segunda-feira, 5 de junho de 2017

Da série fique calmo e leia Gramsci

O filósofo italiano Antônio Gramsci (1891-1937) é um pensador extremamente sofisticado para pensar a realidade brasileira atual, do ponto de vista político, social, econômico e na nossa histórica interdependência internacional. Apesar de grande parte de sua reflexão ter sido construída no anos de 1926 a 1937, quando esteve preso nos cárceres de Mussolini, e seus escritos se referiam a questões políticas objetivas de seu tempo da Itália, da Europa e dos Estados Unidos seu sistema de pensamento se baseava em generalizações que permanecem incrivelmente válidas. A crítica que promoveu ao economicismo imperante nas odes marxista de então fez com que montasse uma estrutura teórica, na qual a cultura e os comportamentos arraigados como costumes eram seu principal foco para a transformação revolucionária.  A sua teoria da hegemonia, suas observações sobre a vocação mundial do modo de produção capitalista, seu conceito de bloco histórico, a identificação de uma regressão econômico-corporativa, sua terminologia que identificava um centro anglo-americano e sucessivas periferias no sistema capitalista mundial do seu tempo são instrumentos, que quando combinados para analisar nossa conjuntura atual elucidam de forma clara, nossas precariedades e deficiências de forma emblemática. De certa forma o núcleo motivador de toda a reflexão teórica de Gramsci é um afastamento do determinismo econômico, do positivismo, e da ortodoxia, que começa a se manifestar no pensamento marxista, pela cristalização conservadora imposta por Stalin na União Soviética.

A teoria da hegemonia envolve uma complexa relação de forças entre coerção ou uso da força miltar-econômica-cultural e consenso ou aceitação da dominação como legítima, presentes não apenas nas relações entre países, mas também na interação dos indivíduos e de grupos e na construção da política e da cultura. O conceito envolve a existência nas sociedades modernas de dirigentes e dirigidos, ou de representantes e representados, que são legítimos na medida em que superam uma primeira fase "econômico corporativo" e alcançam o patamar "ético-político". A ideia de hegemonia se aproxima dos conceitos de supremacia e preeminência de grupos ou pessoas num espectro amplo de contextos, como; a economia, a literatura, a cultura, a psicologia, e até a linguística. Dentro dessa mesma questão está a política-paixão, que Gramsci numa crítica a um artigo de Benedeto Croce de 1912, Il partito come giudizo e come pregiudizio (O partido como juízo e como prejuízo), que ocorre as vésperas da primeira eleição com sufrágio ampliado na Itália, no qual há uma clara rejeição ao conceito de partido político. Gramsci aponta a influência de Max Weber, particularmente na questão da teoria do carisma, assimilando Croce ao historicismo alemão, critica a redução da política a vontade de poder e ao oportunismo, mas reconhece sua presença.

"Se se examina bem este conceito crociano de 'paixão' inventado para justificar politicamente a política, observa-se que ele, por sua vez, só pode ser justificado mediante o conceito de luta permanente, pelo que a 'iniciativa' é sempre 'apaixonada', já que a luta é incerta e se ataca sempre para evitar ser derrotado, e não só por isso, mas também para manter subjugado o adversário, que 'poderia vencer' se não fosse continuamente persuadido de ser o mais fraco, isto é, se não fosse continuamente derrotado." GRAMSCI em VACCA 2016 página286

Para Gramsci a redução crociana choca-se com a explicação das formações políticas permanentes, dentre as quais estão os partidos e o Estado, que para darem conta de um tempo de maior expressão precisam de racionalidade e reflexão ponderada, deixando de ser paixão. E, aqui aparece de forma clara a questão dos partidos construídos no Brasil, que parecem em constante correlação apaixonada, onde se ataca para evitar ser derrotado. Os dois partidos de maior expressão popular e ideológica no Brasil; o PSDB (Partido da Social Democracia do Brasil) e o PT (Partido dos Trabalhadores) não superaram a primeira fase "econômico corporativa", enredando por um discurso de mera manutenção estratégica do poder, sem atingir a dimensão "ético-política". A ausência de uma perspectiva de longo prazo, ou de um projeto estruturado me parece a dimensão mais clara dessa atitude, que não possui folego para pensar de forma estruturada no futuro, acabando prisioneiros de um presente eterno. Daí também uma certa subordinação dos partidos a um carisma político superdimensionado, seja Fernando Henrique Cardoso ou Luiz Inácio Lula da Silva, que acabaram maiores do que seus partidos. Por outro lado, a postura de ambos os partidos de manterem o poder a qualquer custo, e desdenharem ou aparelharem as organizações sociais da sociedade civil acabaram desmobilizando iniciativas que foram importantes no Brasil na construção da constituinte cidadã de 1988.

Há também nas reflexões de Gramsci, a identificação de um claro conflito entre "o cosmopolitismo da economia e o nacionalismo da política", uma contradição que já se manifestava no tempo do filósofo italiano, e que em nossa contemporaneidade foi intensificado. E, aqui mais uma vez nos aproximamos do Brasil contemporâneo, que não tem debatido sua inserção internacional, e suas relações de dependência com as potências centrais capitalistas, dentro das quais emerge a hegemonia do capital financeiro. Tal hegemonia está claramente explícita na última grande crise do capitalismo em 2008, com a quebra de poderosas instituições financeiras nos EUA e na Europa, que se manifestou de forma mais dramática nas hipotecas imobiliárias. O sistema bancário brasileiro tem demonstrado uma incrível capacidade hegemônica frente ao Estado nacional, seja este governado pelo PSDB, ou pelo PT, ou mesmo pelo PMDB, quando seus interesses mais caros são pautados de forma convergente por essas 'diferentes' orientações ideológicas. A governança ou controle fiscal do sistema bancário por parte dos Estados Nacionais contemporâneos tem se revelado muito difícil de forma generalizada no mundo todo, demonstrando de forma conjuntural o diagnóstico de Gramsci; "o cosmopolitismo da economia e o nacionalismo da política". Essa mesma posição, também fica clara nas mais recentes reflexões do economista francês Thomas Piketti, que tem defendido a ideia de taxar os fluxos financeiros internacionais...


BIBLIOGRAFIA:

KONDER, Leandro - A questão da ideologia - Editora Companhia das Letras, São Paulo 2002
MOREIRA, Pedro da Luz - Projeto, Ideologia e Hegemonia, em busca de um conceito operativo para a cidade brasileira - Tese de Doutorado Prourb FAU-UFRJ. Acesso a  http://www.prourb2.fau.ufrj.br/pedro-da-luz-moreira/
PIKETTI, Thomas - O capital no século XXI - editora Intrínseca Rio de Janeiro 2014
VACCA, Giuseppe - Modernidades alternativas, o século XX de Antônio Gramsci - editora Contraponto Brasília 2016
VACCA, Giuseppe – Vida e pensamento de Antonio Gramsci 1926-1937 – Editora Contraponto Rio de Janeiro 2012