quarta-feira, 20 de maio de 2020

Pandemia do Covid-19, autoritarismo conservador, moradia e as cidades no Brasil

A pandemia de Covid-19 escancarou nas cidades contemporâneas, em todo o
mundo, a necessidade de bens sociais não comercializáveis, como a moradia
para todos (foto de Ulysses Magoula Filho)
A epidemia do Covid-19 radicaliza uma presença constante da era moderna e contemporânea, o impulso de conhecer e problematizar a sociedade em que vivemos, na sua operação, principalmente no que se refere a sua capacidade de distribuir felicidade e bem estar entre todos. É claro também, que a aspiração a sua transformação em algo diverso do existente decorre de uma diversidade de visões e narrativas, que disputam o metabolismo social, todas almejando ser compartilhada pela maior parcela. Há uma clássica divisão entre os conhecimentos ou as narrativas, que disputam a opinião social. De um lado, uma parcela dita progressista, que luta contra a manutenção de sua forma operativa; alienada, competitiva e repetitiva, bloqueadora da felicidade e do bem estar. E, de outro lado, uma parcela conservadora, que reafirma que a forma de funcionar da sociedade contemporânea competitiva é adequada, e que, não deve ser questionada, pois sua própria reprodução permitirá alcançar a felicidade e o bem estar. Há um pós epidemia colocado no futuro, que várias correntes disputam qual será sua configuração, numa disputa de narrativas que se sobrepõe, repetindo como será nosso "novo normal". Como ele se reestruturaria? Havendo, claramente um paradoxo, nessa expressão "novo normal", uma vez que, se verdadeiramente "novo" deveria não ser "normal". Será, já um direcionamento em favor do conservadorismo? No Brasil, o discurso conservador ganhou terreno a partir de uma série de acontecimentos desde o processo de redemocratização, que podem ser resumidos em quatro pontos; as tradições estruturais do autoritarismo brasileiro, a longa recusa do enfrentamento em nossa história desse mesmo autoritarismo, o capital rentista que apura valores exorbitantes sem produzir nada e a curta conjuntura de emergência de grupos milicianos e para militares, a partir de 2013, que endemonizaram a política pós constituinte de 1988. Tais pontos estão de certa forma naturalizados em nossa sociedade, em uma série de comportamentos e atitudes cotidianas.

"O machismo foi tornado crime, o que lhe reduz as manifestações públicas e abertas. Mas ele sobrevive no imaginário da população, no cotidiano da vida privada, nas relações afetivas e nos ambientes de trabalho, nas redes sociais, nos grupos de whatsapp, nas piadas diárias, nos comentários entre os amigos “de confiança”, nos pequenos grupos onde há certa garantia de que ninguém irá denunciá-lo. O mesmo ocorre com o racismo, com o preconceito em relação aos pobres, aos nordestinos, aos homossexuais. Proibido de se manifestar, ele sobrevive internalizado, reprimido não por convicção decorrente de mudança cultural, mas por medo do flagrante que pode levar a punição. É por isso que o politicamente correto, por aqui, nunca foi expressão de conscientização, mas algo mal visto por “tolher a naturalidade do cotidiano...O “brasileiro médio” gosta de hierarquia, ama a autoridade e a família patriarcal, condena a homossexualidade, vê mulheres, negros e índios como inferiores e menos capazes, tem nojo de pobre, embora seja incapaz de perceber que é tão pobre quanto os que condena. Vê a pobreza e o desemprego dos outros como falta de fibra moral, mas percebe a própria miséria e falta de dinheiro como culpa dos outros e falta de oportunidade. Exige do governo benefícios de toda ordem que a lei lhe assegura, mas acha absurdo quando outros, principalmente mais pobres, têm o mesmo benefício.” LAGO 2020

Charge coletada no site Jornalistas Livres, na matéria; Moro
versus Bolsonaro de Daniel Pinha
A narrativa de que havíamos superado o autoritarismo, a partir da eleição de uma sequência de opositores históricos à Ditadura Civil-Militar de 1964 como; Fernando Henrique Cardoso, Lula e Dilma era muitas vezes formulada pelo conservadorismo, como uma radicalização, que chegava ao ápice numa "guerrilheira", (Dilma) que havia pegado em armas contra o regime de exceção. Na verdade, hoje percebemos como essa narrativa bloqueava a elucidação dos crimes de tortura da ditadura, que não foram ainda integralmente enfrentados. Ao contrário, do que aconteceu com nossos vizinhos, - Argentina e Chile -  que qualificaram como crimes, responsabilizando de forma clara suas forças armadas e setores sociais específicos, que operaram um terrorismo de Estado. Mesmo, Dilma nossa presidenta que pegou em armas do lado da resistência à ditadura, e que constituiu a Comissão da Verdade tergiversou nesse enfrentamento usando sempre o argumento da responsabilidade do gerenciamento do Estado. As forças ocultas e subterrâneas, que são usadas de diferentes maneiras, pelos conservadores parecem nunca vir a público, mantendo o Estado brasileiro refém de uma lógica autoritária sempre presente, e que agora mostra sua cara de forma mais explícita. Na verdade, é preciso qualificar de forma correta esses governos de; FHC, Lula e Dilma, que não ultrapassaram o reformismo conservador, e que operaram uma governança inercial, pouco inovadora e comportada. Mas não se trata aqui de descartar essas forças políticas, estratégia recorrente desse mesmo autoritarismo, que volta e meia reinventa o anti-político, como novidade anti-establishment, de Collor a Bolsonaro. Buscando uma novidade, aparentemente fora do cenário político brasileiro, que se mostra ser a estratégia repetida pelos conservadores, que arrebatou uma massa eleitoral cansada do reformismo do PSDB e do PT. A eleição de 2018 assinalou uma convergência inusitada; o partido da Grande Mídia, o partido da Justiça ou o Lava-Jatismo, e o Bolsonarismo se articularam atraindo empresários variados, banqueiros, rentistas, agro negócio, grilheiros, policiais, milícias, num arco grande impaciente com a democracia e com as conquistas sociais da Constituição de 1988. A fórmula se repete desde de Janio Quadros, com nomes diferentes, disputando sempre um falso ineditismo anti-establisment. Sempre, vendidos como imunes a política, particularmente o Lava-Jatismo associado à Grande Imprensa se revestiu de um caráter técnico-jurídico, isento e desgarrado da política, apesar das proteções interessadas que havia concedido a alguns políticos;

"Primeiro, o Lava-Jatismo. A Operação Lava-Jato se construiu como força determinante do jogo político não apenas por sua função judicial-investigativa, mas por seu apelo midiático, como nos mostram as pesquisas do cientista político André Singer. A grande imprensa narrou a Lava-Jato para a população a colocando como se estivesse imune à podridão política, capaz de cumprir um papel saneador a atacar o maior dos problemas brasileiros, a corrupção. Transformou ações policiais em espetáculos televisivos, impôs o consenso da isenção e despolitização dos órgãos do Judiciário, traduziu à sua maneira o vocabulário jurídico (especializado) para o grande público consumidor de notícias. Quem não se lembra das operações da Lava-Jato às 6h, 7h da manhã transmitidas ao vivo como grande furo e notícia do dia?" PINHA 2020, artigo no Jornalistas Livres

Por outro lado, o Bolsonarismo envolve uma certa nostalgia da Ditadura Militar, seus rompantes autoritários e uma revolta contra a liberalização geral das diversidades comportamentais, que toda sociedade moderna apresenta e permite. O combate ao que se convencionou chamar de ideologia de gênero, um ressentimento geral quanto a uma suposta perda de valores morais presos a família patriarcal, branca e conservadora é claramente alardeado numa semelhança assustadora com o nacional-socialismo da década de 30 na Alemanha. Já fiz aqui no blog, uma analogia entre as origens autoritárias do Estado alemão e o brasileiro no texto; Esclarecimento e Barbárie, Democracia e Bolsonarismo, que aliás era a tese da via prussiana de Florestan Fernandes, Nelson Werneck Sodré e Luiz Werneck Vianna, o texto está disponível em link;  https://arquiteturacidadeprojeto.blogspot.com/2020/04/esclarecimento-e-barbarie-democracia-e.html?spref=fb&fbclid=IwAR2EE8qbLzefZDLSnS6JiIODbWyqw3X_EeINOFihWjJ-RYQKYUmS9iJjg4g.  Mas o Bolsonarismo articula grupos, que não saíram das trevas tais como; torturadores, elaboradores de atentados como os que o então capitão do exército, Jair Bolsonaro, elaborou para obtenção de aumento de salário em 1987, policiais dos mais diversos matizes, que se consideram desprestigiados a partir dos ganhos de direitos da Constituição de 88, promovendo uma celebração do autoritarismo como panacéia para resolução dos problemas do país.  É preciso também reconhecer que, o Bolsonarismo e esse movimento conservador não mais se apoia na Grande Mídia, como a Lava Jato, se utilizando de forma intensa das mídias sociais, criando factóides falsos ou verdadeiros, que pela eficiente reprodução tornam-se debates de destaque, apesar de seu conteúdo primário vazio, tais como; o kit-gay, anti-Ptismo, anti-MST, atentado a faca em Juiz de Fora, mamadeira de piroca, nova política, etc... A eficiência na manipulação das mídias sociais traz para o campo da informação um debate fundamental, aonde o discurso conservador se utiliza de uma estratégia de combate constante, que já havia conseguido sucesso no Brexit e na eleição de Trump nos EUA. Essa última característica deu ao Bolsonarismo sua aparência anti-sistêmica, apesar de seu vínculo histórico com o baixo clero do legislativo nacional, nos medíocres 28 anos da sua atuação parlamentar. Portanto, a atual crise política parece apontar, que Moro e o Lava-Jatismo se mantém apoiado pela grande imprensa e pelo judiciário, enquanto Bolsonaro ainda mantém os grupos que operam a violência do Estado, se aproxima do chamado Centrão no Poder Legislativo, o agro negócio mais atrasado, desmatadores e as milícias digitais. Os dois, Moro e Bolsonaro, parecem não mais caminhar juntos.

"A princípio, contra Bolsonaro, Moro dispõe dos mesmos instrumentos de que dispunha contra Dilma e Lula: grande mídia e judiciário. Por um lado, não possui mais o cargo de juiz e a narrativa em torno da Operação Lava-Jato. Por outro, mantém prestígio popular acumulado da Lava-Jato, a despeito do escândalo (materialmente comprovado) da Vaza-Jato pelo site The Intercept Brasil. Judiciário, sobretudo STF, parece disposto a segui-lo. Nesta direção estão as decisões dos ministros Alexandre Moraes, impedimento da posse de Alexandre Ramagem como diretor da Polícia Federal, e Celso de Mello, pelo andamento do processo de investigação das denúncias feitas por Moro.
Bolsonaro não formou base parlamentar no ano passado e parece disposto a fazer este movimento agora, mas não sabemos se isto será suficiente para deter um processo de impedimento. Terá ao seu lado, militância e milícia digital, que vão narrar essa experiência em contraponto à grande mídia. O “combate à corrupção” perde força, não só pela queda de Moro, mas pela aproximação com os parlamentares do “centrão”. Os dois ressentimentos antidemocráticos, no entanto, se mantém intactos. A tendência é que o discurso bolsonarista avance ainda mais nas pautas de ordem moral..." PINHA2020 em artigo do Jornalistas Livres

Mas não esqueçamos dos dois partidos reformistas, PSDB e PT, que sofreram derrotas marcantes nas eleições de 2018, mas que se mantém como forças políticas potencialmente aglutinadoras de votos, o primeiro mais enfraquecido que o segundo, mas ambas ainda atuantes e constituídas. E, que dominaram o cenário da Nova República, a partir do Impeachment de Collor, tendo tido sua parcela de contribuição na deterioração do sistema criado pela Constituição de 1988. O chamado Presidencialismo de coalizão configurou uma importância para o Poder Legislativo, que se manteve operando com uma maioria invisível, que usa de expedientes pouco republicanos sempre barganhando a operação dos governos reformistas conservadores dos dois partidos. No entanto, a proximidade programática nunca reuniu as duas forças políticas, que em todas as eleições do período pós Collor se colocaram disputando o segundo turno do pleito à presidência, exceto em 2018. Tal condição, criou rusgas e atritos incontornáveis sempre aproveitada pela maioria invisível do Centrão, muitas vezes materializadas pelo DEM ou pelo PMDB, que comandaram verbas e recursos de maneira pouco republicana, e sempre conservadora. Mas, essa forma de atuação conjuntural também deteriorou a confiança geral da sociedade no sistema da Constituição Cidadã de 1988, fazendo com que as reformas impactassem muito pouco na vida cotidiana da grande massa da população brasileira, que permanece com índices de desigualdade explosivos, apesar de tímidos avanços.

"Para a compreensão do bolsonarismo eu tenho introduzido a necessidade de refletir sobre duas outras dimensões, sem desprezar essa tradição estrutural (autoritária). Uma delas é o que eu chamo da grande conjuntura, que vai desde o processo da transição para a democracia até o ano de 2018, quando houve as eleições que consagraram Bolsonaro. É uma grande conjuntura de 30 anos, no contexto da qual você teve muitas decisões políticas que foram contribuindo gradativamente para, de um lado, a manutenção dessas tradições autoritárias e, de outro lado, uma certa desilusão do sistema que foi sendo construído com base na Constituição de 1988. Esse sistema já teve muito prestígio, já teve muita adesão, mas progressivamente a confiança nele foi sendo corroída e isso, ao meu ver, deveu-se ao fato de que o nosso processo de redemocratização, a chamada Nova República, gerou dois partidos com vocações reformistas, o PT e o PSDB. Esses dois partidos nasceram anunciando projetos reformistas e, ao longo do tempo em que governaram, apesar de terem realizados algumas coisas bem positivas, eles não conseguiram empreender as reformas que anunciavam e que a população esperava. Reformas que pudessem realmente transformar esse país, que apresenta índices de desigualdade dos mais extremados no mundo. A reforma política é um exemplo." REIS 2020, entrevista ao Marco Zero

No campo da ordenação espacial, um certo incômodo, com o estágio de desenvolvimento da ordenação societária, principalmente no que se refere a distribuição das riquezas, em ítens como; o acesso a bens, benefícios e confortos, concretamente materializados em; moradia, saneamento, mobilidade, saúde, lazer, ensino, cultura se generaliza. No Brasil e no mundo, a pandemia escancarou as condições diferenciadas das cidades, deixando claro níveis de acesso à qualidade da habitação, à urbanidade, aos bens simbólicos e à saúde. Há muito tempo, que as transformações sociais, sejam deliberadas, inconscientes, evolutivas ou revolucionárias, do tempo moderno, para se tornarem efetivas dependem de mudanças de elementos culturais e comportamentais. Assim, aquilo que se convencionou chamar de crítica social foi acrescido da crítica da cultura, que na verdade radicaliza a mudança, uma vez que envolve muito mais esferas, muito além do economicismo. Em nossas cidades, as práticas diárias enraizadas em costumes naturalizados e culturais sempre construíram e continuam materializando condições diferenciadas de acesso, tais como; condomínios de alto luxo exclusivos, super infra estruturados, contrapostos a contínuos periféricos auto-construídos, sem qualquer comodidade. É sempre importante lembrar que, a porcentagem da população brasileira que acessa o mercado imobiliário constituído e formal não passa de 30%, mostrando-nos que 70% de nossas cidades empreende a auto-construção de sua própria casa, aluga no mercado informal, vive de favor ou na rua. E, aqui fica claro que as condições de habitabilidade da cidade brasileira não melhoraram expressivamente nos tempos dos governos reformistas, mesmo com Lula e Dilma, que ampliaram o acesso a casa própria de forma expressiva como o MCMV, não houveram grandes mudanças. A questão do acesso às centralidades, que são as áreas mais infraestruturadas de nossas cidades, e por isso, mais valorizadas, permaneceu intocada nesses governos. É sintomático, que mesmo os governos Ptistas tenham administrado o Ministério das Cidades como moeda de barganha com os grupos das maiorias silenciosas parlamentares, que junto com prefeitos conservadores se recusaram a usar os instrumentos legais do Estatuto das Cidades, que promoviam o papel social da propriedade privada. E, aqui é fundamental assinalar que o desenvolvimento econômico verdadeiro não é obtido apenas pelo incremento do PIB, ou de índices econômicos abstratos, mas da sensação de conforto e bem viver propiciado pela vida nas cidades.

"Mas a pandemia pôs a nu nossas fragilidades urbanas. Mostrou as enormes desigualdades no acesso às infraestruturas, aos bens e aos serviços públicos. É que o Brasil, vendo o desenvolvimento apenas como crescimento econômico, sem projeto de país, deixou de lado suas cidades. Delegou-se ao PIB suprir as deficiências quando ele viesse a ser maravilhoso. Nosso maior patrimônio material está relegado há décadas, sem nunca ter sido cuidado. Mas é nele que vivem quase todos os brasileiros e se produz a maior parte da riqueza do país. Assim, nossas grandes cidades estão mal. São Paulo e Rio, por serem megacidades, têm um enorme potencial de interesse mundial, hoje bastante sufocado. Perde-se parte expressiva de seu valor porque regiões inteiras não oferecem condições para que os pequenos negócios e as famílias progridam. E não oferecem porque lhes faltam infraestrutura, serviços públicos, segurança, lhes falta Constituição.
E a energia empreendedora dessas famílias, fundamental para a mobilidade social e progresso da cidade, fica represada. Uma energia poderosa represada injustamente. É na cidade inteira cuidada, com os serviços públicos universalizados, sob domínio do Estado, e não da bandidagem, que está o lugar do desenvolvimento." MAGALHÃES O Globo 09-05-2020

Agora, com a vitória do conservadorismo de Bolsonaro, muitos falam em rever o artigo 180 da nossa constituição (1), que justamente firma o princípio do direito da propriedade privada, desde que cumpra seu papel social. Sem que ele tenha sido usado de forma mais ampla e disseminada nas cidades brasileiras. Um princípio, que governa mesmo cidades capitalistas avançadas, que sempre viram o capital imobiliário com desconfiança, uma vez que produtor de valor, não apenas a partir da produção, mas pelo estoque de terra armazenada. Interessante assinalar, que em tempos pretéritos no século XIX, economistas liberais como Henry George (1839-1897) (1) tenham defendido a tese da improdutividade do capital imobiliário, apontando seu caráter inevitavelmente especulativo e desvencilhado da produção efetiva de riquezas. No Brasil, há anos o também economista Paul Singer comandante no governo Lula do programa economia solidária, defendia a mesma tese apontando a injustiça da acumulação pela simples reserva imobiliária. Um mecanismo, comprovado de concentração de renda, uma vez que muito da valorização é obtida por investimentos públicos, como as infraestruturas urbanas (transporte, arruamento, iluminação, segurança, etc...), que depois são apropriadas pelos donos da terra ou dos imóveis da área. Nesse sentido, a luta pela aprovação do Estatuto da Cidade é por si só um exemplo notável da presença do pensamento conservador no Brasil, afinal nossa Constituição foi aprovada em 1988, e essa lei que regulamentou-a foi materializada apenas em 2001. Deixando claro o poder da articulação conservadora no país, que demonstra suas resistências em 13 anos a uma regulação que pretende apenas capturar o lucro imobiliário da produção da cidade capitalista. Aliás, cabe aqui a menção a política urbana da Colômbia, implantada e tão celebrada em Bogotá e Medellin, a partir dos anos 2000, aonde uma lei muito semelhante ao Estatuto da Cidade brasileiro foi aprovada em 1997, a Lei 388 regulando a apropriação do lucro imobiliário para a produção de habitação social e outros benefícios espaciais. Foi essa lei, que reverteu a imensa violência dos cartéis de droga instalada nas favelas de Medellin e Bogotá, com suas massivas intervenções nas áreas de habitação social, transportes (metrô e teleférico) e equipamentos culturais (bibliotecas parques) capturadas dos lucros imobiliários. A experiência colombiana nos mostra, como a ordenação espacial das nossas grandes cidades possuem um enorme potencial, para materializar uma sociedade com melhor distribuição de renda, muito além dos indices meramente econômicos como o PIB. Mas na verdade é forçoso reconhecer que no cenário atual, a exceção à regra talvez seja mesmo a Colômbia, pois o mundo neo liberal de forma geral parece se entregar a lógica do capital imobiliário, desregulamentando os mecanismo de apropriação do lucro, mesmo em locais aonde ele já foi corriqueiro.

"Agosto de 2013. Quando entrei no salão oitocentista situado numa antiga fábrica convertida em centro cultural e de eventos em Manchester, por dois segundos lembrei-me dos textos de Friedrich Engels, e pensei foi aqui o começo dessa saga... Pela paredes, cartazes marcados por pincel atômico definiam estratégias e cronogramas de mobilização para os próximos meses: era um dos encontros regionais da campanha contra a chamada bedroom tax (taxa de quarto), uma das medidas de austeridade fiscal recém implantadas pelo governo que, mais uma vez, atingiam os moradores de conjuntos habitacionais públicos britânicos... As cenas que acabamos de descrever - em regiões tão distintas como a Europa, os Estados Unidos, a América Latina, o Oriente Médio e a Ásia - são a expressão e o resultado, a partir da primeira década do século XXI, de um longo processo de desconstrução da habitação como bem social e de sua transformação em mercadoria e ativo financeiro." ROLNIK 2015 página25

Essas condições de exclusão de parcelas significativas da população está presente em todo o mundo, a partir do final e começo dos anos 80 e 90, mas assume caracteres dramáticos num país como o Brasil, no qual a divisão de renda é péssima. A doutrina do neo liberalismo, que se propaga pelo mundo a partir da Inglaterra e EUA, com os governos de Thatcher e Reagan desmonta as taxações progressivas sobre fortunas e grandes posses, destruindo o atendimento social mesmo nas economias centrais. Essa doutrina vem sendo contestada por diferentes pensadores, e parece ser agora mais fortemente questionada pelo recém acontecimento da pandemia de Covid-19. A partir da qual parece ficar claro, que a demanda dos serviços públicos de saúde, de promoção habitacional, da oferta do saneamento, da implantação de mobilidade precisam ser universalizadas. Pois a pandemia deixa claro que a financeirização e a privatização de alguns benefícios, outrora considerados bens sociais no tempo do Welfare State, não podem ser entregues a empreendedores, pois a lógica competitiva desses nos lança numa selvageria, que bloqueia seu combate efetivo. A epidemia parece comprovar de forma biológica e natural a dificuldade moral e ética do cercamento e da comercialização da vida humana, impondo a absoluta necessidade da solidariedade. A narrativa neo liberal, quase que inquestionável antes da pandemia, que impedia a ampliação de impostos e taxas parece ter sido desmascarada, em nome de que os bens sociais necessários ao seu enfrentamento só poderão ser alcançados pelo Estado.

"É isso que eu não vejo. Não vejo isso com Trump. Eu realmente não vejo isso com Macron. É claro que ambos os presidentes são, supostamente, muito diferentes, como todos sabemos, mas ao mesmo tempo, há um importante ponto em comum. É que eles começaram seu mandato, promovendo um grande corte de impostos para os ricos, para resumir. Na França, houve uma revogação do imposto sobre a riqueza. Nos EUA, houve um grande corte de impostos para contribuintes de renda muito alta e para grandes corporações. Trump também queria se livrar do imposto imobiliário. Ele não conseguiu aprovar, mas esse era seu plano. Os dois presidentes fizeram esses enormes cortes de impostos para os ricos... Essa é uma lição muito geral da história, que o nível de desigualdade social nas sociedades depende principalmente da mobilização política e da mudança ideológica, em vez de determinantes econômicos ou tecnológicos puros." PIKETI 2020, publicado por Democracy Now e traduzido para a Revista Carta Maior

Diante desse cenário, não podemos tergiversar e compreender que a narrativa explicadora dos impasses do desenvolvimento do mundo contemporâneo estão em disputa, de um lado conservadores que pregam a manutenção do status quo competitivo, de outro progressistas que apontam a emergência da solidariedade. A grave crise política que o Brasil enfrenta não será resolvida sem considerar os atores e agentes listados acima, a luta pela permanência democrática e a resistência ao endurecimento do regime precisa se fazer a partir de uma lógica de ampliação da inclusão social no Brasil. O plano e o projeto da cidade brasileira precisam mudar seu rumo inercial de exclusão e segregação, sinalizando um esforço claro e objetivo na inclusão de todos pela saúde, habitação, mobilidade, segurança, cultura, educação e lazer. Todos esses ítens materializados na espacialidade concreta de nossas cidades, que simplesmente precisa passar a compreender que a vida humana não pode ser mais comercializada.

NOTAS:

(1) O Senador Flavio Bolsonaro é autor de projeto de revisão da Constituição de 1988, no seu artigo 180, que justamente firma o papel social do direito à propriedade privada.
(2) Henry George (1839-1897) economista liberal americano que defendia o Single Tax (taxação simples) sobre todo o solo privado, para que mais recursos fossem invertidos na produção verdadeiramente capitalista, que poderia remediar a recorrência de crises e a desigualdade gerada pelo sistema. Foi autor do livro Progress and Poverty de 1879, no qual defendia a ideia de que cada um é dono do que cria, mas que a terra e a natureza pertencem a toda a humanidade.

BIBLIOGRAFIA:

FERNANDES, Florestan - Apontamentos sobre a "Teoria do Autoritarismo" - Editora Expressão Popular São Paulo 2019

LAGO, Ivann - O Jair que há em nós - artigo publicado em carta maior coletado em maio de 2020 em https://www.cartamaior.com.br/?/Editoria/Sociedade-e-Cultura/O-Jair-que-ha-em-nos/52/47388

MAGALHÃES, Sérgio - O Corona e a cidade 21 - artigo publicado no jornal o Globo em 09-05-2020, coletado em 19-05-2020  https://www.uia2021rio.archi/noticia 

PINHA,  Daniel - Moro versus Bolsonaro: peças da crise democrática - Em Jornalistas Livres, professor de história da UERJ no site  https://jornalistaslivres.org/moro-versus-bolsonaro-pecas-da-crise-democratica/

PIKETI, Thomas - Entrevista a Democracy Now, traduzida em Carta Naior - disponível no link:  https://www.cartamaior.com.br/?/Editoria/Pelo-Mundo/Thomas-Piketty-a-pandemia-expos-a-violencia-da-desigualdade-social-/6/47383, coletado me 05/05/2020

REIS, Aarão - As milícias bolsonaristas não vão aceitar a derrota e as esquerdas precisam se precaver - Entrevista Marco Zero, recolhido no site; http://marcozero.org/entrevista-daniel-aarao-reis/

SODRÉ, Nelson Werneck - Introdução à Revolução Brasileira - Livraria José Olimpo Rio de Janeiro 1958

VIANNA, Luiz Werneck - A revolução passiva, Iberismo e americanismo no Brasil - Editora Revan Rio de Janeiro 1997

ROLNIK, Raquel - A guerra dos lugares: a colonização da terra e da moradia na era das finanças - Editora Boitempo São Paulo 2015