sábado, 3 de novembro de 2018

A cidade e o comum

Cidade de Ouro Preto, um comum
"O capitalismo continua a desenvolver sua lógica implacável, mesmo demonstrando dia após dia uma terrível incapacidade de dar a mínima solução às crises e aos desastres que ele próprio engendra." DARDOT e LAVAL 2017, página11

Há muito que as cidades e seu patrimônio construído, sua arquitetura, são espaços difíceis de serem cercados e apropriados, apesar da emergência de uma lógica de privatizações e cercamentos do mundo contemporâneo, a ideologia neoliberal. É claro, que a industria do turismo, uma certa condominialização dos mundos da vida, um empresariamento do espaço e outras práticas querem promover o cercamento e a exclusividade na fruição desses objetos, mas ela sempre encontra resistência num senso comum instalado que identifica na arquitetura, um comum. O grande crítico italiano de arquitetura, Bruno Zevi, mencionava a responsabilidade presente no objeto e no conjunto construído, responsabilizando os arquitetos como impositores de usos e formas, retirando da fruição da obra de arte, a livre escolha. Um objeto na cidade, um edifício, uma rua, ou uma quadra serão impostos a comunidade, que terá que conviver com eles, diferentemente de uma obra literária, de artes plásticas, cinematográfica e outras, que permitem a escolha. Daí o caráter público e comum da cidade, da arquitetura, do paisagismo e do design que disciplinam, orientam, e se constituem como um patrimônio comum, apesar de muitas vezes estarem na esfera da iniciativa privada ou estatal. Um bem comum está muito além da esfera estatal ou privada subvertendo uma ordenação, que no mundo contemporâneo aprisiona o debate político, entre esquerda e direita. Na leitura do senso comum, numa clara redução simplificadora, a esquerda é pró estatal, enquanto a direita é pró privatização. Mas, o que seria o comum?

"A raiz etimológica da palavra "comum" nos dá uma indicação decisiva e uma direção de pesquisa. Émile Benveniste indica que o termo latino munus nas línguas indo-européias, pertence ao vasto registro antropológico da dádiva e designa ao mesmo tempo um fenômeno social específico; por sua raiz, remete a um tipo particular de prestações e contraprestações que dizem respeito a honras e vantagens ligadas a encargos... Encontramos nos significados do termo a dupla face da dívida e da dádiva, do dever e do reconhecimento, própria do fato social fundamental da troca simbólica... Não se trata, primordial ou principalmente, de dádivas e obrigações entre parentes e amigos, mas, na maioria das vezes, de prestações e contraprestações referentes a toda uma comunidade. É o que se encontra tanto na designação latina do espetáculo público dos gladiadores (gladiatorum munus) como no termo que exprime a estrutura política de uma cidade (municipium) formada pelos cidadãos do município (municípes)." DARDOT e LAVAL 2017, página25

Em 1842, o jovem Karl Marx escreveu uma série de artigos no Reinish Zeitung sobre a lei que impedia a coleta de lenha nas florestas privadas da Renânia, que constituem a abertura do filme já comentado aqui do diretor haitiano Raoul Peck*, co-escrito pelo francês Pascal Bonitzer, que descreve o começo da vida do filósofo alemão, desse momento até a síntese do Manifesto Comunista em 1848, junto com Engels. Esses textos estão brilhantemente comentados num livro contemporâneo de Pierre Dardot e Christian Laval, intitulado Comum, ensaio sobre a revolução do século XXI, que destaca a profundidade das reflexões de Marx a partir do problema da coleta de lenha naturalmente caída no solo, com respeito a filosofia do direito, um tema caro ao seu mestre, o também filósofo Hegel. Trata-se de um debate importante para nossa contemporaneidade, envolvendo o conflito entre direito de propriedade e direito de uso, proprietários e despossuídos, ricos e pobres, que perpassam a ampliação da lógica capitalista no mundo, seja no século XIX, ou no XXI. Enfim, o comum. Ao contrário da filosofia hegeliana do direito, que relega os usos e costumes ao informe e ao indeterminado, Marx reconhece no Direito Consuetudinário** dos pobres uma certa positividade e racionalidade, no sentido especulativo do termo. A proposição envolve também a ideia de atividade como determinadora da posse de qualquer coisa, apontando o trabalho como o momento constitutivo do direito de propriedade. Como no caso dos produtos que brotam de forma natural e ao acaso da floresta, como frutos silvestres ou animais, que não dependem da atividade do proprietário seriam de acesso comum, assim como os galhos que caem no chão pelo efeito do vento.

"Os gravetos nos servirão de exemplo. O laço orgânico que têm com a árvore viva é tão inexistente quanto o da cobra com seu despojo. Por meio da oposição entre os ramos e os galhos secos, abandonados pela vida, quebrados, e as árvores solidamente enraizadas, cheias de seiva, assimilando organicamente o ar, a luz, a água e a terra para alimentar sua forma e sua vida individual, a natureza exibe de certo modo a oposição entre a pobreza e a riqueza [ die Natur selbst stelt... der Gegensatz der Armut und Reichtum dar]. Esta é a representação física da pobreza e da riqueza. A pobreza humana sente esse parentesco e deduz desse sentimento de parentesco seu direito de propriedade; assim, enquanto atribui a riqueza físico-orgânica à necessidade e a seus acasos. Nesse movimento das forças elementares, reconhece uma força aliada, uma força mais humana que os homens." Karl Marx, citado em DARDOT e LAVAL 2017, página370

A ideia de exclusão dos procedimentos vitais contida na queda dos galhos, separados da vida das árvores é análoga a situação da pobreza na sua ruptura do vínculo orgânico com a sociedade, uma certa exclusão da pobreza dos estamentos sociais em geral. O direito romano, base do direito ocidental em vários países, definia a existência de um ager privatus e um ager publicus, que se auto conceituavam mutuamente. Os proprietários privados eram impedidos, no sentido de serem privados do acesso ao ager publicus, enquanto os cidadãos sem propriedade acessavam as terras de domínio público. Se reconhecia então duas formas de apropriação privada; a propriedade, e a posse, a primeira era obtida por atribuição da terra comum, enquanto a segunda era tudo que existia fora dessa atribuição, e era usado por aqueles que não tinham propriedade. Importante assinalar, que o status de proprietário é condicionado pelo uso efetivo do objeto de propriedade, o que implica que a falta de uso, ao final de alguns anos determinava a perda do título de propriedade. Marx também assinalava um outro direito, o Germânico, que definia, que a propriedade usufundada não era transmitida por herança. Essas formas de relativizar um certo valor absoluto concedido à propriedade e ao direito privado, em nossa civilização é fundamental para a gestão da cidade em nossa contemporaneidade, onde o valor da terra urbana muitas vezes assume proporções absurdas, que excluem parcelas importantes de nossa população de áreas e bairros exclusivos. Aonde se nota a manutenção de um estoque de terras urbanas inutilizáveis, que aguardam valores mais atraentes para se materializar em habitação, serviços, ou comércio pelo mercado. Daí a prática de invasão ou ocupação irregular em nossas cidades, tanto pelas favelas, como também pelos loteamentos irregulares, e ainda pela tomada do nosso patrimônio aonde as primeiras e as últimas disputam sempre uma maior centralidade, enquanto os parcelamentos estão nas periferias. Há portanto no direito, a menção ao "instinto jurídico dos pobres", que contrasta com os costumes dos privilegiados e proprietários, que possuem um caráter irracional.

"O recurso ao instinto jurídico dos pobres também tem a vantagem de legitimar a nítida oposição entre os costumes dos pobres e os costumes dos privilegiados, portanto de resolver a espinhosa questão do conflito entre os diferentes tipos costumes. Pois se, em ambos os lados, topamos com o fato inegável dos costumes ancestrais, no plano do direito o critério da antiguidade não tem nenhum valor. Se esses dois tipos de costumes se opõem radicalmente, é porque os costumes dos nobres, embora seja costumes, não são direitos, mas são "não direitos" contrários a razão, ao contrário dos costumes da pobreza, que são condizentes com o "direito racional". DARDOT e LAVAL 2017, página372

Nossa constituição também consagrou e diminuiu o caráter absoluto da propriedade privada, pautando que ela deveria cumprir seu papel social, adequando-se a utilidade do interesse comum, permitindo sua acessibilidade ampla. No entanto, os artigos 182 e 183 da nossa Constituição Federal de 1988 não estão sendo cumpridos, bem como a sua regulação, o Estatuto da Cidade (Lei 10257/01), que data de 2001. Por conta disso, as cidades brasileiras permanecem como máquinas de exclusão, sem capacidade de gerar um projeto gerador de coesão social, e possuem um imenso passivo de descaso com seu patrimônio construído. A emergência de uma ideologia conservadora, que celebra o empresariamento, a concorrência, a solução voluntarista e individual, absolutizando a propriedade privada, e desdenha da colaboração entre os cidadãos, da solidariedade, da função social da propriedade nas últimas eleições poderá representar um agravamento da exclusão das parcelas precarizadas de nossa população, ampliando a violência e a destruição de nosso patrimônio construído.

NOTAS:

*O filme é o Jovem Marx, e o meu artigo aqui no blog é O Filme, O jovem Marx
**Direito Consuetudinário é o direito que surge dos costumes de uma determinada sociedade, sem passar pelo processo formal de registro em lei, assim como a lingua que ele fala e as suas crenças compartilhadas.

BIBLIOGRAFIA:

DARDOT, Pierre e LAVAL, Christian - A nova razão do mundo, ensaio sobre a sociedade neoliberal - Editora Boitempo, São Paulo 2016

DARDOT, Pierre e LAVAL, Christian - Comum, ensaio sobre a revolução do século XXI - Editora Boitempo, São Paulo 2017