quinta-feira, 11 de outubro de 2018

A colheita de lenha, o pré-sal, o comum e nossas eleições de 2018

Gravetos e lenha que caem no chão pertencem a alguém?
Na cena inicial do filme o Jovem Marx, um grupo de pessoas visivelmente precarizada e pobre coleta a lenha caída numa floresta, a cena é interrompida pelo ataque de uma guarda montada, que reprime com truculência a atividade. A cena narra um artigo do jovem Karl Marx no jornal Reinish Zeitung, que descreve a criação de leis pelo Estado Prussiano, cercando e privatizando áreas de florestas que antes da aceleração do capitalismo no século XIX eram áreas comuns. Muito além disso, narra uma certa irracionalidade nas práticas do comportamento capitalista, uma vez que as pessoas apenas coletam a lenha caída no chão sendo por conta disso atacadas em nome do direito de propriedade, colocando em confronto dois direitos; o do uso, e o da propriedade. Então, o direito de propriedade supera outras argumentações, que poderiam afirmar a lógica do aquecimento, ou da cocção dos alimentos, ou da extração e do uso obtidos por essa lenha catada. Desde então, apesar da expansão contínua do cercamento de diversos comuns, que eram considerados como bens inapropriáveis porque pertencentes à todos continuamos produzindo bens e valores que são desfrutados de forma coletiva. O Patrimônio histórico construído pela cultura arquitetônica de diferentes épocas, o espaço público de nossas cidades, onde não se pode constranger o acesso de qualquer pessoa, espacialidades como a Praça de São Marcos em Roma, o Adro de Bom Jesus do Matosinhos em Congonhas do Campo, a Praça dos Tres Poderes em Brasília, a praia no Rio de Janeiro são lugares comuns. São locais, que concentram esforços simbólicos notáveis, que são de certa forma inapropriáveis do ponto de vista de que sua privatização é inviabilizada por um costume compartilhado, que também determina a inexistência de qualquer constrangimento a seu acesso.

A política e a história do Brasil tiveram sempre essa conotação de negar acesso ao comum, por parte de amplas parcelas da nossa população, havendo sempre um hiper dimensionamento da exclusividade, restritiva de sua elite endinheirada. A libertação dos escravos em 1888, pela princesa Isabel mostra-nos um gesto fundador dessa ausência de generosidade, por parte de nossas elites, que de forma concomitante com essa supressão da escravidão, sem qualquer indenização aos negros, promove simultaneamente a atração de mão de obra imigrante branca, que impossibilita a sobrevivência digna da massa de negros excluídos. O projeto macabro chega a declarar explicitamente a necessidade de promover o embranquecimento de nossa composição populacional, para aprimoramento do país. Um outro exemplo, ainda não inteiramente relatado é o caso da descoberta das reservas de petróleo do pré-sal, na costa brasileira, mais um caso emblemático dessa resistência por compartilhar com a maioria da população das riquezas, que ainda não estavam cercadas. Afinal, tratava-se de um acontecimento geológico, num passado muito distante, que determinou a presença dessas reservas na costa brasileira. Como o direito a sua exploração pode ser cercado e privatizado? Não seriam essas reservas patrimônio da humanidade? Como Ouro Preto? Ou o Museu Nacional em São Cristóvão no Rio de Janeiro? Ou ainda a lenha que cai no chão e garante a comida às familias brasileiras, que simplesmente não conseguem mais acessar o preço do gás de cozinha? E, aqui se conectam as duas pontas dessa narrativa, o pré-sal produtor também de gás de cozinha e a lenha catada no chão das periferias brasileiras, por contingentes de precariados que não mais conseguem pagar pelo botijão.

Há portanto, uma constante ampliação do horizonte de brutalidade da política brasileira, que tem como premissa de seu projeto a exploração exclusiva dos recursos, não permitindo seu desfrute de forma ampla, sejam eles lenha ou gás de cozinha. A coleta de gravetos e lenha na sociedade brasileira continua sendo uma prática, como mostra a foto estampada nesse artigo, o pior é que essa prática se restabelece na medida em que parcelas expressivas da população brasileira, não conseguem mais comprar gás de cozinha para fazer sua comida. A face mais aparente dessa ânsia por exclusividade está na operação da governabilidade no Congresso Nacional em Brasília, que é invariavelmente dependente do fisiologismo do Centrão. Um grupo de parlamentares sem alinhamento ideológico que opera a partir da lógica do "toma lá, da cá", isto é a partir de benefícios pouco republicanos, exclusivos. Diferentes governos do nosso espectro político demonstraram pouca capacidade de criação institucional, fora e além dessas práticas oligárquicas, excusas e privatistas, que se digladiam por benefícios particulares e privatistas. A mudança dessas práticas está hoje no cerne da questão das nossas eleições presidenciais, que estruturam o nosso "presidencialismo de coalizão", que precisam superar um módus operandi calcado em interesses particulares.

A partir de 2013, com as jornadas de protestos, que se iniciam pela cobrança de melhores serviços públicos, notadamente transporte público, saúde e segurança, e depois descambam para uma genérica e perigosa delação da corrupção, sem viés ideológico, os grupos de esquerda dos mais diversos matizes demonstram um certo medo da mobilização social, então em curso, e uma certa incapacidade de propor uma nova hegemonia. É claro, houve uma confusa presença de grupos anarquistas e fascistas que praticavam várias depredações em bens públicos, se apresentando nas manifestações contra qualquer filiação partidária. Mas a partir desse momento, a esquerda ficou refém de um discurso redutor, simplificador e binário entre estatismo e mercado, sem lembrar de uma das primeiras lições de sua cartilha, a de que o Estado é uma criação da burguesia, e basicamente zela por seus interesses. Aliás, o neo liberalismo, que é distinto do liberalismo clássico exatamente pela importância que confere à construção do Estado Nacional, como o principal regulador do mercado, e criador das condições de libertação da concorrência e do cercamento dos comuns tem demonstrado maior capacidade de produzir hegemonia no Brasil e em nosso mundo contemporâneo. A direita conservadora e retrógrada aparece não mais como interessada na manutenção do status quo, mas como propositora de mudanças e transformações, empurrando a esquerda para o campo da manutenção e preservação.

E, aqui cinco anos depois chegamos as nossas eleições de 2018, onde de um lado está a barbárie, que prega que a ditadura civil-militar no Brasil deveria ter torturado menos e matado mais, ou que ela não existiu, ou que a solução para o problema da violência é armar os cidadãos de bem, ou que proclama a celebração de um torturador como o General Ustra, que realizou verdadeiras atrocidades contra brasileiros que pensavam diferente dele. E, de outro um professor do Partido dos Trabalhadores (PT), Fernando Haddad, que apesar de ter operado nossa governabilidade como as outras diversas correntes de nosso espectro político dentro da barganha fisiológica, "do toma lá da cá", nunca se manifestou com teses autoritárias, contra a democracia. Na verdade, é preciso reconhecer e cobrar mudança na forma de operar essa governabilidade do PT, buscando maior transparência e o embate legítimo de interesses que possam ser explicitados e identificados como interesses comuns Portanto, para uma pauta mais afirmativa e propositiva é fundamental colocar em xeque antigas formas de negociação com o Congresso Nacional e com lideranças políticas. Assumir compromissos com uma governabilidade transparente e baseada em barganhas de interesses amplamente declarados, que representam teses concretas e de interesse comum pode muito bem aperfeiçoar a combalida democracia brasileira.