domingo, 8 de janeiro de 2017

Democracia, pobre democracia e os 100 anos da Revolução Russa

No final de um ano, ou no começo de outro há sempre um clima de causalidade e revisão contraposto ao duro desenrolar dos fatos muito mais ligados a simultaneidade, a supremacia da notícia sobre a história, que impera durante todo o ano. Memória e revisão são supremos no final do ano, e para mim 2016 marca o enfraquecimento da democracia, não só no Brasil, mas no mundo todo, afinal; Dilma Roussef, presidenta do Brasil sofreu um golpe parlamentar, a Inglaterra declinou de participar da Comunidade Européia, e Donald Trump foi eleito presidente nos EUA. Os três fatos foram golpes decisivos na ampliação da democracia, e ainda irão produzir retrocessos importantes numa dinâmica fundamental do nosso mundo contemporâneo; a radicalização democrática. Um processo que cada vez mais toca a consciência do homem contemporâneo, em várias partes do mundo, que envolve a radicalização da democracia representativa, em experiências diretas e participativas. E, que também envolve a promoção de uma melhor distribuição de renda no mundo, melhorando o acesso a diferentes oportunidades por toda a espécie humana. Como recentemente declarou o sociólogo português, Boaventura de Souza Santos;

"Como tenho defendido, o neoliberalismo e a lógica disciplinar e antidemocrática do capital financeiro internacional entraram na Europa via instituições europeias e tratados europeus, não pela via direta dos governos nacionais nos quais havia mais resistência política, com a exceção parcial da Inglaterra e de alguns países do Leste Europeu. As instituições europeias são hoje o principal agente de imposição da lógica neoliberal em contradição explícita com a tradição social-democrática que presidia o projeto europeu." SANTOS 2016 página10

A redução da liberdade à liberdade de empreendimento, desencadeia um ambiente de competição desenfreada, que recalca as solidariedades e identidades, tornando difícil o combate e o controle de comportamentos anti-sociais. Na verdade, o mundo contemporâneo sofre um desenvolvimento geográfico desigual, no qual tradições políticas e culturais representam diferenciados níveis de resistência ou aceitação às teses neo-liberais, que se expandiram. O tempo passou a ser um tempo imediato, não havendo preocupações com relação as futuras gerações, há uma busca desenfreada por resultados imediatos. A ideologia neo liberal se espalhou pelo mundo de forma desigual, não adotando um padrão único e sem um conjunto de princípios coeso. No entanto, há um fato, que caracteriza o nosso tempo contemporâneo, a ausência da ameaça comunista, que durante todo o século XX, ou pelo menos desde 1917, que instou as classes privilegiadas e o Estado democrático a buscar a promoção de maior igualdade, por meio de políticas habitacionais, educacionais e de saúde. A revolução russa e os posteriores desenvolvimentos do século XX, como a Revolução Cubana na década de cinquenta e outros irão alertar o mundo do livre mercado para a adoção de regulamentações que promovam maior equidade social. Esse fato, desresponsabiliza as reestruturações neo-liberais, que ocorreram a partir dos anos 1980s no Brasil, na Coréia do Sul, ou em países de maior tradição social-democrata como a Suécia, a se preocupar com suas consequências recorrentes, que envolvem desemprego em massa, concentração de renda, e ampliação da pobreza.

Houveram momentos, como na privatização da habitação social na Inglaterra, na aplicação do programa de Margaret Thatcher, quando as classes baixas pensaram que estavam sendo beneficiadas, pois passavam de locatários para proprietários, a partir de custos relativamente baixos. Logo a especulação imobiliária assumiu o controle expulsando as populações de baixa renda, pela compra coercitiva ou por outros artfícios, levando massas para a periferia, expulsando-a do centro de Londres. A acumulação por expoliação passou a ser regra, pessoas, grupos retritos passaram cada vez mais a produzir dinheiro a partir de dinheiro. O volume de dinheiro diário circulando em atividades especulativas passou de US$2,3bilhões em 1983, para cerca de US$130bilhões em 2001. Segundo HARVEY 2005 página173, o volume anual de transações especulativas em 2001 chegou a US$40trilhões, enquanto segundo estimativas do FMI apenas US$800bilhões seriam suficientes para sustentar o comércio internacional. Grande parte desses fluxos especulativos, quando realizam seus lucros exorbitantes migram para outras paragens, forçando recursos governamentais a cobrirem ameaças de quebradeiras, como no caso das hipotecas subprime nos EUA, onde os lucros são privatizados e os prejuízos socializados.

Tal fato fez com que governos, com alinhamentos ideológicos distintos, tais como Reagan e Clinton, ou Thatcher e Marjorie, e mesmo Fernando Henrique Cardoso e Lula seguissem a cartilha do ajuste fiscal e do combate à inflação a qualquer custo. Dando-nos a sensação de que fora do ajuste fiscal não há saída. Na verdade, alguns autores mesmo liberais, tais como Piketi e Stglitz começam a questionar esse pensamento único, como um beco sem saída. Para mim, a melhor interpretação desse desenvolvimento ainda é de ARRIGHI (1996), que já foi comentado aqui no blog no texto O longo século XX, que pode ser acessado no link abaixo. A interpretação, que me parece fundamental destacar na construção de ARRIGHI 1996 é a de que, a partir de argumentos colhidos em Marx, Braudel e Weber, o autor  identifica um padrão geral na história de longa duração do capitalismo, que intercala épocas de expansão material e expansões financeiras.

Assim existiriam quatro ciclos sistêmicos de acumulação referenciados a bases geográficas específicas e a tendência do capital a procurar sua forma monetária, como uma consequência natural do sistema.. O primeiro seria o ciclo Genovês e iria do século XV ao início do XVII, o segundo seria o ciclo holandês do fim do século XVI até meados do século XVIII; o terceiro seria o ciclo britânico da segunda metade do século XVIII até o início do século XX; e por fim um ciclo americano, iniciado no fim do século XIX até a nossa atual fase de expansão financeira da atualidade. Todos envolvem bases produtivas vigorosas que migraram para os serviços financeiros, tornando-se de certa forma os banqueiros do mundo, a partir da constatação de que a verdadeira flexibilidade e liberdade estava no acúmulo de moeda. Sem dúvida, o nosso tempo é o da hegemonia financeira, que dita nossa pauta em torno do ajuste fiscal, não admitindo outra receita, emburrecendo o mundo em torno de unanimidade burra.

O mercado sempre foi associado a liberdade de escolha, no entanto seu vínculo com o capital financeiro, e a tendência inexorável do sistema de identificar na base monetária a realização dos lucros, acaba dando a essa autonomia uma capacidade de barrar a ampliação da democracia no mundo contemporâneo, que demanda maior equidade social. Abaixo o link com meus comentários sobre o livro do ARRIGHI.

http://arquiteturacidadeprojeto.blogspot.com.br/search?q=arrighi

Bibliografia:
ARRIGHI, Giovanni - O longo século XX, dinheiro, poder e as origens do nosso tempo - editora Unesp São Paulo 1996
HARVEY, David - O neoliberalismo, história e implicações - edições Loyola São Paulo 2005
SANTOS, Boaventura de Souza - A difícil democracia: reinventar as esquerdas - Editorial Boitempo São Paulo 2016