sábado, 1 de dezembro de 2018

Da série: Meu filho caçula, Felipe é autista

Felipe na aula de informática do Centro de Desenvolvimento
Humaitá, seu colégio
Meu filho mais novo Felipe é autista, e já tem 28 anos de idade. Num texto de 27 de março de 2017, aqui no blog comentei o fato reconhecendo que o autismo é uma grave síndrome, com um amplo espectro ainda pouco compreendida pela área médica, que não entende sobre os complexos mecanismos e funcionalidades do nosso cérebro. Há uma diversidade imensa de teorias, que mais assolam do que reconfortam famílias que convivem com o problema. O autismo se caracteriza por um isolamento social profundo, uma recusa pela interação social, que inviabiliza muitas vezes a conquista da linguagem, havendo autistas verbais e não verbais. O périplo, que passamos eu e minha ex-mulher Mônica, da constatação do problema, quando Felipe tinha 2 anos, até ter um diagnóstico com 4 anos, envolveu uma procissão a diferentes especialidades médicas. Felipe é um autista não verbal, que apesar dessa condição se comunica de forma precária em uma série de situações, estabelecendo diálogos a partir de gestos e ações corporais, que nos revelam seus estados de humor. Apesar da ausência da linguagem, a convivência com ele é reconfortante, calma e cheia de surpresas gratificantes, principalmente nas manifestações de carinho, que volta e meia são manifestas com um ar meio matreiro do tipo; "você não imaginava, que fosse possível".

Por exemplo, ultimamente ele desenvolveu uma forma peculiar de me chamar a atenção, a partir de um farejo, que repete duas inspirações respiratórias pelo nariz, numa imitação do comportamento canino típico, que me parece tem esse sentido muito mais apurado do que nós. É estranho, mas Felipe age como se bastasse sentir o cheiro para pressentir ou mapear, como foi o meu dia, quando retribuo com a mesma sonorização, ele apenas ri, como se aquele nível de conecção fosse suficiente para estabelecer uma comunicação completa, voltando para seu mundo de silêncio. Nos últimos tempos, mais ou menos de uns três meses para cá, Felipe parece ter feito um voto de silêncio completo, não repetindo mais algumas das ecolalias* típicas suas, que ele repetia, como; "cadê o pinguim", ou "no copo...", ou ainda "fecha a geladeira". Elas derivaram de situações concretas demandadas ou cobradas ao Felipe em interações ou reprimendas de comportamentos seus, que ele próprio introjetou como suas. E, apesar dessa origem racional, essas repetições de palavras ou expressões me parecem muito mais tentativas de Felipe de chamar a atenção sobre si mesmo, num mundo que cobra cada vez mais de todos, uma ênfase de expressão num contexto cada vez mais sobrecarregado de mensagens, e, por isso mesmo, sem muita disponibilidade para a audição. É interessante assinalar, que a primeira das ecolalias corresponde a uma animação presente no Youtube, de nome Pingú, que retrata uma família de pinguins, e que ele busca de forma recorrente na internet de forma obsessiva. O interessante é, que a linguagem dos personagens dessa animação não é verbalizada, mas feita a partir de entonações variadas de grunhidos, que nos permite claramente entender o caráter e o sentido da interação. A segunda e a terceira, correspondem a uma reprimenda repetida por mim e meu falecido pai, quase ad infinito, para que Felipe não bebesse mais água direto da garrafa, mas usasse o copo, e não deixasse a geladeira aberta. O interessante é que a partir de um certo momento me parecia, que Felipe usava o artifício da repetição dessas reprimendas, para mais uma vez chamar atenção sobre si, esperando a repetição da ladainha com uma ponta de sorriso, e uma conclusão; "chamei a atenção para mim".

Existem algumas pesquisas, que apontam uma emergência de uma epidemia de autismo, principalmente nos EUA, onde o registro foi consolidado sobre a sigla TEA, Transtorno do Espectro Autista. A condição foi identificada em 1943, por um psiquiatra Leo Kanner nos EUA, e de forma simultânea na Austria por Hans Asperger, que distinguiram na sintomatologia autista o registro da causa biológica, por descobrir, e o das dificuldades que essa criança coloca para os pais. Mas, a partir dos anos cinquenta do século XX a notificação do distúrbio aumenta de forma progressiva e crescente. Em 1957, nos Estados Unidos, uma pessoa em cada cinco mil era considerada autista, já em 2002, uma em cada 150 era diagnosticada como autistas, dez anos depois, em 2012, os números subiram ainda mais, mostrando uma pessoa autista em cada 68. Hoje, a proporção está em um caso para cada 51 neuro normais, o que me parece uma classificação bastante elástica. A classificação se ampliou e se generalizou por um campo bem mais amplo, com a agregação da expressão Transtorno Invasivo do Desenvolvimento (TID), que são transtornos caracterizados por atrasos simultâneos na socialização e na comunicação. Os TIDs envolvem cinco transtornos; o autismo, a síndrome de Rett, uma anomalia genética,  o Transtorno Desintegrativo da Infância,  a Síndrome de Asperger, que são os autistas de alto rendimento, e o Transtorno Invasivo do Desenvolvimento sem outra especificação (TID-SOE). Essa profusão de siglas, tão ao gosto dos médicos contribuiu para a ampliação da recorrência dos casos, envolvendo inclusive pessoas com alto rendimento intelectual em determinadas áreas, como a Síndrome de Asperger, que apesar das dificuldades de comunicação e socialização, envolvem brilhantes matemáticos, economistas, e até um Prêmio Nobel**.

Além dessa ampliação, há uma grande quantidade de teorias para explicar esse aumento do número de casos, desde as comportamentais, como; generalização das vacinas, dietas com excesso de glúten ou lactose, alimentos industrializados, venenos organofosforados aplicados na agricultura, presenca de fungos intestinais, e outras. Até, as genéticas que envolvem a presença de distúrbios neuro-psicológicos nos pais, como o próprio autismo, esquizofrenia, ou epilepsia. Estranhamente, o autismo atinge um número muito maior de indivíduos homens, do que mulheres, para cada 4 autistas masculinos, há apenas a ocorrência de 1 no gênero feminino, o que também não possui explicação, mas que pode reforçar a hipótese genética. Há uma enorme gama de profissionais mobilizados para a compreensão do autismo; da medicina fisiológica, da psicologia, da psiquiatria, da educação, e da teoria do aprendizado. Mas, a pesquisa é complexa e extremamente dificultada pois o indivíduo está apartado da linguagem, algo fundamental ao ser humano, primeiro para sua auto compreensão, para sua expressão, e para a apropriação do mundo.

Nenhuma dessas informações reconfortam a nós, os pais, que permanecemos interagindo com esse espectro a partir de leituras sazonais e informações esparsas, que procuram dar sentido a uma atividade complexa no mundo contemporâneo, como a paternidade. Assim como no outro texto, presente aqui no blog, a vontade desse ensaio foi detonado por dois livros; um de Andrew Solomon, Longe da Árvore, pais, filhos e a busca da identidade, e outro Éric Laurent,A batalha do autismo, da clínica à política. O primeiro é um calhamaço de mais de 900 páginas, que o jornalista Andrew Solomon, que fez grande sucesso com o livro sobre a depressão, denominado; O demônio do meio dia, visita uma série de anomalias, estranhezas e excepcionalidades humanas para afirmar a diferença, em detrimento da deficiência. É um livro maravilhoso, sobre a capacidade do inusitado e do estranhamento, de nos tirar da zona de conforto, e nos empurrar para as incertezas e dúvidas, abordando as complexas expectativas dos pais, e o confronto com a diferença.

"Na concepção de Foulcault, a ideia de normalidade 'alegava assegurar o vigor físico e o asseio moral do corpo social; prometia eliminar indivíduos defeituosos e populações degeneradas e abastardas. Em nome da urgência biológica e histórica, ela justificava os racismos do Estado'. Desse modo, estimulava as pessoas fora da normalidade a perceberem-se como impotentes e inadequadas. Se, como Foucault também afirmou, 'a vida é o que é capaz de erro' e o próprio erro está 'na raiz do que faz o pensamento humano e sua história', então proibir o erro seria acabar com a evolução." SOLOMON 2013 página45

Em tempos de xenofobia, e de novos arroubos de eugenia me parece uma leitura fundamental, me indicando uma reafirmação clara e simples de que, não há nenhuma verdade ontológica naquilo que definimos como a saúde plena, ou o individuo bem sucedido. Assim, a capacidade é uma tirania da maioria, e um claro desvio ansioso e emburrecedor de não se confrontar com o diverso, que só, nos reduz a ignorância. Mais além disso, o livro aborda com sensibilidade e delicadeza, as frustrações contidas na maternidade e na paternidade ao se defrontar com aquilo que Andrew Solomon conceitua como a subversão da identidade vertical, os atributos e valores transmitidos de pai para filho, que estão contidos na cadeia do DNA, mas que também envolvem normas culturais compartilhadas, que não se manifestam.. E, logo desenvolve o conceito de identidade horizontal, que envolveria esse fruto que cai longe da árvore, que envolve o diferente, o não programado da excepcionalidade, que vai do surdo ao gênio, passando pelo autismo, homossexualidade, anões, esquizofrenia, etc... A exaustiva pesquisa do jornalista anglo saxão parece foi detonada em 1993, quando é designado pelo jornal New York Times, para investigar a cultura surda. Mas a imensa e impressionante compilação de casos e descrições contidas no livro, também parecem querer exorcizar sua própria condição de pai e homossexual, que Andrew explicita no livro. Nesse sentido, a paternidade, de uma maneira geral me parece sempre mais frustrada e impactada por essa condição de identidade horizontal, pois acho que os homens possuem uma relação com sua prole muito mais vertical do que a das mulheres, que desfrutam de uma compreensão muito mais ampla e integral do milagre da vida. Acho, que pela preparação propiciada eplo periodo de gestação. Enfim, a aceitação e a introjeção do problema me parece muito mais sábia e emocionalmente resolvida na maternidade, do que na paternidade, por conta dessas expectativas verticais nos comportamentos e reações dos nossos filhos. É claro, que isso também é um condicionamento social que introjetamos, mas a superação vai muito além da decisão racionalizada.

"Quando eu estava na faculdade, em meados dos anos 1980, era prática comum falar de 'diferentemente capacitado' em vez de deficiente. Faziamos piada sobre os 'diferentemente contentes' e os 'diferentemente agradáveis'. Hoje em dia, se você falar de uma criança autista, ela difere das crianças 'comuns', enquanto um anão difere das pessoas 'médias'." SOLOMON 2013 página43

Como bem assinala o filósofo Witgenstein a linguagem é nossa forma de pensar e de construir o mundo a nossa volta; "tudo que sei é o que tenho palavras para descrever." Por isso mesmo, todos nós estamos condenados a sermos tanto objeto como perpetuadores de preconceitos diversos, mais um deles parecia que havíamos superado; a disponibilidade para a convivência com a diversidade. A diversidade do mundo que me parece uma conquista importante no nosso tempo contemporâneo, não apenas nos reconforta, mas basicamente nos provoca. Os solavancos conservadores, que atualmente passamos me parecem querer nos levar a um conforto embotador, que parecem declarar ou suprimir de forma violenta a diversidade do mundo. Hitler matou 270 mil pessoas com deficiência sob o pretexto de tentar homogeneizar a nação numa interpretação sua do que era o espírito alemão, do mesmo modo, hoje Francis Fukuyama começa a doutrinar no sentido de um futuro "pós-humano", em que se elimina a variedade da humanidade, para se suprimir o conflito. Sei hoje, pois Felipe me ensinou, que uma sociedade tolerante é tudo que não podemos perder.

NOTAS:

*Ecolalias são repetições de expressões e palavras descontextualizadas e sem sentido, que caracterizam algumas repetições dos autistas.
**O economista Vernon Smith, que ganhou o Nobel em 2002 está enquadrado dentro da Síndrome de Asperger

BIBLIOGRAFIA:

SOLOMON, Andrew - Longe da Árvore, pais, filhos e a busca da identidade - Editôra Companhia das Letras São Paulo 2013

LAURENT, Éric - A batalha do autismo, da clínica a política - Editôra Zahar Rio de Janeiro 2014