terça-feira, 23 de abril de 2019

Projeto de Cidade, Inteligência, Criatividade dentro do conceito de multiculturalidade


1.      Resumo:

O artigo aqui desenvolvido parte de uma premissa de que o projeto, ou desenho para absorver inteligência, criatividade e fantasia precisa se repensar a partir da lógica multicultural, incluidora dos seus usuários. Ele parte identificando uma certa positividade na globalização, a qual estamos todos submetidos, procurando qualificá-la assim apenas na sua vertente geradora de solidariedade e coesão social. Ao reconhecer essa diversidade do mundo contemporâneo, também identifica complexas relações de centralidade e periferia, superioridade e subalternidade, que precisam ser superadas para que um outro projeto solidário possa ser efetivado. As complexas teorias da racionalidade intersubjetiva de Habermas, auxiliadas pela sofisticada conceituação histórica do desenvolvimento do senso comum, bem como de centralidades e subalternidades de Gramsci nos auxiliam a estruturar a defesa de um projeto inclusivo para todos. Não só do ponto de vista da argumentação racional, mas também em sua efetividade empírica, a partir de uma vigilância sobre o  nivelamento igualitário das relações de poder. A identificação do neoliberalismo como ideologia ainda imperante no mundo contemporâneo, apesar da crise de 2008 nas finanças globais traz um claro inimigo. A cidade do Rio de Janeiro e suas favelas são usadas como estudo de caso, para simulação de um projeto construtor de solidariedade e inclusivo.  Os riscos são imensos, mas pelo menos devemos tentar um contra projeto para nossas cidades.
2.      Todos os mundos, Um só mundo, Arquitetura 21

2.1. Hermenêutica Multicultural:


O tema do próximo Congresso da União Internacional de Arquitetos, na cidade do Rio de Janeiro a ser realizado em 2020 (UIA2020Rio) é; Todos os Mundos. Um só mundo. Arquitetura 21, proposição construída pelo Instituto de Arquitetos do Brasil (IAB), uma entidade da sociedade civil, sem verbas das instâncias governamentais e sem fins lucrativos. O mesmo tema está articulado com o título concedido pela UNESCO em 2019 de, Rio de Janeiro Capital Mundial da Arquitetura (Rio CMA), uma comenda que se desenvolverá durante o ano de 2020, conferindo maior amplitude ao Congresso UIA2020Rio. Claramente uma proposta de acentuação multicultural, procurando entender a globalização atual, a que estamos todos submetidos, como capacitada a promover um universalismo inclusivo, e não nivelador. Um desafio imenso, sem precedentes, que envolve uma disputa do imaginário para definição e operacionalização, de que lado nos posicionamos dentro do processo geral de globalização. Longe dos etnocentrismos, sem pretensões monopolizadoras, e portanto, interessados na produção e fomento de interpretações intersubjetivamente compartilhadas. Um lugar e um espaço, onde estamos horizontalmente empoderados por diferentes formas de atuar e pensar, que despertam nos interlocutores curiosidade e vontade de audição. Nesse contexto, é fundamental buscar uma auto definição de nossos traços culturais próprios mirando não a auto afirmação estereotipada, mas a troca efetiva sem resquícios de dominação. Como assinala HABERMAS, respondendo numa entrevista que o fustigava amigavelmente com a qualificação sempre estereotipada de; ocidental, europeu, alemão e branco.

“Nesse contexto, a forma de apresentação normativa de si em relação a outras culturas também é importante para nós mesmos. No curso de uma revisão de auto retrato como essa, o Ocidente poderia por exemplo, aprender o que precisa ser mudado em sua política se quiser ser percebido como um poder civilizador de formação. Sem uma domesticação política do capitalismo desenfreado não é possível lidar com a estratificação desastrosa da sociedade mundial. A dinâmica díspar de desenvolvimento da economia mundial deveria ser ao menos contrabalanceada em suas consequências mais destrutivas – eu estou pensando no estado de privação e de empobrecimento de regiões e continentes inteiros... O tema “guerras culturais” geralmente é o véu por trás do qual se escondem os sólidos interesses materiais do Ocidente (a disposição sobre as jazidas de petróleo e a proteção ao abastecimento energético, por exemplo).”HABERMAS 2016 página 41 e 42

Muitos entendem e apontam a dimensão utópica das proposições habermasianas, reafirmando as inevitáveis micro relações de poder, sempre presentes na interação entre dois seres ou grupos humanos. O interesse, as marcas culturais de sucesso estereotipados, as noções de centro e periferia implicariam inevitavelmente em posicionamentos de subalternidade, desnivelando as trocas culturais entre vencedores e vencidos. Sem dúvida, a explicitação do problema por Habermas, ou a reafirmação do slogan do UIA2020Rio não são garantias de efetivação prática do multicultural. Ele pressupõe uma vigilância constante e operante no momento mesmo da realização prática do diálogo e do debate, na perspectiva do produto cooperativo. O nivelamento intersubjetivo igualitário e inclusivo é um patamar utópico e mais desenvolvido, que demanda um projeto ou uma premissa básica, o outro é a única instância capacitada de relativizar meu conhecimento. E, portanto fonte de conhecimento. Aqui, não se pode apenas se restringir a negar a celebração dos vencedores, mas também a vitimização dos vencidos, e apesar de seu eurocentrismo, também devemos todos introjetar o cosmopolitismo iluminista.

“A permanente suspeita desconstrutivista sobre a existência de um viés eurocêntrico provoca a pergunta contrária: porque o modelo hermenêutico da compreensão, obtido a partir de conversas cotidianas e desenvolvido metodologicamente desde Humbolt por meio da práxis de interpretação de textos, deveria de repente recusar sua própria forma de vida e sua tradição? ... Todas as interpretações são traduções in nuce... Cada falante competente aprendeu como deve utilizar o sistema de pronomes pessoais... Na dinâmica dessa assunção recíproca de perspectivas, a produção cooperativa funda um horizonte de interpretação comum, na medida em que ambos os lados podem chegar ao resultado de uma interpretação não monopolizadora ou convertida em termos etnocêntricos, mas a uma interpretação intersubjetivamente compartilhada. “ HABERMAS 2016 página 42 e 43

O problema está colocado não na esfera do pensamento, mas do condicionamento inercial de cada uma das nossas culturas, ao mesmo tempo limitadoras e potentes, que precisam estar vigilantes no sentido da cooperação, e não da competição. Sobre o ponto de vista da lógica, ou do pensamento o lema Todos os Mundos, Um só mundo, Arquitetura 21 possui uma argumentação convincente e persuasiva inegável. Somos diversas culturas, diferentes modos de ser, de habitar e de pensar, mas o nosso planeta é único e patrimônio de toda a humanidade. Portanto, precisamos de um cosmopolitismo repressor das identidades, capaz de promover o bem comum do planeta, sem diluir nossos caracteres. Por outro lado, a arquitetura, com sua origem na necessidade humana, e também com sua linguagem ao se apropriar de técnicas socialmente compartilhadas nas diversas partes do mundo, aponta para um patrimônio realizado diversificado, mas também comum. Comum, pelas dificuldades de cercamento e particularização que suas características intrínsecas sempre envolveram.  Apesar dessa argumentação racional, a efetiva multiculturalidade não se realiza espontaneamente, pois estamos condicionados por traços de poder estereotipados.

“Esse modelo hermenêutico explica, além de tudo, por que tentativas de entendimento só podem ter chance de sucesso se puderem acontecer sob as condições simétricas da mútua assunção de perspectivas. A boa intenção e a ausência de violência manifesta são úteis, mas não são suficientes. Sem as estruturas de uma situação de comunicação não distorcida e também livre de relações latentes de poder, os resultados estarão sempre sob a suspeita de terem sido impostos. É claro que, na maioria das vezes, apenas a inevitável falibilidade da humanidade finita é expressa na seletividade, na capacidade de ampliação e nas necessidades de correção das interpretações obtidas. Mas elas são frequentemente indiscerníveis daquele momento de cegueira em que as interpretações se devem aos vestígios inextintos de uma assimilação violenta ao mais forte. Nessa medida, a comunicação é sempre ambígua e também uma expressão da violência (Gewalt) latente. Mas se ontologizarmos a comunicação sob essa descrição, se não virmos nela “nada além” do que violência, desprezamos o essencial: que só o telos do entendimento – e só nossa orientação em direção a esse objetivo -, que é intrínseco à força crítica, consegue romper com a violência sem reproduzi-la sob uma nova forma.” HABERMAS 2016 página 43 e 44

Há um terrível mau estar na sociedade contemporânea, uma sensação generalizada de que os horizontes compartilhados se estreitaram, seja por parte dos fundamentalistas do Mercado, ou pelos ciosos defensores do Estado. De um lado e de outro há a emergência de uma dúvida paralisante, um claro retrocesso das expectativas, que já não são mais afirmadas com as mesmas convicções e certezas. Nos fundamentalistas do mercado a dúvida paralisante foi instalada mais recentemente, após a crise do capital disparada pela bolha imobiliária de 2008, enquanto para os ciosos defensores do Estado ela está instalada a mais tempo, desde a queda do Muro de Berlim em 1989. Por isso, ou seja pela maior proximidade temporal, uma série de dogmas dos fundamentalistas do mercado continuam sendo repetidos, e doutrinados por jornalistas, comentaristas e ensaístas na grande mídia, moldando o senso comum. O Estado é emdemonizado e o Mercado emdeusado, como se bastasse essa premissa para fazer rodar a prosperidade para todos, ou como se a lógica concorrencial entre pessoas, empresas, instituições fosse capaz de estabelecer a verdade, ou a própria razão. A partir de 2008 começam a emergir argumentos convincentes, de que o neo liberalismo está se esgotando, principalmente no que se refere a radicalização da concentração de renda, que ele tem gerado.

Antonio Gramsci, filósofo italiano, nascido na Sardenha, no sul da Itália entendia o senso comum como o folclore da filosofia, não sendo algo rígido e imóvel, se transforma continuamente por noções científicas e opiniões filosóficas colhidas ao acaso. O senso comum envolve ao final uma concepção de vida, parâmetros de comportamento, e a moral pessoal mais difusa, que está em constante disputa pelas construções ideológicas. Há no senso comum, na concepção gramsciana, uma recepção passiva como um estágio anterior à construção ideológica, que pressupõe uma construção ativa do grupo dirigente-intelectual, e que opera além da espontaneidade e mais ligado ao direcionamento. Daí a importância dada ao jornalismo por Gramsci, que foi sua profissão antes do cárcere do regime fascista, por considerar esse canal um formador do senso comum, em sua doutrinação diária. Há nessa construção uma interessante premissa, uma relação dialética entre a espontaneidade do senso comum, e sua doutrinação ideológica pelo grupo dirigente-intelectual, uma relação de dupla contaminação. Gramsci entendia as massas em suas experiências cotidianas, como portadoras e construtoras do senso comum, mas também as entendia como uma possibilidade de um esclarecimento iluminador, ou de poder estar submetida a mais torpe manipulação. O senso comum contém uma promessa de transformação;


"Em geral, trata-se da ideologia mais difundida e com frequência implícita de um grupo social de nível mínimo. Por isso, ele se relaciona dialeticamente com a filosofia, isto é, com o segmento alto da ideologia, próprio aos grupos dirigentes dos vários grupos sociais. Da mesma forma, também uma força política que se coloque ao lado dos subalternos deve instaurar com ele uma relação dialética para que ele seja transformado e se transforme, até alcançar um novo senso comum, necessário no âmbito da luta pela hegemonia." Quaderno 3 LIGUORI (org.) 2017 página723

Daí decorre sua distinção entre ideologias progressistas, que propunham a mudança de comportamentos e concepções, arrancando os indivíduos de sua rotina alienante, e as ideologias conservadoras, que mantinham práticas e pensamentos cristalizados, arraigados, e arcaicos. A concepção de Gramsci da ideologia envolve uma nova acepção em relação a usada por Marx, que entendia o termo como uma consciência invertida ou distorcida do real. Para Gramsci não era possível escapar da clivagem ideológica, pois o mundo estava cindido em vivências portadoras de interesses e parcialidades. As ideologias vencedoras se naturalizam nas práticas, concepções e visões de mundo socialmente compartilhadas por todos, configurando uma hegemonia. O conceito de hegemonia envolve a ideia de convencimento e coerção natural e socialmente aceito por todos das práticas e concepções, que norteam uma determinada ideologia. As ideologias contra-hegemônicas precisam mobilizar esforços intelectuais e doutrinários capazes de romper o convencimento geral das ideologias vencedoras, retirando seu convencimento inercial, que muitas vezes se confundem com a própria racionalidade. Há em Gramsci, a constante afirmação de uma possibilidade de prática política esclarecedora e iluminadora da realidade, a partir da emergência de intelectuais orgânicos com capacidade de refletir sobre as origens da dominação nos diversos extratos sociais.

"A classe dominante tem sua própria estrutura ideológica, isto é, a organização material voltada para manter, defender e desenvolver a frente teórica ou ideológica [...] A imprensa é a parte mais dinâmica desta estrutura ideológica, mas não é a única: tudo o que influi ou pode influir sobre a opinião pública, direta ou indiretamente, faz parte desta estrutura. Dela fazem parte: as bibliotecas, as escolas, os círculos e os clubes de variado tipo, até a arquitetura, a disposição e os nomes das ruas[...] a ideologia como lugar de constituição da subjetividade coletiva [...] cada camada social tem sua consciência e cultura, isto é sua ideologia." Quaderno 3 LIGUORI (org) 2017 página400

Nos últimos tempos presenciamos uma doutrinação neo liberal baseada em quatro princípios estruturantes Em primeiro lugar, o mercado não se apresenta como um dado natural, mas como algo que deve ser construído pelo Estado, onde a ordem mercantil deve estruturar todas as relações societárias. Em segundo lugar, a ordem do mercado não reside mais na troca, mas na concorrência, que não é mais pensada como nos pensadores clássicos como um nivelamento equalizador, mas perpassado por desigualdades entre diferentes unidades de produção. Em terceiro lugar, o Estado não é mais o guardião dessa ordem, mas é também organizado a partir da lógica da concorrência, se obrigando a ser uma empresa. Em quarto lugar, a imposição da universalização da concorrência molda o Estado empreendedor e o indivíduo-empresa, ampliando uma subjetivação onde declina a solidariedade, e se amplia o individualismo isolacionista. Com isso percebe-se um declínio e um menosprezo da lógica negocial da política, e a afirmação tecnocrática da rentabilidade e da produtividade. A administração pública assume um caráter tecnocrata e rentista, em detrimento de considerações de diálogos políticos e sociais, 

Com isso se desenvolve uma simplificação emburrecedora, que considera as atividades contemplativas e sem uma produtividade imediata, como a arte e a cultura, como supérfluas e submetidas a brutalidade da avaliação apenas da sua eficácia. Há um desencanto com a democracia e seus debates intermináveis, e uma cobrança pela produtividades dos dirigentes, que não mais são reconhecidos por sua capacidade aglutinadora, mas apenas pela sua capacidade gerencial. O conflito e o pluralismo passam a ser vistos como paralisadores das decisões, e portanto  como anti producente, justificando-se as posições de Milton Friedman e Friedrich Hayeck com relação a tirania da maioria na ditadura de Pinochet no Chile. O Estado de exceção passa a ser estado permanente, que não foi planejado, mas simplesmente imposto por necessidades técnicas impostas pelos dispositivos fiscais e financeiros. Mas apesar disso tudo segue a nossa sina de acreditar numa regeneração do mercado ou da concorrência e formas colaborativas ou solidárias;


"Mas prognosticar o advento iminente de um capitalismo bom, com normas de funcionamento saneadas, ancorado duradouramente na economia real, que respeita o meio ambiente, preocupa-se com as necessidades das populações, e - por que não - zela pelo bem comum da humanidade, isso é, com toda a certeza, senão uma história edificante, ao menos uma ilusão tão nociva quanto a utopia de um mercado autoregulador." DARDOT  e LAVAL 2016 página386

Na verdade, a autoregulação deverá ser dada, e só será possível pela profundidade do debate, que depende do nivelamento do poder entre os agentes convocados, uma fórmula que proclama a colaboração e a solidariedade, acima do empresariamento e da concorrência.

2.2.            O Rio de Janeiro e a subalternidade cultural:


Mas voltemos à cidade genérica do século XXI e ao Rio de Janeiro, nessa direção, a massa construída das edificações agrupadas nos aglomerados podem nos orientar, e conformam um patrimônio material, que é o espelho fiel de nossa sociedade, com suas diferenças e acessos diferenciados a recursos e meios, e que apesar disso oferece sua materialidade a todos. Nesse sentido, o Rio de Janeiro é uma experiência única, implantada num sítio emblemático, num país emergente da América Latina, a cidade é uma representação convincente desse início do século XXI, da subalternidade, e ao mesmo tempo, da centralidade. Uma cidade onde a beleza e o caos se movimentam numa interação interdependente e complexa, capaz de traços de identidade de dois mundos antagônicos; a opulência e a miséria, a sofisticação e a precariedade, a urbanidade solidária e o individualismo isolacionista. A cidade teve um programa de urbanização de favelas na década de noventa, que foi referência mundial, como instrumento de geração de coesão social, o Favela Bairro. Aonde a integração das favelas aos bairros do entorno imediato foi pensada a partir do respeito aos esforços pré existentes realizados na produção da moradia própria, trazendo com a intervenção o direito à cidade para esses assentamentos. O programa deixou de ser operado na cidade, mas a materialidade física onde uma hermenêutica do diálogo está imposta em seu cotidiano, não como tese pensada e distante, mas com condicionamento inercial estabelecido em seus problemas e potenciais. O Rio de Janeiro é um local, onde a necessidade da comunicação e do entendimento, entre diversidades é negociado materialmente entre violência e força crítica, diariamente.

Mas não podemos nos iludir, e apenas celebrar essa condição empírica instalada, no Rio de Janeiro, sem um projeto inteligente, criativo e gerador de simbolismo aglutinador da coesão social, que nos liberte da minoridade subalterna de nossas elites endinheiradas. Grande parte dos problemas brasileiros são fruto de uma incapacidade nacional de pensar com sua própria cabeça de forma autônoma nossa realidade, há uma certa subalternidade recorrente entre nossos pensadores mais brilhantes. Uma manipulação, que nos condena a um desenvolvimento para poucos, condenando grande parte de nossa população a uma precariedade indigente. A presença daquilo que o genial dramaturgo Nelson Rodrigues denominava, "complexo de vira lata do brasileiro". Um fato, que nos impede muitas vezes de perceber como nossa história se conecta e se vincula com movimentos mundiais, como a ausência de um projeto inclusivo, gerador de coesão social nunca nos atingiu. Afinal a expressão, "Somos ainda hoje uns desterrados em nossa própria terra" inaugura no ano de 1936 a primeira edição do livro Raízes do Brasil de Sérgio Buarque de Holanda. Nossas elites sempre se encantaram com a Europa e os Estados Unidos como representações civilizatórias avançadas, contrapostas a uma realidade feia, caótica e surpreendente, que lhes fugia da compreensão. Aqui a regra foi sempre a convivência solidária entre arcaico e moderno, determinando a parcialidade de nossas transformações, que se restringem a revoluções conservadoras recorrentes, mantendo nos numa eterna condição periférica.

O mundo grande e terrível, que sempre maravilha nossas elites cresce em sua cabeça como algo inalcançável, da realidade agrária e atrasada dos campos as nossas imensas metrópoles modernas e também atrasadas nada parece digno de menção, ou reconhecimento de originalidade e potência. Mesmo Sérgio Buarque de Holanda apresentava em suas entre linhas o "complexo de vira latas" na sua celebração do iberismo hispânico, na sua apressada comparação entre as regulares cidades da América espanhola, e o pseudo acaso das cidades coloniais portuguesas. A metáfora do ladrilheiro, que correspondia ao rigor no traçado das cidades da colonização espanhola, onde a regularidade é celebrada, frente ao semeador, que lança suas sementes ao acaso, que denunciava o aleatório português. Na verdade, já foi comprovado, que o rigor dos engenheiros militares portugueses era fruto de um projeto muito mais sofisticado de cidade, que a pensava a partir de seu sítio, e não a partir dos cânones homogeneadores da Lei das Índias, consolidadas com Felipe II. Cada cidade, no caso português deveria ter uma implantação específica, capaz de reunir projeto e sítio numa interação mais articulada e pensada, ao invés de um projeto genérico e repetido, com a malha xadrez reguladora. Portanto, uma solução dotada de uma potência a ser celebrada. Apesar dessa maior sofisticação de projeto, nas cidades de colonização portuguesa, ainda permanecem argumentos de uma certa subalternidade com relação às nossas vizinhas cidades de gênese espanhola, com um modelo de legibilidade única, mantendo-se pela necessidade de se contrapor ideologicamente às cidades pré-colombianas (astecas, maias e incas), sempre mais desenvolvidas do que as aldeias dos índios brasileiros.

É emblemático dessa atitude, o comportamento de alguns liberais nacionais, que sempre renegam a história, a composição social e os procedimentos cotidianos do povo como inadequados a modernização capitalista. Nesse sentido, o artigo do publicista, ou antecipador de marqueteiro, Roberto Campos é exemplar da eterna necessidade no pensamento conservador de predominância da ordem frente ao localismo, e até ao liberalismo:


"Busco sem êxito razões para ser otimista, mas recorrentemente recaio em depressão ao ser lembrado das tres raízes de nossa cultura;  a cultura ibérica, que é a cultura do privilégio; a cultura africana, que é a cultura da magia; e a cultura indígena, que é a cultura da indolência. Com esses ingredientes, o desenvolvimento é uma parada."* CAMPOS 1991

Mas tal atitude não se restringe aos ideólogos publicistas, como Roberto Campos, mas também atingiu o campo da ciência articulada a pesquisa, que por meio de citações eruditas mantinham nosso complexo de vira-latas. Para esses outros não tínhamos a feudalidade, nem portanto a comunidade burguesa em luta contra senhores de terra, fazendo de nossas cidades fortalezas autocráticas desconfiadas do campo que imperava, e onde dominava o coronelismo e o caudilho. A temática é sempre a mesma a necessidade de apagar nossa história, e reeducar nosso povo a partir de modelos europeus ou estado unidenses, que refaçam nossa filiação ao ocidente. O obscurantismo, o autoritarismo e o burocratismo sempre atropelam os processos decisórios por cima, a partir de uma necessidade de urgência social.
2.3.            Rio de Janeiro, segurança, inteligência, originalidade e simbolismo, uma oportunidade perdida:


A questão da segurança, que tanto angustia a sociedade brasileira não está a margem desse posicionamento da subalternidade, de nosso parque urbano e de uma certa incapacidade de pensar nossos problemas a partir da originalidade, da inteligência e da criatividade de sua própria gente. Por exemplo, a política de segurança pública de qualquer cidade no Brasil não pode ficar alheia a necessidade de se articular com o investimento na autoestima de comunidades sujeitas a exceção das atividades paralelas do tráfico de drogas ou outras, como nas favelas. Essa foi, e permanece sendo a proposta implantada primeiro pelo Programa Favela Bairro no Rio de Janeiro, e posteriormente na cidade de Medellin na Colômbia. Essa segunda cidade, teve um enfrentamento com a violência muito maior do que o vivido nas cidades brasileiras, lá, assim como aqui era claro a necessidade de investimento em auto-estima das comunidades. Apesar da primazia do Rio de Janeiro, mais uma vez se revela a desarticulação das políticas públicas no Brasil, pois o programa de urbanização de favelas do governo municipal, não coincidiu no tempo com o das Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs) do governo estadual. Revelando mais uma vez a perversidade da forma de operar de nossas elites, o Programa Favela Bairro se inicia em 1995, e sofre um claro declínio a partir da conquista da Olimpíada pela cidade, enquanto o programa das UPPs se iniciam em 2008 e declinam a partir do seu estabelecimento em grandes favelas, como Rocinha e Alemão.

No Brasil, a política de segurança tradicionalmente é muito mais responsabilidade dos governos estaduais, que controlam o aparato das polícias civil e militar, do que dos municipais, que apenas possuem a Guarda Municipal. Mas, apesar de problemas só mais tarde identificados, havia uma clara virtude na política de segurança das UPPs no Estado do Rio de Janeiro, exatamente pelo fato dessa considerar o território como um dado concreto. Afinal, a percepção de segurança nos mais diversos extratos não é a mesma quando estamos num bairro como o Leblon, ou na Favela do Morro Dona Marta. A dimensão territorial, espacial e demográfica são fundamentais também para as políticas de educação, saúde,  lazer, e outras, pois as oportunidades não estão distribuídas de forma equânime no território da cidade. Afinal, os níveis de urbanidade existentes são compreendidos de forma totalmente diferente entre bairros como Ipanema no macro-centro do Rio de Janeiro e Alcântara em São Gonçalo, na sua periferia. Paradoxalmente, essa mesma questão espacial também determinou o enfraquecimento da política das UPPs, pois, ao reproduzir mecanicamente a mesma solução do Morro Dona Marta, uma pequena favela (1ª comunidade a ser contemplada no programa em 2008), em outras comunidades muito maiores como na Rocinha e no Alemão revelou, que essa gestão não atentou para as diferenças de escala, demografia e tipologia entre esses assentamentos. Enquanto, na favela Dona Marta se percebia uma comunidade de interesses coesos, nas grandes favelas há uma grande diversidade de localidades, e portanto distintas expectativas com relação à proximidade policial.  Por outro lado, a questão da segurança é muito mais ampla do que a mera presença policial, envolvendo o controle social, que só pode ser alcançado na medida em que a urbanidade se faz presente, com serviços como coleta de lixo, distribuição de água, coleta de esgotos, iluminação, acessibilidade, mobilidade, etc... A desarticulação temporal dos dois programas denunciava a ausência de coordenação no Estado brasileiro, determinando uma desconfiança sobre suas intenções.
Nesse sentido, no caso específico da favela da Rocinha houve uma clara perda de oportunidade, na história recente da cidade, com o concurso de projetos para urbanização da área, promovido pelo IAB-RJ, e vencido pelo escritório do arquiteto Luiz Carlos Toledo, em 2006. Esse concurso mobilizou dois seminários com a população da favela, organizados pelo escritório antes da proclamação do resultado, que apontava pontos positivos e negativos do morar nessa localidade. Sem dúvida, um esforço notável, uma vez que mobilizava a população da comunidade para se expressar, antes da garantia da remuneração do contrato. Após a decretação do vencedor, o escritório Luiz Carlos Toledo arquitetos associados construiu um projeto com intensa participação da população, promovendo claramente uma ampliação da sua autoestima, e apontando para uma pacificação ampla com o entorno e com a cidade. O projeto portanto, envolvia uma estratégia de longo prazo, ao mesmo tempo inteligente, criativa e mobilizadora de um simbolismo novo, pois partia de uma solução socialmente compartilhada. Não se tratava mais de garantir uma integração entre cidade formal e favela, apenas do ponto de vista da primeira, mas ouvindo e portanto incluindo uma subalternidade pouco ouvida em nossa história, o precariado da favela.

No entanto, ao contrário do que se esperava, e desse esforço notável, o projeto não foi integralmente implantado. Em 2013, o governo do Estado do RJ anuncia a substituição dos planos inclinados do projeto, a partir da solução pensada e negociada, por teleféricos, visualmente mais impactantes. Era claramente a substituição da participação de toda a Rocinha pelo tradicional discurso autocrático dos políticos, que além de não se comprometerem com o tempo mais longo do projeto da cidade, escondiam interesses escusos por benefícios pouco republicanos. A troca significa um expressivo aumento no orçamento da transformação, mudando o orçamento de R$70 milhões dos planos inclinados, para R$700 milhões nos teleféricos. A população da Rocinha se mobiliza numa enorme manifestação, que fecha a Avenida Niemyer e acampa em frente ao apartamento do governador no Leblon, reinvindicando saneamento básico, e o retorno às concepções do projeto original. Mais uma vez se detecta por parte de nossas elites a incapacidade de perceber as aspirações da população favelada da cidade, e deixar que a construção de seu vir-a-ser possa ser socialmente compartilhado. Ao final, a pergunta, que hoje perpassa a cidade do Rio de Janeiro, e particularmente o bairro de São Conrado e da própria Rocinha, submetido a guerra de facções do tráfego de drogas é; “Como estaríamos hoje, na área da segurança, se tivéssemos perseverado no projeto e no planejamento estruturado pelo escritório de Luiz Carlos Toledo, arquitetos associados?
3.      Conclusão, ou os perigos do projeto multicultural:


Na verdade, a atuação multicultural, inclusiva demanda do projeto uma postura de audição efetiva de parcelas expressivas da população brasileira para a produção imediata de um impulso de coesão social, que nunca esteve presente em nossa história. As cidades brasileiras são testemunhas materializadas do tipo de desenvolvimento, que sempre tivemos, aonde os investimentos, as infraestruturas sempre foram pensadas para serem apropriadas por poucos, deixando a margem o conjunto da sua população. Nessa condição, o Rio de Janeiro e as cidades brasileiras são objetos exemplares no enfrentamento do problema da produção de um desenvolvimento inclusivo, pois elas são vivenciadas pelos diversos extratos sociais de forma concreta, e mostram aos diversos precarizados essa apropriação diferenciada dos benefícios. São portanto, vivências que tornam possível a consciência da superexploração do neoliberalismo, com seu discurso concorrencial para que cada individuo se auto produza contra todos. Aonde, fica cada vez mais claro, que o neoliberalismo hegemônico que perpassa a experiência contemporânea pensa a partir da competição e não da solidariedade. A libertação desse processo inercial envolve a afirmação primeira da grande potência que representa a diversidade cultural e social que é a experiência do Rio de Janeiro, mas isso é apenas um começo, não a garantia de sua plena implantação.

O neo liberalismo nada mais é do que o pseudo mercado autoregulamentado subordinado pelas finanças internacionais, que possuem uma lógica sempre contingente e singular impossível de ser prevista. Daí a emergência do termo estratégico, que denuncia o caráter sempre precário e contingente dos objetivos, que devem se submeter às condições sempre mutantes dos ditames financeiros e rentistas, que sempre se sobre impõe-se aos argumentos da solidariedade, ou mesmo do trabalho. Há um claro declínio da crença da capacidade de planejar, projetar e prever, deixando a sociedade entregue ao contingente e ao inesperado, que na verdade são estratégias impostas pela lógica rentista e financeira. O produtivo deu lugar ao financeiro, que sobre determina as práticas e decisões mais usuais e cotidianas condicionando essas a um horizonte de tempo de curto prazo, aonde o ciclo especulativo se realiza de forma plena. Essa ordenação ideológica foi obtida de forma dissimulada, conquistando o senso comum por imposição, trancando o sujeito numa jaula de aço que ele mesmo construiu. Dessa condição deriva que o neo liberalismo está intrinsecamente ligado ao neo conservadorismo, pois um elege como unidade modelo de funcionalidade a empresa, enquanto o segundo aponta para a família;

" Na realidade, entre neoliberalismo e neoconservadorismo existe uma concordância que não é nada fortuita: se a racionalidade neo liberal eleva a empresa a modelo de subjetivação, é simplesmente porque a forma-empresa é a forma celular de moralização do indivíduo trabalhador, do mesmo modo que a família é a forma celular da moralização da criança." DARDOT e LAVAL 2016 página388

As recentes operações urbanas na cidade para promover suas Olimpíadas em 2016, bem como a recente eleição de um neo conservadorismo retrógrado e saudosista, tanto no governo federal, como também na esfera Estadual e Municipal mostram os bloqueios que podem sofrer o projeto multicultural. A construção e consolidação do tema, Todos os mundos, Um só mundo, Arquitetura 21, a partir de uma organização da sociedade civil, o IAB, é a garantia de sua capilaridade de baixo para cima, de forma molecular. Por outro lado, a capacidade de penetração da doutrina neoliberal e neoconservadora está articulada pela empresa e pela família, que passaram a ser o ponto ou unidade de catequese das mentes e almas na interseção complementar com nossa sociedade, conseguindo um sucesso episódico. O objetivo é a mercantilização generalizada, a concorrência incessante, e a eficiência não mais produtiva mas financeira, que começam a ser doutrinadas por parentes ou por colegas concorrentes, desde a mais tenra idade. Como se percebe, o neo liberalismo não é puramente econômico, mas na verdade comportamental, e portanto ideológico, condicionando os mundos da vida de Habermas a uma prática eleita como nova racionalidade, que precisa ser denunciada como farsa, e como bloqueadora da comunicação intersubjetiva. A  obstrução do diálogo a partir da lógica impositiva do regime fiscal demonstra essa capacidade camaleônica do neo liberalismo e neo conservadorismo, de constante condenação do Estado, da solidariedade, da consciência de grupo, da social democracia e da repetida celebração da Empresa, da concorrência, do equilíbrio da renda, e do esforço solitário.
Para esse combate, o modelo de pensar a história em Gramsci, sempre envolveu essa complexa relação entre transformação e preservação. A política para Gramsci é sempre um jogo de convencimento, onde grupos de interesses específicos constroem narrativas explicadoras (ideologias), que por obter um poder de convencimento amplo (hegemonia), se consolidam  como predominâncias.

"O capitalismo é um fenômeno mundial e seu desenvolvimento desigual significa que as nações não podem estar individualmente no mesmo nível de desenvolvimento ao mesmo tempo...o ímpeto de progresso não estar firmemente vinculado ao vasto desenvolvimento local [...] mas, ao contrário, ser reflexo de desenvolvimentos internacionais que transmitem suas correntes ideológicas para a periferia - correntes nascidas do desenvolvimento produtivo dos países mais avançados." GRAMSCI Q19 página90

Gramsci sempre mencionou a necessidade das narrativas dos grupos de interesses superarem os limites corporativos, ou dos interesses imediatos, sensibilizando parcelas mais amplas da população, alcançando o consentimento geral, ou hegemonia. Daí a necessidade imperiosa de superação da auto vitimização dos vencidos, passando a localizar em suas perdas e carências a potência de sua forma de pensar, que necessita do outro e do cosmopolitismo. O sistema de pensamento gramsciano envolve a expansão capitalista no mundo, seu poder de convencimento e sua persuasão, a interdependência entre Estados nacionais e suas especificidades culturais e econômicas são levadas em conta. Dentro dessa estrutura de pensamento há claros conceitos espaciais e históricos como, a centralidade e a periferia, ou a vanguarda e uma certa retaguarda tardia, que organizavam uma hierarquia de pensamento. Tais acontecimentos eram explicados pela ampliação tardia do capital pelo mundo, que invariavelmente envolviam soluções autoritárias e autocráticas, onde o Estado assume uma clara hipertrofia frente a fraqueza da sociedade civil. Gramsci por sua origem na Sardenha, tinha uma consciência apurada das noções de periferia e subalternidade, que perpassavam as mentalidades do sul da Itália, agrário e atrasado, em relação ao norte, urbanizado, desenvolvido e industrializado. Noções como dirigente, comando, intelectual estão estruturadas em seu pensamento para romper a estrutura de dominação vertical e autoritária, estabelecendo-se uma relação com mais horizontalidade, permitindo manifestações moleculares e dispersas, exatamente, a horizontalidade de Habermas.

Para tanto, precisamos também reconhecer, que a via reacionária de modernização capitalista é um pouco a tônica da nossa história, tanto no caso da Revolução de 1930, como também na Ditadura Civil e Militar de 1964, ambas com claras conotações autoritárias, que afastam os setores populares sempre com o argumento do despreparo ou imaturidade das massas de defender seus interesses. Na verdade, alguns autores (VIANNA 1997) retrocedem ainda mais atrás em nossa história nessa analogia com o conceito gramsciano da Revolução Passiva, na transmigração da familia real portuguesa para a Colônia, que se deve a um movimento defensivo em relação à irradiação da Revolução Francesa, sob Napoleão. Nesse contexto, a condução da expansão da acumulação capitalista é feita também a partir do Estado, com uma clara hipertrofia das suas iniciativas frente as dos indivíduos e cidadãos. Uma espécie de minoridade das ações moleculares, dispersas na sociedade civil, que invariavelmente esperam a iniciativa indutora do Estado, que estão presentes nas nações de desenvolvimento tardio do capitalismo. O modelo de capitalismo aonde o Estado assume maior protagonismo traz consigo uma via autocrática e autoritária, que ao mesmo tempo que implanta a nova ordem concorrencial, também paternaliza e reprime as iniciativas moleculares na sociedade. Essa argumentação possui profundos vínculos espaciais, determinando um centro irradiador e a periferia, mas também sub centros modernizadores, como o norte da Itália ou São Paulo, e periferias arcaicas como o sul da Itália ou o Nordeste do Brasil. Nesse quadro a modernização periférica não é só penalizada pela proximidade do arcaico, mas também e principalmente é beneficiada, super explorando e se apropriando da proximidade da precariedade, depreciando o arcaico.

Nesse contexto, o interesse pela manutenção do arcaico e da proximidade do subdesenvolvimento passa a ser funcional, possibilitando os acordos entre elites modernizantes e antigas oligarquias arcaicas, que realizam o benefício mútuo, represando a maioridade da cidadania. A modernização se beneficia do arcaico, pois esse último garante um processo de acumulação muito mais vantajoso, que ao final consolida o acordo entre realidades que pareciam irreconciliáveis. Esse contexto também determina uma certa subalternidade do nosso pensar, que literalmente não enxerga nossa realidade, se refugiando em outros modelos, que fatalmente não se ajustam as nossas condições. Um campo emblemático dessas analogias é a política habitacional no país, que invariavelmente tem como premissa, o não reconhecimento da favela, como um fruto particular de nossa realidade, e, que num determinado estágio no futuro de nosso desenvolvimento nacional poderia ser suprimida integralmente. A habitação precária sempre foi fruto do não atendimento de parcelas expressivas de nossa população pelo mercado formal de produção habitacional no Brasil, que mesmo nos momentos de grande boom econômico, nunca conseguiu atender uma faixa entre 30 a 40% de nossa população, que não acessa o financiamento da casa própria. Essa minoridade do nosso desenvolvimento, que perpassa todas as cidades brasileiras, afinal todas possuem assentamentos improvisados tipo favelas é por um lado, a demonstração da precariedade de nosso mercado imobiliário, mas por outro também pode ser vista como uma potente solução elaborada pelo conjunto da sociedade civil molecular, diante dessa inacessibilidade a moradia. A favela brasileira não deve ser nunca romantizada, afinal ela é claramente consequência da não universalização do nosso mercado imobiliário, portanto de uma precariedade efetiva, mas deve ser vista como uma solução criativa e potente, encontrada por uma parcela de nossa população, que parecia ter sido abandonada pelo país. No distante ano de 1963, no governo João Goulart, no âmbito das reformas de base; agrária e urbana, o mesmo IAB promoveu um seminário no qual já afirmava que a urbanização de favelas deveria fazer parte da política habitacional brasileira, com a promoção de sua urbanização.

O pensamento de Gramsci, que possui profundas conotações espaciais e históricas sobre o desenvolvimento da economia capitalista no mundo, como um sistema único e interdependente nos ajuda a construir a consciência de uma certa subalternidade, presente no pensar brasileiro, que nos impede de identificar as especificidades de nosso processo. A emergência tardia de uma economia concorrencial, represada pela escravidão e por outros traços de nossa história, determinou uma incapacidade de identificação de manifestações positivas em nossa precariedade, como a favela, que precisam mudar. A leitura de Gransci, nos permite refletir de forma mais estruturada nossa inserção na economia mundo, passando a identificar nossa subalternidade dentro de suas reais potencialidades, e não apenas como negatividade. Por outro lado, a construção de Habermas, da intersubjetividade compartilhada assinala para uma metodologia de diálogo e escuta de agentes precarizados, que nunca fizeram parte de nosso desenvolvimento, realizando com sua participação, sua inclusão. Os perigos para o projeto multicultural gravado no tema, Todos os mundos, um só mundo, Arquitetura 21 são imensos e não estão garantidos pela sua simples explicitação. Mas seguindo, Wittgenstein podemos pelo menos afirmar, “que aquilo que não pertence a linguagem, simplesmente ainda não existe.”

NOTAS:

* A citação está em VIANNA 1997, artigo do jornal O Globo de 14 de julho de 1991 de Roberto Campos, sintomaticamente escrito no dia 14 de julho

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VIANNA, Luiz Werneck – Não sairemos desse mato sem cachorro sem a política e os políticos que nos sobraram – Jornal Estado de São Paulo 04 de junho de 2017