quinta-feira, 12 de janeiro de 2017

"O sertão é do tamanho do mundo" João Guimarães Rosa

Museu Casa Guimarães Rosa, na esquina as quatro portas da
venda de seu Fulô pai do escritor
"O correr da vida embrulha tudo, a vida é assim: esquenta e esfria, aperta e daí afrouxa, sossega e depois desinquieta. O que ela quer da gente é coragem."ROSA, João Gumarães - Grande Sertão: veredas - Editora Nova Fronteira Rio de Janeiro 1987

Recentemente tive uma grata surpresa, numa viagem para o sudeste da Bahia, partindo de Belo Horizonte, parei na terra natal do autor de Grande Sertão: veredas, Cordisburgo, e me encantei com o Museu Casa de Guimarães Rosa. A casa onde o escritor nasceu e viveu até seus nove anos de 1908 a 1917. Com um acervo bem montado, uma sede bem cuidada e um bom material de divulgação, na pequena cidade de Cordisburgo, no interior de Minas Gerais, o museu mostra a potência da cultura brasileira e sua capacidade de ilustrar a diversidade do país. Com um orçamento modesto e sem pretensões grandiosas, o pequeno museu cumpre um papel fundamental, cooptar novos leitores para uma das maiores obras literárias da língua portuguesa. E, a partir da conformação da antiga casa de Florduardo Pinto Rosa, o pai de Guimarães Rosa, que apresenta alguns aspectos notáveis, não só na sua disposição interna, mas também em sua relação com a cidade e o sertão das Gerais, o visitante pode despertar para a relevância de sua obra.


Implantação da Casa de Guimarâes Rosa

Desde pequeno fui levado a Cordisburgo por meu pai de forma repetida. Quando morávamos em Belo Horizonte, houve um tempo, em que sempre que chegava uma visita de familiares do Rio de Janeiro, íamos todos a terra de Guimarães Rosa. O museu era uma atração, mas o que mais mobilizava a garotada era a Gruta de Maquiné, uma imensa formação de rocha calcária com águas subterrâneas, que também ficava adjacente à cidade. Sem as inscrições rupestres de Lagoa Santa, Maquiné é uma gruta mais básica, onde se observava de forma direta as estalactites e estalagmites que se formavam pela longa infiltração de água. O fato é que desde os meus onze anos fui apresentado ao maravilhoso mundo do velho Guima. O engraçado nisso tudo é, que meu pai apesar dessas recorrentes idas a Cordisburgo se definia muito mais como machadiano, que rosiano. Mas uma das inúmeras visitações familiares, talvez a mais memorável foi com meu velho tio-avô, Paulo Leão de Moura, que ainda por cima tinha conhecido o próprio João Guimarães Rosa, pois eram colegas do Itamaraty. Me lembro até hoje de uma narrativa desse meu tio-avô, no restaurante Sarapalha em torno da boa comida mineira, contando que encontrou-o no Ministério das Relações Externas então no Rio de Janeiro,  para um pedido de dedicatória do então recente lançado livro Grande Sertão: veredas. Nesse encontro, meu tio perguntara a Guimarães Rosa, qual a sensação após o lançamento do livro. A resposta, até hoje me intriga, pois mistura auto-celebração e ao mesmo tempo alívio, sinceridade e consciência do feito, simplesmente; "Deslumbramento".


Interior da venda do seu Fulô, preciosamente restaurada

Mas a casa de Florduardo, ou "seu Fulô, pai de Guimarães Rosa fica próxima a antiga estação de trens de Cordisburgo, e era dotada de uma venda, que generosamente abria tres portas para a rua Padre João, a principal, e uma para a rua vicinal, dominando a esquina, como parece adequado para a fortuna do comércio. A entrada íntima e familiar, se posiciona do lado oposto é junto a divisa lateral do lote vizinho, deixando já da rua antever um generoso quintal arborizado, que se desenvolve num suave aclive em direção ao fundo do terreno. Na frente da casa a rua Padre João determina um platô amuralhado que desce em direção aos trilhos do trem, que logo um pouco mais abaixo surge a antiga edificação da estação de Cordisburgo (ver a situação). Lembrando um campo comum, Aí certamente, nesse espaço, na infância do jovem Guimarães Rosa se agrupavam as manadas de boi vindas do sertão, que aguardavam as composições férreas para ser contados e levados para Belo Horizonte. Ali na venda do seu Fulô, no Museu Casa de Guimarães Rosa os vaqueiros deviam se reabastecer para a longa viagem de retorno, para as fazendas na imensidão do grande sertão, com a presença de um menino curioso e indagador, que colhia suas estórias.


Nada nessa casa parece gratuito, mesmo uma alcova sem ventilação parece ter seu uso, naqueles tempos, quando ao burburinho das manadas de boi e dos vaqueiros deviam se suceder longos tempos de calmaria e pasmaceira. Por último, a cozinha como sempre antecede o acesso ao quintal arborizado, que naqueles tempos devia trazer algumas galinhas ciscando, com a presença indelével do fogão a lenha num canto de duas paredes. Aqui, não há forro de palha como nos outros cômodos, apenas a telha vã, o piso de tijolos diverso também do assoalho de madeira do restante, marca o caráter produtivo dessa unidade. Enfim, o Museu Casa de Guimarães Rosa semeia nossa imaginação e parece ainda guardar em suas paredes e utensílios a sucessão de histórias que contaminaram de forma definitiva o jovem escritor. A vida íntima da família e os tropeiros das Gerais, que naqueles dias iam e voltavam em suas montarias, tangendo os bois, contando e recontando histórias de amores, tristezas, jagunços e outras das imensidões.


"Aí namorei falso, asnaz, ah essas meninas por nomes de flores. A não ser a Rosa´uarda - moça feita, mais velha do que eu, filha de negociante forte, seo Assis Wababa, dono da venda O Primeiro Barateiro da Primavera de São José - ela era estranja, turca, eles todos turcos, armazém grande, casa grande, seo Assis Wababa de tudo comerciava. Tanto sendo bizarro atencioso, e muito ladino, ele me agradava, dizia que meu padrinho Selorico Mendes era um freguesão, diversas vezes me convidou para almoçar em mesa. O que apreciei - carne moída com semente de trigo, outros guisados, recheio bom em abobrinha ou em folha de uva, e aquela moda de azedar o quiabo - supimpas iguarias. Os doces, também... Assim mesmo afirmo que a Rosa´uarda gostou de mim, me ensinou as primeiras bandalheiras, e as completas, que juntos fizemos, no fundo do quintal, num esconso, fiz com muito anseio e deleite. Sempre me dizia uns carinhos turcos, e me chamava de :- 'Meus olhos.'. Mas os dela era que brilhavam exaltados, e extraordinários pretos, duma formosura mesmo singular. Toda a vida gostei demais de estrangeiro." ROSA 1987 páginas106 e 107

Enfim, entre a imensidão do sertão e a dimensão dos compartimentos da casa, seus utensílios e equipamentos percebemos a sutileza do imbricamento das estórias entre o macro e o micro, naquilo que os arquitetos denominam movimentos entre escalas. Afinal, o livro é Grande Sertão: veredas, como se o todo só pudesse ser abarcado tanto pelo que olhamos, ou temos próximos aos nossos olhos, na nossa vivência, como também pelo mapa, pelo distanciamento, pela amplidão. 

Bibliografia:

ROSA, João Gumarães - Grande Sertão: veredas - Editora Nova Fronteira Rio de Janeiro 1987