1). Retirado de reportagem do Le Monde, intitulada ¨O lumpesinato no poder - Bolsonaro,100 dias¨. Especial da edição digital de Le Monde Diplomatique Brasil, assinada por Gilberto Maringoni e Artur Araujo.
(2). Retirado da mesma reportagem do Le Monde.

BIBLIOGRAFIA:

LOWE, Michael (org.) - O Marxismo na América Latina, uma antologia de 1909 aos dias atuais - Expressão Popular: Perseu Abramo São Paulo 2016