terça-feira, 26 de janeiro de 2021

Brunelleschi e a Cúpula, fragmentação e coesão no processo de projeto; da concepção inicial ao executivo


A Igreja de Santa Maria del Fiori em Florença, O Batistério,
o Campanário e a Nave (0)

Numa olhada rápida no dicionário sobre o significado da palavra projeto percebe-se; "substantivo masculino 1. desejo, intenção de fazer ou realizar (algo) no futuro; plano. "fazia projetos para sua aposentadoria" 2. descrição escrita e detalhada de um empreendimento a ser realizado; plano, delineamento, esquema." A primeira atribuição é ampla, e aponta para nós que a ação de projetar e planejar envolve uma aspiração humana, um desejo de fazer ou realizar, que insere previsibilidade em nossas vidas. O direito a acessar uma certa previsibilidade parece conferir um gradiente de maior qualidade de vida, principalmente no que se refere a aposentadoria particular, ou o desfrute de um tempo de maturidade liberto da luta incansável da sobrevivência de cada um de nós. Efetivamente projetamos uma série de coisas, da perda de peso, a uma viagem, da compra de uma casa ou carro, a concepção de filhos, de uma tese de doutorado a programação de aulas de um período. A palavra está também cindida pelo prefixo "pro", que denota antecipação, e pelo sufixo "jactar" lançar, atirar, portanto, projetar é lançar com antecedência. No campo mais específico da arquitetura e do urbanismo, projetar é se antecipar, definindo de forma precisa transformações e obras demandadas e desejadas pelas comunidades humanas. O plano e o projeto, para estes ofícios são processos detonados pela pesquisa e esclarecimento, do que as comunidades humanas desejam, pois há invariavelmente uma imprecisão nessa explicitação. O filósofo italiano Antônio Gramsci, considerava uma das conquistas mais promotora da humanização, a previsão, que ele mencionava como um dom, citando o folclore e a tradição da mitologia, pertencente aos cegos e aos menos dotados. Em Tebas (na mitologia grega, o cego Tirésias), e em Dante (no canto X do Inferno, a figura de Cavalcanti). A figura de Cavalcanti em Dante; vê o passado e o futuro, mas é incapaz de enxergar o presente, e o cego de Tirésias um dos mais notáveis advinhos do futuro. Para o filósofo italiano a previsibilidade está sempre vinculada e embasada num juízo sobre a atualidade;

"...a previsão não é mais que um juízo especial sobre a atualidade... Se os fatos sociais são imprevisíveis e o próprio conceito de previsão é nada mais que do que um som, o irracional não pode deixar de dominar e toda organização de homens é anti-história é um preconceito. Neste caso, o oportunismo de um presente que ratifica a si mesmo se torna a única linha possível". Gramsci relaciona essa dimensão da concepção crociana do tempo histórico com seu comportamento especulativo e com a noção da "história como projeto." LIGUORI e VOZA página 648

Esse mesmo sentido, da História como projeto, também será explorado por TAFURI 1981, aonde se encontra a defesa da ideia de crítica projetante, identificando aí um ponto de encontro entre história e projetação, que, portanto não se restringe a resolver problemas, mas testa sua verificabilidade não em abstrações imprecisas, mas em propostas concretamente dimensionadas. A avaliação não se generaliza, mas enfrenta caso a caso, testando suas hipóteses de mudança e transformação em sua operatividade cotidiana, dentro da tradição teórica do pragmatismo e da instrumentalização. Nessa perspectiva, a processualidade do projeto assume uma dimensão verdadeiramente central, aonde a emergência dos conflitos desvenda os diversos interesses presentes na sociedade. Na verdade, o projeto muitas vezes não apenas considera a história em seu desenrolar como um dado, não aceita a realidade tal como está, mas considera a capacidade do juízo crítico se disseminar conseguindo não só influenciar, mas modificar suas condições de operação. Esse desvendamento-esclarecimento não susta o conflito, mas para se operacionalizar promove acordos e alianças episódicas para o enfrentamento materializado, isto é a obra almejada. O crítico de arquitetura italiana, Manfredo Tafuri, em sua vertente pessimista, reconhece a carga teleológica dessa proposição, pois há uma constante disposição de não "aceitar os fracassos e as dispersões de que a história está impregnada" TAFURI 1981 pág.177. Essa visão indissociável de um otimismo e de uma positividade, carrega o desejo de aprimoramento dos conflitos humanos, afastando-se dos fracassos e as dispersões presentes na história. O empenho crítico se desenvolve dentro de escolhas culturais, que ao final estão pautadas por duas vertentes muito claras, de um lado a inclusão cada vez maior de parcelas expressivas da população, ou o desenvolvimento seletivo e exclusivo para poucos escolhidos. Na verdade, o projeto depois de delimitado por essas duas antíteses - inclusão e exclusão - realiza uma aposta no futuro, investindo na mudança das mentalidades, ou na sua preservação. Há uma clara diferenciação entre levantamento histórico e projetação de valores no futuro, ao final entre análise dos fenômenos e proposição de juízos, pois ao final, teria sentido formular um projeto pessimista?. Entre dedução e indução, descrição e prescrição, diagnóstico e prognóstico, história e anti-história, o projeto emerge como crítica operativa do real, nessa teoria;

"Por outras palavras, revela-se uma característica típica da crítica operativa, o facto de se apresentar quase sempre como um código prescritivo. Esse código poderá ser dogmaticamente sistemático ou metodologicamente amplo e aberto, mas a dificuldade de inserir na história, este tipo de operatividade tem sem dúvida origem na sua oscilação entre a dedução dos valores da própria história e a sua tentativa de forçar o futuro mediante a introdução - mas só no programa crítico - de valores inéditos ou de escolhas a priori". TAFURI 1981 pág.181

A primitiva igreja de Santa Reparata, o primeiro
projeto de Arnolfo de Cambio e o crescimento de
Francesco Talenti (0)

Há um claro movimento de crítica, que se movimenta, do que é, para o que deveria ser, uma atitude que se distancia do descritivo, para se aproximar do prescritivo, isto é, abandona o conforto da leitura objetiva dos fenômenos, para se comprometer com as estruturas desses mesmos fenômenos. O cenário físico não muda os "mundos da vida", mas pensar outros cenários físicos envolve sempre mudanças, questionamentos das operações, seus agentes, suas responsabilidades, seus acordos dentro dos "mundos da vida". O plano e o projeto não são produtos prontos na prateleira, mas processos, que quando disparados decretam caminhos inesperados, dos quais ninguém sai do mesmo modo que entrou. O processo de plano ou projeto disparam reflexões e questionamentos sobre variadas formas de agir dos "mundos da vida", deixando aqueles que estão envolvidos com ele, numa suspensão modificadora. Existe na operação, uma vertente crítica-analítica de um lado, e de outro, um arranjo configurativo, que precisam se reunir nas novas práticas programadas e desejadas, conferindo forma a primeira, e conteúdo a segunda. Há uma ambiguidade entre método dedutivo e método indutivo, submissão e arbitrariedade nas operações de crítica e construção de um outro mundo, ao final um complexo processo de adequação e acomodação de ideias variadas. Muito além da mera resolução de problemas, o projeto se arrisca sugerindo novos arranjos e funcionalidades, que se constituem como promessas de novas práticas e interações entre os humanos. Nesse sentido, é ilustrativo o começo da biografia escrita em 1550 por Giorgio Vassari, de Filippo Brunelleschi, considerado na história da arte ocidental, o fundador da profissão de arquiteto. A partir do projeto da cúpula de Santa Maria del Fiori, na cidade de Florença, no ano de 1418, no dia de 19 de agosto, a Opera del Duomo convoca um concurso para apresentações de soluções para a enorme cobertura sobre o altar do templo. Era um desafio notável para uma catedral que iniciara suas obras em 1296, com projeto de Arnolfo di Cambio, e que tinha no seu altar maior um diâmetro médio de 42,08 metros de vão a ser vencido, numa altura de 58,19 metros do solo da cidade, o que corresponde a um edifício de 15 a 20 andares.

"Filippo nasceu em Florença em 1377, filho de ser Brunellescho Lippi e de Giulia Spini; inscreveu-se na Corporação da Seda em 1398 e na dos Ourives em 2 de julho de 1404. Sua genialidade inovadora só foi conhecida mais tarde; era resultante de uma espantosa clareza racional, diante da qual a perplexidade e as incertezas dos contemporâneos (vejam-se as oposições que precisou superar para impor seu projeto da cúpula da Catedral) mostram-se como resquícios de invencível ilogicidade medieval... Apesar disso, a obra arquitetônica de Brunelleschi tem um fisionomia bem definida e, obviamente, marca nítida ruptura em relação as edificações góticas. Não está totalmente claro até que ponto essa ruptura é devida ao estudo da Antiguidade (as fontes enfatizam as duas temporadas que Brunelleschi passou em Roma e seu interesse pelas proporções dos edifícios antigos) - inclusive das construções paleocristãs - e até que ponto ela foi ajudada pela interperetação racionalista dos edifícios florentinos, desde o Baptistério até o interior da Catedral" VASSARI 2011 pág. 225

Corte da Cúpula em seus diversos estágios. Cúpula interna
em tijolos em espinha de peixe e Cúpula externa com 
montantes de pedra. E, o desenvolvimento dos andaimes (0)

O livro de Vassari,
Le Vite dei piú eccellenti architet, pittori et scuoltori italiani, da Cimabue, insino a tempi nuostri foi publicado em 1550 em Florença e é considerado um dos primeiros tratados da história da arte do mundo ocidental, debruçando-se sobre as vidas de vários artistas. Dentre estes, há um claro destaque (1) para a vida de Filippo Bruneleschi, considerado por muitos o formulador da solução da cúpula de Santa Maria del Fiori em Florença, e primeiro arquiteto da era moderna. VASSARI 2011, enfatiza a grandeza da inusitada trajetória de Brunelleschi, dando-lhe a dimensão da fundação de uma nova práxis; "mas de tão elevado engenho, que podemos dizer ter ele nos sido dado pelo céu para conferir nova forma à arquitetura, desgarrada havia centena de anos, arte na qual os homens daquele tempo haviam desbaratado tesouros, construindo sem ordem, mal, com péssimo desenho,..." VASSARI 2011 pág. 225. Bruneleschi resolve o problema da confecção da cúpula, sem cimbramentos de madeira utilizando duas cúpulas, uma interna com 2,20 metros de espessura, e outra externa com 90 cm de espessura, com um colchão vazio de ar de 1,30 metros, que se auxiliam mutuamente no desafio de vencimento do imenso vão e nos complexos procedimentos de sua execução. Interessante notar o papel do desenho, exatamente no sentido daquela previsibilidade destacada anteriormente, a partir dos novos instrumentos construídos no renascimento, como a perspectiva, as maquetes e os modelos, que antecipam a configuração da obra. Se desenvolve uma separação entre racionalidade do desenho e outra racionalidade do canteiro, uma divisão social do trabalho aonde emerge uma arte liberal e uma arte mecânica. Um caráter predominantemente intelectual, científico e espiritual do artista-arquiteto em contraposição a um operar manual ou mecânico do artesão. Na arquitetura e no urbanismo essa condição de ars liberalis é enfatizada, pois o desenho, que também possui o sentido de desígnio, ou desejo decreta a separação definitiva entre matéria e artista, determinando que a escolha tecnológica não é mais aquela compartilhada por todos, mas a mais adequada para a situação enfrentada. Se generaliza, um processo próximo à ciência de levantamento de hipóteses, processamento das benesses e escolha dos procedimentos, que serão impostos ao canteiro determinando um isolamento olímpico, muitas vezes promotor de um pedantismo artificial. Os verdadeiros artistas ou arquitetos permanecerão atentos aos procedimentos e ensinamentos dos artesãos, que carregam saberes estratificados no longo tempo, e que ao final materializam a obra. A arte, a ciência e a tecnologia se aproximam num dos ofícios mais complexos manipulados pela humanidade, no qual emergem utopia, pragmatismo operativo e conflitos em torno dos desejos.

"A arquitetura pode ser objeto de estudos científicos, seja no seu projetar, no seu construir ou no seu uso. E a ciência pode nos ajudar a compreender a complexidade do fazer arquitetônico, desde a geração das ideias ás interações dos objetos arquitetônicos com os acontecimentos humanos. Os conhecimentos científicos sobre a arquitetura certamente contribuirão para aperfeiçoar os objetos arquitetônicos. Mas, o arquiteto que projeta não precisa se tornar um cientista para exercer bem o seu ofício. Ele precisa - isso sim - saber incorporar os conhecimentos científicos ao seu campo de atuação. Assim fazendo, ele estará em sintonia com o seu tempo, sem precisar renegar a história...'Muitos projetistas ainda mostram sinais de não estarem completamente felizes com uma identidade que eles estão inclinados a pensar como sendo de segunda classe. Alguns estão ansiosos para poder direcionar o seu trabalho a uma arte supostamente autônoma, afastada da arte utilitária, e distanciada do fato de que os projetistas são reprojetistas de coisas.'"(2) MALARD 2013  pág.269

Brunelleschi inaugura uma prática de controle total da execução da obra, mostrando-nos que o acompanhamento do canteiro de obras era tarefa também de concepção, que ia muito além da conformação inicial e controle de proporção, determinando os andaimes, as escoras, as máquinas para subida dos materiais e o apuro dimensional da sua execução. O ourives Brunelleschi configura uma profissão complexa, que se propõe a controlar aspectos variados; a adequação de uma obra a seu contexto, controle de custos, dimensionamento interno e externo apropriados, escolha de materiais, resistência da obra as intempéries naturais, estabilidade estrutural, submissão e atendimento a demandas dos usuários de ordem políticas, sociais e econômicas, capacidade da materialidade proposta de envelhecer bem, dentre outras. Um ofício que envolve uma responsabilidade enorme, pois envolve as expectativas dos povos com relação ao seu vir-a-ser, uma ponte entre operação, possibilidades, futuro, pensamento abstrato e construção simbólica de identidades. Há na cúpula de Santa Maria del Fiori, uma manipulação matemática, uma reflexão física sobre a materialidade empregada, uma dimensão simbólica da coesão, daquela representação-realização para o próprio povo da Toscana, que Florença coloniza. Essa representação do centro, da coesão dos povos da Toscana era uma construção da invenção humana, que competia a partir da manipulação da técnica, da arte e da moral para reunir e congraçar diferentes interesses e visões. A questão da estabilidade estática daquela imensa estrutura, que se desenvolve aos olhos maravilhados e incrédulos da população de Florença não é mais apenas a técnica estratificada pelo tempo e monopólio de uma corporação ou de um local específico, mas fruto humano da inventividade, da pesquisa e do estudo e combinação de diversificados saberes. A proporção alcançada deve significar entre todos os conhecimentos matemáticos uma possibilidade de associação fundamental entre científico, técnico e ético.

"Vasari foi o primeiro a observar que a cúpula de Santa Maria del Fiore não devia ser relacionada apenas ao espaço da catedral e respectivos volumes, mas ao espaço de toda a cidade, ou seja, a um horizonte circular, precisamente ao perfil das colinas em torno de Florença: 'Vendo-se ela elevar-se em tamanha altura, que os montes ao redor de Florença parecem semelhantes a ela.' Portanto, também está relacionada ao céu que domina aquele horizonte de colinas e contra o qual 'parece que realmente combata' - 'e, na verdade, parece que o céu dela tenha inveja, pois sem cessar os raios todos os dias a procuram'... Quando, entre 1435 e 1436, Alberti dedicava a Brunelleschi a versão em língua vulgar do Tratado da pintura, a cúpula havia sido fechada há pouco e ainda faltava a lanterna. Apesar de os florentinos acompanharem com extremo interesse as vicissitudes da construção, certamente ainda não poderia teria ter se formado uma lenda da cúpula. No entanto, Alberti deu uma descrição interpretativa surpreendente da grande calota que havia aparecido (quase por milagre, mas por um milagre da inteligência humana) no céu de Florença. Dizer que a cúpula 'erguia-se acima dos céus' era sem dúvida uma figura literária, mas não um contra-senso; ao contrário, era dizer exatamente a mesma coisa que um século depois Vasari dirá." ARGAN 1992 pág. 95

Interessante notar, que Brunelleschi nunca escreveu uma linha sobre esses seus feitos, mas a história da arte e do homem vem dedicando desde sua materialização uma infindável enxurrada de reflexões, questionamentos e celebrações. A sua realização aponta para aquilo que o próprio Alberti identifica como um dos maiores desafios da arte do construir, a Concinnitas, um ajuste sensível e matemático do conceito ao contexto, uma relação equilibrada entre esforços e resultados. A concinnitas opera a síntese entre as medidas precisas do humano e as imprecisas da natureza, entre o finito e o infinito, gerando a partir não mais de números isolados, mas da relação entre eles, a harmonia e a justificação da geração da forma. A proporção reúne as partes num todo integrado, um corpo harmônico, que nos permite ao mesmo tempo dar identidade as partes e reunir o todo num discurso coerente, a rationatio do arquiteto envolve ratione proportionis, isto é o equilíbrio. A proporção liberta o arquiteto até mesmo da imposição sufocante do cânone da simetria, analogia primeira com o corpo humano de Vitrúvio, mas que pode ter uma outra lógica morfo-compositiva. Os traçados reguladores libertam a intencionalidade humana do caos da multiplicidade infinita, trazendo uma gênese para a forma matematicamente justificada e ancorada no número mágico, que relaciona dimensões. O retângulo áureo, fruto gerado pelo quadrado perfeito e sua diagonal, número relacional que determina o tamanho das cordas nos instrumentos musicais, os furos da flauta, as dimensões das folhas e dos frutos na natureza. Na verdade, um sistema de relações, que o homem observando o caos e a infinidade da natureza procura se apropriar de uma maneira, que compreenda essa complexidade com sensibilidade, a partir de um módulo matemático. A coesão dada ao projeto pelo renascimento coloca em destaque seu caráter coletivo, de eleição de técnicas construtivas, composição das partes e do todo, sistema de proporções, a sagacidade de uma disposição adequada e conciliada com o contexto.

"Cabe, na realidade, à arquitetura e, em particular, à arquitetura vitruviana, i. é, a arquitetura eurítmica, fundada sobre as proporções e a harmonia, dar a esse mundo médio construído pelo entendimento uma realidade extramental, elevando-o na quadrielementariedade do mundo: ao se ler, por exemplo, o De re aedificatoria de Leon Battista Alberti, compreende-se que a arquitetura protege o homem não somente contra as intempéries, mas, mais ainda, contra os golpes da sorte e o caos do real." CAYE 2013 pág. 284 e 285

Mas, porque resgatar um fato do século XV no Renascimento, como a Cúpula de Santa Maria del Fiori em Florença, para pensar a produção do projeto numa época de profundas mudanças tecnológicas como a nossa contemporaneidade? Nossa realidade, perpassada pela velocidade das novas Tecnologias de Informação e Comunicação (TICs) sofreu revoluções e rupturas, e estaria submetida a outros paradigmas? Apesar disso tudo, das profundas mudanças tecnológicas e do seu impacto em nossas vidas cotidianas, a humanidade permanece sem avanços significativos na fronteira da penúria, da fome e da pobreza. No último ano de 2019, com a Pandemia do Covid-19, a concentração de renda se radicalizou no mundo, abandonando parcelas expressivas da humanidade, como se elas não fizessem parte do projeto humano. Uma luta encarnecida pela apropriação de bens e conhecimentos continua a operar e ser a justificativa para as conquistas do desenvolvimento, nessas condições avançamos muito pouco na adoção de recursos renováveis, ou na inclusão de pessoas ao âmbito da previsibilidade. No Brasil basta olhar para as requisições do auxílio emergencial, nas nossas grandes cidades disponibilizado pelo Governo Federal, que nos mostram um país precarizado, sem garantias e sem estabilidade. Em São Paulo foram 2,6 milhões de pessoas, no Rio de Janeiro 1,6 milhão, o que representa 13% das suas populações, nas cidades mais ricas do Sudeste, segundo dados do Portal da Transparência de junho do ano passado. O número de “invisíveis” da economia brasileira chega a valores impressionantes, ultrapassou meio milhão de pessoas em Salvador (762 mil), Fortaleza (747mil), Manaus (634 mil) e, a Capital Federal, nossa cidade com maior renda per capita, Brasília (562mil). A alocação do auxílio emergencial desnuda um número impressionante de “flagelados” da crise sanitária, constavam, também, Belo Horizonte (494 mil), Belém (453 mil), Recife (420 mil) e Curitiba (339 mil).(3)

É preciso reconhecer, que o sistema produtivo atual bloqueia num preconceito cronológico e ideologicamente interessado uma reflexão ética sobre a técnica, sua manipulação, seu compartilhamento e seu projeto. Nosso projeto político, cultural, científico e metodológico não consegue se movimentar pela inclusão, mas apenas pela exclusão, cada vez maior de parcelas expressivas da humanidade. Após as críticas de Heidegger, de Adorno e de Horkheimer de que a racionalidade instrumental do capitalismo é intrinsicamente ambígua, pois envolve um duplo estímulo, de um lado, uma vertente de vida e de criação, mas de outro, uma clara direção pela morte e destruição do humano. O resgate dos debates sobre a fundação da arquitetura, no aparentemente distante século XIV nos trazem ao real combate do que significa a previsibilidade para a humanidade, uma possibilidade de humanização. O projeto, e seu resultado a arquitetura passam a ser mais que uma arte, mas a reunião de todas elas, não apenas as liberais, mas também as mecânicas, um método geral de concepção, ordenamento e execução do mundo a serviço da instalação da humanidade. As reflexões materiais de Brunelleschi e as conceituais de Alberti nos colocam diante da ética do construir o mundo efetivamente humanizado, as técnicas de que dispomos, sejam quais forem não devem ser descartadas, desde que tenham como premissa a manutenção do equilíbrio do planeta, e a transmissão de uma ideia simples; a inclusão de todos no progresso e no desenvolvimento.

NOTAS:

(0) Imagens retiradas da Palestra do professor Luca Giorgio de Florença na Universidade de Alicante na Espanha sobre a Construcción y restauraciones de la Cúpula de Santa María dei Fiori en Florencia assistida em 23/01/2021

(1) Esse destaque pode ser identificado pelo número de páginas dedicadas as diversas vidas dos variados artistas do livro de Giorgio Vassari; a vida de Brunelleschi se desenvolve da página 225 a 251 (26 páginas), enquanto a de Antonio Filarete da página 272 a 273 (2 páginas), ou a de Leon Baptista Alberti da página 288 a 291 (4 páginas).

(2) Essa última parte é uma citação de MALARD 2013 de Jan Michl, professor da Escola de Arquitetura de Oslo, na Noruega no seu artigo; On seeing Design as Redesign: an Exploration of a Neglected Problem in Design Education - Scandinavian Journal of Design History n.12 pág.7-23.

(3) Os dados foram tirados da coluna jornal Correio Brasiliense de Luiz Carlos Azedo de 27/1/2021, Nas entrelinhas: A vacina dos camarotes, colhida no dia 27/01/2021 do site (correiobraziliense.com.br) 

BIBLIOGRAFIA:

ARGAN, Giulio Carlo - O significado da cúpula em História da Arte como História da Cidade - Editora Martins Fontes São Paulo 1993

AZEDO, Luiz Carlos - Nas entrelinhas: A vacina dos camarotes - Correio Brasiliense, colhida no dia 27/01/2021 do site (correiobraziliense.com.br)

CAYE, Pierre - A questão da proporção, reflexões para um humanismo do quadriviumin BRANDÃO, Carlos Antônio Leite, org. - Na gênese das racionalidades modernas em torno de Leon battista Alberti - Editora da UFMG, Belo Horizonte 2013

LIGUORI, Guido e VOZA, Pasquale - Dicionário Gramsciano - Editora Boitempo São Paulo 2017

MALARD, Maria Lucia - Projeto Arquitetônico e Pensamento Científico - in BRANDÃO, Carlos Antônio Leite, org. - Na gênese das racionalidades modernas em torno de Leon battista Alberti - Editora da UFMG, Belo Horizonte 2013

MICHL, Jan - On seeing Design as Redesign: an Exploration of a Neglected Problem in Design Education - Scandinavian Journal of Design History n.12 pág.7-23.

TAFURI, Manfredo - Teorias e História da Arquitetura - Editorial Presença, Lisboa 1979

VASSARI, Giorgio - Vidas dos Artistas - Editora Martins Fontes, São Paulo 2011