quinta-feira, 7 de setembro de 2017

O fordismo e o americanismo no século XX, e o rodoviarismo e o retiro idílico da habitação no século XXI

Racionalização da linha de montagem no chão das fábricas de Henry Ford
Ao longo da década de trinta no início do século XX, o filósofo Antonio Gramsci, numa série de 29 cadernos manuscritos que escreveu entre 1929 e 1937 - os Cadernos do Cárcere -, nas prisões fascistas de Mussolini abordou o tema da derrota do movimento socialista na Europa Ocidental, notadamente na Alemanha e na Itália para o nazi-fascismo. Nesse contexto, a ascensão da hegemonia norte americana no mundo, com o reforço do individualismo, o combate ao associativismo de classe, a regulação puritana dos hábitos sexuais e alcóolicos do operariado, e também os altos salários e a concessão de benefícios sociais, que caracterizaram o fordismo foi também anunciada. No caderno 22, o filósofo da Sardenha aborda o Americanismo e o Fordismo, para entender a emergência daquilo que classificava como, "a formação social capitalista mais avançada" da sua contemporaneidade. O final da primeira guerra mundial assinala a ascensão do domínio dos EUA no mundo, tal fato terá reflexos políticos, culturais e econômicos para a história do século XX. Gramsci será um crítico dos costumes cotidianos conformados pelas ideologias dominantes, investigando o estabelecimento do senso comum na consolidação de hábitos e gestos naturalizados. O american way of life acabou conquistando mentalidades em diversas partes do mundo, inclusive na Europa, mudando nossa concepção compartilhada do que consideramos, o bem viver. Gramsci tinha uma visão crítica sobre o americanismo e o fordismo, mas também vislumbrava uma potencialidade transformadora;

"O que hoje é chamado de americanismo é em grande parte a crítica preventiva dos velhos estratos que serão descartados pela possível nova ordem, e que já estão tomados por uma onda de pânico social, de dissolução, de desespero, que é uma tentativa de reação inconsciente de quem é impotente para reconstruir e alavancar os aspectos negativos da transformação. Não é de grupos sociais condenados pela nova ordem que se pode esperar a reconstrução, mas daqueles que estão criando, por imposição e com o próprio sofrimento, as bases materiais desta nova ordem. Esses devem encontrar o sistema de vida original e não de marca americana, para tornar liberdade o que hoje é necessidade." GRAMSCI 2008 página89

O subúrbio americano isolamento idílico, rodoviarismo e aproximação
com a natureza
No campo da arquitetura e do urbanismo essas consequências estão materializadas na forma humana de ocupar o território de nosso planeta, que perderam força, mas ainda vigoram de forma atuante em diversas mentalidades, e continuam sendo naturalizadas em diversas partes do mundo. O rodoviarismo, que determinou e ainda determina a espacialidade de nossas cidades, com a ampliação das áreas dedicadas aos automóveis, a implantação de vias expressas, viadutos e obras que aumentaram o acolhimento ao deslocamento sobre pneus, penalizando a vida pública e o circular dos pedestres. Além disso, a cidade americana disseminou o paradigma da habitação unifamiliar de baixa densidade, próximo de idílios isolacionistas, os subúrbios mono funcionais, cercados por amenidades da natureza. As duas determinações, a hegemonia rodoviarista e a moradia unifamiliar isolada nas franjas da cidade, acabam representando um enorme esgarçamento do tecido urbano, baixando muito a densidade e a proximidade entre cidadãos. Essas representações do bem viver continuam fazendo a cabeça de contingentes expressivos da população contemporânea determinando fortes impactos ambientais, e custos excessivos para a universalização das infra estruturas urbanas.

A importância de Gramsci pode ser avaliada pelo destaque dado no seu pensamento a política e a cultura para a pretendida mudança das circunstâncias atuais, a partir de uma crítica veemente e sistemática ao imperante economicismo, pós revolução de 1917, mesmo no campo marxista. Sua interpretação político-cultural entendia a estruturação social dos países ocidentais a partir de uma distinção entre "sociedade política" e "sociedade civil". Onde, a "sociedade política" é composta pelo Estado, o governo, a representação da classe dominante, formado pelas burocracias repressivas e de aplicação de leis, os poderes executivo, legislativo e judiciário, que nos dirige pela coerção e pelo consenso. Já, a "sociedade civil" eram as organizações responsáveis pela formulação e difusão de ideologias; o sistema escolar, as igrejas, os partidos, os sindicatos, as organizações profissionais, os meios de comunicação, as instituições de caráter artístico ou científico, etc. Essa distinção gramsciana é fundamental para se entender o mecanismo da hegemonia, que ao final é a forma como a classe dominante legitima o monopólio legal da coerção, que envolve direção política e intelectual, e construção de consenso. A mudança das circunstâncias atuais de operação de nossa sociedade, no pensamento de Gramsci, envolvem portanto a conquista do Estado, mas também as organizações de formulação e difusão das ideologias. A "sociedade civil" é a nova esfera, que emerge nos países ocidentais liberais, a partir dos processos de socialização da política, que doutrinam o conjunto social de forma pulverizada. A formulação das ideologias nas instituições da "sociedade civil" são no pensamento de Gramsci caracterizadas de forma neutra, podendo haver estruturas progressistas ou conservadoras;

"Que uma tentativa progressista seja iniciada por uma ou outra força social não é algo sem consequências fundamentais: as forças subalternas, que teriam de ser "manipuladas" e racionalizadas de acordo com as novas metas, necessariamente resistem. Mas resistem também alguns setores das forças dominantes, ou, pelo menos, aliados das forças dominantes. O proibicionismo [1], que era nos Estados Unidos uma condição necessária para desenvolver o novo tipo de trabalhador adequado a uma industria "fordizada", foi derrubado pela oposição de forças marginais, ainda atrasadas, e não certamente pela oposição dos industriais ou dos operários." GRAMSCI em COUTINHO 2011 página328 

O rodoviarismo, a tomada do espaço da cidade pelo pneu
O rodoviarismo e o retiro idílico da habitação unifamiliar conquistaram e ainda conquistam mentalidades no mundo todo, pela formulação e difusão dessa maneira de operar na "sociedade política", mas também na "sociedade civil". Há aqui uma relação dialética que envolve a articulação e a reprodução dissimulada das relações de poder, a celebração do rodoviarismo e do isolacionismo habitacional servem aos interesses de reprodução de um modelo econômico que celebra o individualismo, e reprova o associativismo de qualquer natureza, como o americanismo. A articulação e a reprodução das relações de poder nesse arranjo são dissimuladas, por que não se explicita a celebração do individualismo e a reprovação do associativismo. Tal mecanismo de reprodução de nosso espaço físico das cidades contemporâneas começa a ser denunciado principalmente pelas graves consequências ambientais que esse modelo econômico produz e reproduz. Por exemplo, se coletamos o material de propaganda tanto da industria automobilística, quanto da imobiliária percebe-se de forma clara a dissimulada tentativa de articular essas formas de operar com uma reaproximação da vida natural, para o cidadão urbano. No entanto, essa forma de ocupar o território acaba causando fortes danos ambientais, pois ela expande o terreno artificial da cidade, que demanda sempre a presença da luz, da água tratada, da coleta de esgoto, da coleta de lixo, da mobilidade por automóvel, etc. Todos esses serviços são caros e aumentam substancialmente de valor na medida em que se espalham no território, determinando muitas vezes a restrição da sua universalização, e ou, seu acesso estratificado de forma mercantilizada.

Enfim, essa condição das nossas cidades só será superada na medida em que um projeto contra-hegemônico ganhar força, que envolve a celebração do transporte de massa, da habitação multifamiliar densa, com a presença da multiplicidade de usos e de extratos sociais diversificados conquistar a "sociedade política" e a "sociedade civil". O americanismo e o fordismo já anunciam seu declínio, no entanto as organizações da "sociedade civil" apenas começam a difusão de argumentos contra-hegemônicos dispersos, que ainda aparecem de forma segmentada e desarticulada, sem alcançar ainda a "sociedade política".

NOTAS:

[1] Por proibicionismo Gramsci se refere à famosa "lei seca", promulgada em 1919 e revogada em 1933, que proibia a produção e o consumo de bebidas alcoólicas em todo o território dos Estados Unidos.

BIBLIOGRAFIA:

GRAMSCI, Antonio - Americanismo e Fordismo - Editora Hedra São Paulo 2008
COUTINHO, Carlos Nelson, org. - O leitor de Gramsci, escritos escolhidos 1916-1935 - Editora Civilização Brasileira Rio de Janeiro 2011