segunda-feira, 12 de novembro de 2018

Solidariedade e concorrência

Solidariedade e Concorrência
A minha geração vem sendo doutrinada desde o fim dos anos setenta e início dos anos oitenta por uma lógica perversa e deturpada, que contrapõe o estatal ao privado, como duas forças antagônicas e concorrentes. Esse dualismo alienante foi estrategicamente implantado na sociedade contemporânea, a partir da contraposição entre o Estado de bem estar social e o Estado neoliberal, com a celebração de um individualismo concorrencial, em contraposição ao sistema de solidariedade interpessoal. No entanto, o Estado e o mercado são irmãos siameses, que se constituem na história humana mutuamente a partir de uma clara interdependência, podendo mesmo se afirmar que não haveria mercado, se os Estados Nacionais não se constituíssem, assim também como o inverso. O neoliberalismo, que é hoje a ideologia hegemônica no mundo começa a se constituir como tal a partir desse momento, na crise do petróleo do final dos anos setenta, desembocando nas eleições de Thatcher em 1979 na Inglaterra e Reagan nos Estados Unidos em 1981. As duas nações hegemônicas no sistema capitalista mundial fizeram então guinadas conservadoras, onde se celebrava a empresa, a concorrência e a competição, em detrimento da cooperação, do associativismo e da solidariedade. O movimento sindical, o associativismo, a solidariedade das instituições de base da sociedade começam então a ser condenadas enquanto subjetividades perdedoras, para a lógica da competição e da concorrência, que passa a ser celebrada como mais eficiente. Um certo darwinismo social, onde o indivíduo isolado compete contra todos. Uma doutrinação falsa, que não mirava apenas na conduta dos governantes, mas principalmente nas práticas cotidianas dos governados, endemonizou o Estado e celebrou o mercado,  num posicionamento tão eficiente do ponto de vista doutrinário, que empurrou a pecha de estatal para as esquerdas, e o mercado para a direita do espectro político*.

Dentro do sistema capitalista esse período é também caracterizado como o da hegemonia do capital financeiro frente ao produtivo, não que essa diferenciação represente qualquer antagonismo, pois os agentes produtivos logo entenderam que a propriedade dos meios de produção eram também potentes meios de especulação. O enorme desenvolvimento das tecnologias de informação e de comunicação (TICs) lançaram os fluxos monetários a aventuras muito maiores, tornando-os independentes com relação ao chão produtivo. A lógica da acumulação capitalista não precisava mais estar vinculada a mercadoria ou a produtividade, mas simplesmente executava a produção de dinheiro, a partir do próprio dinheiro num cassino de apostas, cada vez mais sofisticadas. Nesse sentido, o abandono de duas formas consagradas de regulação da acumulação, o fordismo e o keynesianismo, determinou aquilo que ARRIGHI 1996 chamou de acumulação flexível, de certa forma análoga à acumulação primitiva do início da história do capitalismo. Aonde a produção se desinteressa pela reprodução e manutenção dos seus assalariados, fazendo a remuneração retroceder a níveis pré movimentos sindicais, lançando grande parte da população nas incertezas cotidianas e previdenciárias contemporâneas. Os fundamentalistas do mercado repetem doutrinações como se fossem verdades inescapáveis, tais como; "o Estado não pode gastar mais do que arrecada", ou "não existe almoço de graça", ou ainda "a concorrência estabelece a meritocracia, selecionando os melhores". Todas essas afirmações poderiam ser verdade apenas quando abandonamos a compreensão de que o sistema capitalista tende ao monopólio, e ao oligopólio de forma inexorável, deturpando a competição horizontalizada, e impondo um controle verticalizado.

E, mais além disso tudo, passados trinta anos de domínio da ideia neoliberal no mundo percebemos hoje a tragédia que representa para parcelas significativas de nossa população, o abandono da lógica da solidariedade pela adoção da concorrência a qualquer custo. Particularmente no Brasil, a supremacia da concorrência representa o estancamento da melhoria dos padrões de redistribuição de renda, reforçando o modelo conservador de desenvolvimento sem promoção de coesão social. Nesse sentido, nossas cidades são exemplos, onde a concentração de renda está fisicamente assinalada, apresentando territórios exclusivos e selecionados, contrapostos a grandes extensões de exclusão. Para tal constatação, basta que percorramos o tecido de nossas cidades, onde fica claro a presença de uma massa de excluídos nas periferias e favelas, contrapostas a territórios exclusivos como condomínios fechados e centralidades infraestruturadas e muitas vezes esvaziadas. Mas mesmo no campo da cidade a doutrinação neoliberal permanece ativa, repetindo mentiras tais como; "o mercado deveria ser privilegiado na promoção de moradia de interesse social" ou "a regulação do preço da terra urbana deveria ser obtida a partir da desregulamentação urbanística". Doutrinações, que são repetidas pela mídia, por uma série de articulistas com espaço, reproduzindo uma violência simbólica, que perpetua os proprietários, tornando possível uma divisão de renda abissal. Uma das estratégias mais bem sucedidas é a consolidação de falsos especialistas, que escondidos por trás de uma linguagem abstrata e hermética reproduzem o fetiche da técnica urbanística. Há muito que arquitetos e urbanistas comprometidos com as mudanças, e não interessados na reprodução da exclusão defendem a ideia de planejamento e projeto participativo. Não se trata da construção de consensos, de certa forma há o reconhecimento de que o conflito irá permanecer, mas a construção de redes de solidariedade se tornará também possível no processo de mudança das espacialidades.

Enfim, as cidades brasileiras me parecem o território mais evidente de comprovação de que um desenvolvimento competitivo, exclusivo e seletivo, que caracteriza o Brasil, fracassou, precisando agora ser rediscutido sem medo do conflito e do embate, mas interessado em estabelecer novas redes de solidariedade.

NOTAS:

* Em agosto de 1917, Lênin num livro escrito antes do processo revolucionário, O Estado e a revolução, escreveu; "...se o Estado é o produto do caráter inconciliável das contradições de classe, se ele é uma força que está acima da sociedade e "cada vez mais se aliena da sociedade" então é evidente que a emancipação da classe oprimida é impossível não só sem uma revolução violenta, mas também sem o extermínio daquele aparelho do poder do Estado..." Portanto, a esquerda não era pró Estado, mas anti Estado até a tomada do poder. LÊNIN 2017 página31

BIBLIOGRAFIA:

ARRIGHI, Giovanni - O longo século XX, dinheiro, poder e as origens do nosso tempo - editora Unesp São Paulo 1996

LÊNIN, Vladimir Ilitch - O Estado e a revolução: a doutrina do marxismo sobre o Estado e as tarefas do proletariado na revolução - editôra Boitempo São Paulo 2017

sábado, 3 de novembro de 2018

A cidade e o comum

Cidade de Ouro Preto, um comum
"O capitalismo continua a desenvolver sua lógica implacável, mesmo demonstrando dia após dia uma terrível incapacidade de dar a mínima solução às crises e aos desastres que ele próprio engendra." DARDOT e LAVAL 2017, página11

Há muito que as cidades e seu patrimônio construído, sua arquitetura, são espaços difíceis de serem cercados e apropriados, apesar da emergência de uma lógica de privatizações e cercamentos do mundo contemporâneo, a ideologia neoliberal. É claro, que a industria do turismo, uma certa condominialização dos mundos da vida, um empresariamento do espaço e outras práticas querem promover o cercamento e a exclusividade na fruição desses objetos, mas ela sempre encontra resistência num senso comum instalado que identifica na arquitetura, um comum. O grande crítico italiano de arquitetura, Bruno Zevi, mencionava a responsabilidade presente no objeto e no conjunto construído, responsabilizando os arquitetos como impositores de usos e formas, retirando da fruição da obra de arte, a livre escolha. Um objeto na cidade, um edifício, uma rua, ou uma quadra serão impostos a comunidade, que terá que conviver com eles, diferentemente de uma obra literária, de artes plásticas, cinematográfica e outras, que permitem a escolha. Daí o caráter público e comum da cidade, da arquitetura, do paisagismo e do design que disciplinam, orientam, e se constituem como um patrimônio comum, apesar de muitas vezes estarem na esfera da iniciativa privada ou estatal. Um bem comum está muito além da esfera estatal ou privada subvertendo uma ordenação, que no mundo contemporâneo aprisiona o debate político, entre esquerda e direita. Na leitura do senso comum, numa clara redução simplificadora, a esquerda é pró estatal, enquanto a direita é pró privatização. Mas, o que seria o comum?

"A raiz etimológica da palavra "comum" nos dá uma indicação decisiva e uma direção de pesquisa. Émile Benveniste indica que o termo latino munus nas línguas indo-européias, pertence ao vasto registro antropológico da dádiva e designa ao mesmo tempo um fenômeno social específico; por sua raiz, remete a um tipo particular de prestações e contraprestações que dizem respeito a honras e vantagens ligadas a encargos... Encontramos nos significados do termo a dupla face da dívida e da dádiva, do dever e do reconhecimento, própria do fato social fundamental da troca simbólica... Não se trata, primordial ou principalmente, de dádivas e obrigações entre parentes e amigos, mas, na maioria das vezes, de prestações e contraprestações referentes a toda uma comunidade. É o que se encontra tanto na designação latina do espetáculo público dos gladiadores (gladiatorum munus) como no termo que exprime a estrutura política de uma cidade (municipium) formada pelos cidadãos do município (municípes)." DARDOT e LAVAL 2017, página25

Em 1842, o jovem Karl Marx escreveu uma série de artigos no Reinish Zeitung sobre a lei que impedia a coleta de lenha nas florestas privadas da Renânia, que constituem a abertura do filme já comentado aqui do diretor haitiano Raoul Peck*, co-escrito pelo francês Pascal Bonitzer, que descreve o começo da vida do filósofo alemão, desse momento até a síntese do Manifesto Comunista em 1848, junto com Engels. Esses textos estão brilhantemente comentados num livro contemporâneo de Pierre Dardot e Christian Laval, intitulado Comum, ensaio sobre a revolução do século XXI, que destaca a profundidade das reflexões de Marx a partir do problema da coleta de lenha naturalmente caída no solo, com respeito a filosofia do direito, um tema caro ao seu mestre, o também filósofo Hegel. Trata-se de um debate importante para nossa contemporaneidade, envolvendo o conflito entre direito de propriedade e direito de uso, proprietários e despossuídos, ricos e pobres, que perpassam a ampliação da lógica capitalista no mundo, seja no século XIX, ou no XXI. Enfim, o comum. Ao contrário da filosofia hegeliana do direito, que relega os usos e costumes ao informe e ao indeterminado, Marx reconhece no Direito Consuetudinário** dos pobres uma certa positividade e racionalidade, no sentido especulativo do termo. A proposição envolve também a ideia de atividade como determinadora da posse de qualquer coisa, apontando o trabalho como o momento constitutivo do direito de propriedade. Como no caso dos produtos que brotam de forma natural e ao acaso da floresta, como frutos silvestres ou animais, que não dependem da atividade do proprietário seriam de acesso comum, assim como os galhos que caem no chão pelo efeito do vento.

"Os gravetos nos servirão de exemplo. O laço orgânico que têm com a árvore viva é tão inexistente quanto o da cobra com seu despojo. Por meio da oposição entre os ramos e os galhos secos, abandonados pela vida, quebrados, e as árvores solidamente enraizadas, cheias de seiva, assimilando organicamente o ar, a luz, a água e a terra para alimentar sua forma e sua vida individual, a natureza exibe de certo modo a oposição entre a pobreza e a riqueza [ die Natur selbst stelt... der Gegensatz der Armut und Reichtum dar]. Esta é a representação física da pobreza e da riqueza. A pobreza humana sente esse parentesco e deduz desse sentimento de parentesco seu direito de propriedade; assim, enquanto atribui a riqueza físico-orgânica à necessidade e a seus acasos. Nesse movimento das forças elementares, reconhece uma força aliada, uma força mais humana que os homens." Karl Marx, citado em DARDOT e LAVAL 2017, página370

A ideia de exclusão dos procedimentos vitais contida na queda dos galhos, separados da vida das árvores é análoga a situação da pobreza na sua ruptura do vínculo orgânico com a sociedade, uma certa exclusão da pobreza dos estamentos sociais em geral. O direito romano, base do direito ocidental em vários países, definia a existência de um ager privatus e um ager publicus, que se auto conceituavam mutuamente. Os proprietários privados eram impedidos, no sentido de serem privados do acesso ao ager publicus, enquanto os cidadãos sem propriedade acessavam as terras de domínio público. Se reconhecia então duas formas de apropriação privada; a propriedade, e a posse, a primeira era obtida por atribuição da terra comum, enquanto a segunda era tudo que existia fora dessa atribuição, e era usado por aqueles que não tinham propriedade. Importante assinalar, que o status de proprietário é condicionado pelo uso efetivo do objeto de propriedade, o que implica que a falta de uso, ao final de alguns anos determinava a perda do título de propriedade. Marx também assinalava um outro direito, o Germânico, que definia, que a propriedade usufundada não era transmitida por herança. Essas formas de relativizar um certo valor absoluto concedido à propriedade e ao direito privado, em nossa civilização é fundamental para a gestão da cidade em nossa contemporaneidade, onde o valor da terra urbana muitas vezes assume proporções absurdas, que excluem parcelas importantes de nossa população de áreas e bairros exclusivos. Aonde se nota a manutenção de um estoque de terras urbanas inutilizáveis, que aguardam valores mais atraentes para se materializar em habitação, serviços, ou comércio pelo mercado. Daí a prática de invasão ou ocupação irregular em nossas cidades, tanto pelas favelas, como também pelos loteamentos irregulares, e ainda pela tomada do nosso patrimônio aonde as primeiras e as últimas disputam sempre uma maior centralidade, enquanto os parcelamentos estão nas periferias. Há portanto no direito, a menção ao "instinto jurídico dos pobres", que contrasta com os costumes dos privilegiados e proprietários, que possuem um caráter irracional.

"O recurso ao instinto jurídico dos pobres também tem a vantagem de legitimar a nítida oposição entre os costumes dos pobres e os costumes dos privilegiados, portanto de resolver a espinhosa questão do conflito entre os diferentes tipos costumes. Pois se, em ambos os lados, topamos com o fato inegável dos costumes ancestrais, no plano do direito o critério da antiguidade não tem nenhum valor. Se esses dois tipos de costumes se opõem radicalmente, é porque os costumes dos nobres, embora seja costumes, não são direitos, mas são "não direitos" contrários a razão, ao contrário dos costumes da pobreza, que são condizentes com o "direito racional". DARDOT e LAVAL 2017, página372

Nossa constituição também consagrou e diminuiu o caráter absoluto da propriedade privada, pautando que ela deveria cumprir seu papel social, adequando-se a utilidade do interesse comum, permitindo sua acessibilidade ampla. No entanto, os artigos 182 e 183 da nossa Constituição Federal de 1988 não estão sendo cumpridos, bem como a sua regulação, o Estatuto da Cidade (Lei 10257/01), que data de 2001. Por conta disso, as cidades brasileiras permanecem como máquinas de exclusão, sem capacidade de gerar um projeto gerador de coesão social, e possuem um imenso passivo de descaso com seu patrimônio construído. A emergência de uma ideologia conservadora, que celebra o empresariamento, a concorrência, a solução voluntarista e individual, absolutizando a propriedade privada, e desdenha da colaboração entre os cidadãos, da solidariedade, da função social da propriedade nas últimas eleições poderá representar um agravamento da exclusão das parcelas precarizadas de nossa população, ampliando a violência e a destruição de nosso patrimônio construído.

NOTAS:

*O filme é o Jovem Marx, e o meu artigo aqui no blog é O Filme, O jovem Marx
**Direito Consuetudinário é o direito que surge dos costumes de uma determinada sociedade, sem passar pelo processo formal de registro em lei, assim como a lingua que ele fala e as suas crenças compartilhadas.

BIBLIOGRAFIA:

DARDOT, Pierre e LAVAL, Christian - A nova razão do mundo, ensaio sobre a sociedade neoliberal - Editora Boitempo, São Paulo 2016

DARDOT, Pierre e LAVAL, Christian - Comum, ensaio sobre a revolução do século XXI - Editora Boitempo, São Paulo 2017