quarta-feira, 3 de julho de 2019

GESTÃO URBANA, SAÚDE, HABITAÇÃO E MODELOS DE CIDADE

Pedro da Luz Moreira

Professor Associado da EAU-UFF

Doutor pelo PROURB 2007

RESUMO:

Karl Liegen Stadt de 1929 conjunto do arquiteto Bruno Taut
na Berlim da República de Weimar, um modernismo
integrado a cidade novecentista
O presente texto pretende discutir as complexas interrelações entre a configuração do urbano e a saúde, e se essa está capacitada a apontar um modelo físico de cidade. Isto é, a busca pela cidade saudável estaria capacitada a gerar uma forma de ocupação espacial, que otimizasse os parâmetros da saúde em ruas, quadras e lotes. Elementos estruturais da divisão entre esfera pública e privada, que se constituem no vocabulário de formulação do tecido da cidade desde tempos imemoráveis. O debate envolve também a habitação e sua produção em larga escala, de forma a que seja acessível a amplas parcelas da população. Mas, aqui é fundamental pensar a habitação no contexto da cidade, cercada de serviços e propiciando uma vida urbana densa e diversificada, aonde usos diferenciados se aproximam. Se a proposição de modelos fechados é tida hoje como autoritária, a explicitação de princípios norteadores ao final do artigo pretende apenas fomentar um debate, que nos guie à cidade saudável.



INTRODUÇÃO:

O artigo aqui desenvolvido debate a partir dos eventos do ano de 2020 na cidade do Rio de Janeiro, a construção de quatro eixos estruturadores capazes de direcionar para a cidade saudável. Os eventos são O Congresso da UIA2020Rio e a Capital Mundial da Arquitetura[1], que acontecerão na cidade do Rio de Janeiro em 2020. A partir desses eventos faz-se uma ampla revisão histórica do que foi o urbanismo e a produção habitacional, principalmente no seu enfrentamento da moderna cidade industrial, que determinou uma grande afluência de população para nossas cidades. A presente reflexão se debruça sobre a sensibilidade modernista, que conquistou corações e mentes do mundo em uma diversidade de lugares, que se esgota ao final da 2ª Grande Guerra, com as bombas de Nagasaki e Hiroshima, no Japão. Logo depois, o texto tenta mapear nossa contemporaneidade, apontando que a desconfiança com o cânone modernista nos lança em uma grande insegurança, que na verdade confronta o localismo ao globalismo, direcionando-nos para a necessidade de adoção do multiculturalismo. A inclusão e a promoção de um desenvolvimento que não mais exclua parcelas significativas da população parece se constituir como o paradigma maior a ser enfrentado pela contemporaneidade. A própria massificação do mundo contemporâneo parece nos apontar para uma prática distanciada das vanguardas, aonde o acesso ao conhecimento se generalizou de tal forma, gerando uma pluralidade de posicionamentos que parecem inconciliáveis.

A participação e a administração dos conflitos no seio da nossa sociedade apontam para uma nova perspectiva aonde a construção de consensos parece ter se inviabilizado. O plano e o projeto emergem nesse contexto como fóruns que propiciam o debate e explicitam conflitos, que são provisoriamente acomodados. A processualidade se implantou de forma definitiva, mostrando-nos que as desigualdades e fragilidades da existência contemporânea no lançam num tempo de incertezas e dúvidas. Apesar disso, é reafirmada a continuidade do projeto moderno, na sua pretensão de construir a auto-determinação dos povos. Ao final, são apresentados quatro pontos sínteses, que combatem a forma inercial de reprodução histórica da cidade brasileira, combatendo seu projeto de exclusão de amplos setores de nossa sociedade, e afirmando a necessidade absoluta da inclusão.

1. Todos os Mundos. Um só mundo. Arquitetura 21

O título acima é o tema eleito para o Congresso Internacional de Arquitetos, que se realizará na cidade do Rio de Janeiro em 2020, conquistado pela rede do Instituto de Arquitetos do Brasil em 2014 em Durbhan na África do Sul; o Congresso UIA2020Rio. No mesmo ano, se realizará a Capital Mundial da Arquitetura, título concedido pela UNESCO, que também se utiliza do mesmo tema assinalado. A ideia contempla e celebra o multiculturalismo e a diversidade presente em nossas cidades com a pluralidade de culturas do construir, mas também sinaliza para a unidade de nosso planeta. E, para o impacto ambiental representado por essas mesmas cidades no meio ambiente natural, aonde estão territórios que ocupam apenas 2% da área do planeta, mas concentram grande parte da geração da poluição. O tema denota a busca de um modelo, aonde o localismo é respeitado, sem descuidar de uma consciência global, quando construímos o meio ambiente humano. O que queremos com esse tema? Como a arquitetura e o urbanismo se inserem na sociedade contemporânea e na brasileira? Como esses ofícios estão inseridos na cultura do nosso tempo? Qual a relevância do plano e do projeto na sociedade contemporânea e brasileira? Para responder a tais perguntas será necessário fazer uma breve revisão histórica sobre o nosso recente passado arquitetônico e urbanístico. Quais projetos foram compartilhados por diversas sensibilidades e que pretenderam enfrentar o problema da moderna cidade industrial, que passou a ser de forma definitiva o cenário da vida da maioria da humanidade nos últimos 150 anos.

Em 2030, seis entre dez pessoas viverão em cidades. Hoje em dia 1 bilhão de pessoas vivem em favelas ou em loteamentos irregulares. Em 2030 serão 2 bilhões de pessoas e em 2050 3 bilhões de pessoas estarão na informalidade[2]. Além desses dados a relação pessoas por domicilio passará nos próximos dez anos no Brasil; de 2,9 habitantes, para apenas 2 habitantes[3], o que significa que a demanda por habitação aumentará enormemente. A questão da habitação é central desde o advento da moderna cidade industrial, pois aproximadamente 80 % do contínuo construído das cidades se refere a esse uso.

Manchester de uma comunidade a várias
Há um desenvolvimento explosivo da população urbana no mundo, um processo que se acelera de forma definitiva com a Revolução Industrial. Na Inglaterra entre os séculos XVIII e XIX, a cidade de Manchester tinha no ano de 1760 doze mil habitantes, em 1850 ela atinge quatrocentos mil habitantes[4]. No Brasil a cidade de São Paulo tinha em 1930 novecentos mil habitantes, chegando em 2011 a vinte milhões de habitantes[5]. Nos próximos dez anos está previsto um êxodo rural da ordem de 200 milhões de pessoas na China, ou o correspondente a dez cidades de São Paulo.

Portanto, o desafio colocado para a arquitetura e urbanismo contemporâneos nesse inicio do século XXI, se refere ao problema iniciado pela cidade industrial, que determinou contingentes populacionais cada vez mais expressivos, que se destinam a elas. A história recente da humanidade nos oferece um rico referencial, mostrando como a cultura arquitetônica e urbanística procurou dar resposta a esses problemas[6].

Historicamente, o movimento urbano higienista de meados do século XIX até o início do século XX sintetizou um modelo de cidade, que alimentou intervenções como; Plano Cerdá (Barcelona 1848), Hausmann (Paris, 1853), Plano Dardo Roca (La Plata Argentina 1882), Plano Aarão Reis Belo Horizonte, Brasil 1897). Apesar da diversidade de contextos percebe-se nesses planos uma estrutura comum, que contrapõe uma malha de avenidas mais espaçada, contraposta a uma malha de vizinhança regular, que conforma a base de todo o desenho. Esses planos e intervenções urbanas são nomeados pelos historiadores, sobre diferentes nomes; neoclássico (BENÈVOLO 1983), higienista (HALL, 2002), primeira modernidade ou belle epoche (AYMONINO 1972). Muito além dos nomes, as cidades reformadas ,ou os planos para novos territórios representaram uma clara morfologia, aonde as ações do circular rápido (grandes avenidas), e ruas de vizinhança foram separados e diferenciados por geratrizes de desenho distintas. Nos casos de ampliação sobre território virgem, como Barcelona, La Plata e Belo Horizonte, essa recorrente repetição chega ao dimensionamento das quadras, ruas vicinais e avenidas, que possuem dimensões iguais[7]. Além dessas cidades, o Brasil foi marcado pela geração dos engenheiros higienistas, como Aarão Reis, principal artífice da nova capital mineira, mas também ideólogo das transformações da capital da república em 1905 no governo Pereira Passos. Também, Saturnino de Brito engenheiro sanitarista nascido em Campos dos Goytacazes que trabalhou em várias cidades, como Santos e Recife marcou esses territórios a partir da definição de padrões para avenidas, ruas, quadras e lotes[8]. Essa atitude denota a presença de um modelo, que representa a cidade burguesa por excelência, que é também a última consolidação de um modelo de desenho, no campo do urbanismo.

2. Modernismo:

Oto Wagner, arquiteto vienense projeta em 1901 o Metrô de
Viena, não apenas as estações, mas toda a rede
.
Essa primeira modernidade será sucedida pelo modernismo das vanguardas centro-europeias[9], que pretenderam construir uma cidade que fizesse frente ao imenso êxodo rural, que assolava as cidades da Europa e da América do Norte. O modernismo é um fruto da grande cidade industrial, a cidade de Chicago na passagem do século XIX para o século XX assiste um debate entre o Movimento do City Beatiful de Burnham - academicista e eclético - e as tendências organicistas e modernistas de Sullivan e de Wright[10] que se antecipam em vários anos aos debates das vanguardas centro-européias. A cidade de Chicago, por sua dinâmica explosiva e de rápido crescimento representou um palco aonde a primeira modernidade se confronta com a segunda. A Escola de Chicago anuncia a hegemonia americana[11], que se materializará de forma definitiva no segundo pós-guerra, o debate é entre a produção estratificada no tempo da cidade tradicional (city beautiful), ou a produção massiva e repetida da nova cidade industrial.



O conjunto Karl Marx Hof de 1930 em Viena, produção
habitacional para a demanda explosiva de habitação da
moderna cidade industrial
As vanguardas centro-européias seguindo preceitos da Escola de Chicago, fundaram o modernismo com a pretensão de instituir uma nova objetividade (neue sachlichkeit), na qual os monumentos eram a morte da arquitetura, onde se buscava uma nova essência que estava na grande cidade industrial. Basta lermos os textos de Adolf Loos[12] ou Oto Wagner[13], arquitetos da Secessão Vienense, que afirmavam a emergência de uma nova ética do construir, onde o que lhes interessava não eram mais os programas como; organismos governamentais, o teatro de ópera ou o parlamento, a arquitetura da excessão, mas sim a habitação extensiva das periferias intermináveis da cidade industrial européia. A casa do operário ou da classe média, que se constituia na grande massa edificada da cidade industrial, as periferias desse fenômeno inusitado que também explodia na Europa na sua escala e tamanho, determinando um contínuo construído rápido, feio e inadequado. As administrações socialistas e social democráticas do período da República de Weimar na Alemanha e de outros países adjacentes, que construíram uma série de experiências habitacionais interessantes. As infraestruturas urbanas e a habitação produzida em massa são os temas eleitos pelas vanguardas centro-européias, procurando a partir do industrialismo redimir a cidade moderna.



O conjunto do Pedregulho de 1947 de Afonso Eduardo 
Reidy no Rio de Janeiro
Não há como negar que o modernismo conquistou corações e mentes em todas as partes do mundo, com diferentes nuances e formulações ele encarnou um desejo na sociedade de ampliação da autonomia dos povos na definição de seu futuro, de seu vir a ser[14]. O modernismo celebrava uma ideologia industrialista, que acreditava na superação dos problemas da humanidade, a partir da repetição e do standart. No campo da produção habitacional de massa há exemplos de experiências notáveis, que pareciam demonstrar a potência do industrialismo para resolução dos problemas da moderna cidade industrial europeia.


Assim como em outras partes do mundo, o modernismo também conquistou uma ampla gama de discípulos, que produziram uma das suas mais belas vertentes. Por exemplo, ser moderno no Brasil era romper com um arcaismo agrário, com o patriarcado e adotar um comportamento urbano e republicano, que mirava na superação de nosso passado colonial e dependente. O modernismo carioca explode a caixa da arquitetura se expandindo em direção a natureza e ao meio natural. A cidade do Rio de Janeiro se insere num cenário natural generoso pontuado de ícones geológicos como o Pão de Açúcar, Corcovado, Morro Dois Irmãos, Pedra da Gávea, a arquitetura modernista valoriza a fluidez entre exterior e interior e se dedica a criação de espaços públicos notáveis.


3. Crítica e revisão ao movimento moderno:

A imensa destruição das bombas nucleares em 1945

No final da Segunda Guerra Mundial, as bombas de Hiroshima e Nagasaki demonstram uma imensa capacidade destrutiva e acabam vinculando fortemente tecnologia e destruição. O poderio industrial e militar americano e soviético ganham uma lógica particular, que se torna independente das aspirações comuns, se envolvendo numa espiral competitiva interminável. A crença na industrialização, padronização e repetição intermináveis como uma promessa de redenção das misérias da humanidade sofre um abalo definitivo[15], passando a ser encarada com desconfiança. Emerge uma hegemonia da diversidade entre os seres humanos, que passam a ser vistos como especificidades culturais, raciais, de gênero, ou de qualquer outra característica. O fordismo passa a ser visto com desconfiança.



Em 1961 a jornalista Jane Jacobs publica Morte e Vida das
Grandes Cidades Americana
s
No começo da década de 60, a jornalista Jane Jacobs decreta a perda da vitalidade das cidades americanas em função de um rodoviarismo exacerbado, presente no modernismo nos projetos de Le Corbusier como o Plano Voisin para Paris.



"As cidades tem a capacidade de prover algo para alguém, somente porque, e apenas quando, são criadas por todos... Não existe melhor expert na cidade do que aqueles que vivem e experimentam seu dia a dia." JACOBS 1961 página27


As intervenções de Robert Moses em Nova York elegem o rodoviarismo e destroem relações de vizinhança e de comunidades, a hegemonia do automóvel determina um certo isolamento do indivíduo na grande metrópole, reduzindo o espírito de participação na cidadania. Los Angeles emerge como paradigma do bem viver, onde o automóvel se articula com a baixa densidade, surgindo um modelo de baixa interação social e isolamento do ser urbano. A habitação unifamiliar se exila num idílio, próximo da natureza, com uma garagem abarrotada de automóveis, sem qualquer disponibilidade para a urbanidade.[16]





O 1o Congresso Internacional de Arquitetura Moderna de 1928
reúne trinta arquitetos
A década de 60, explode com a emergência de um mundo que decreta o fim das vanguardas e a presença de uma grande massificação em todos os campos. O mundo elitizado da segunda modernidade dá lugar a uma imensa massificação, que pode ser exemplificada nos Congressos Internacionais de Arquitetura Moderna, que começam em Sarraz no ano de 1928 com vinte e quatro arquitetos e terminam em Dubrovnick no ano de 1956 com uma multidão de estudantes[17].

Filósofos como LYOTARD (1979) e FUKUYAMA (1992) decretam o fim dos discursos explicadores da modernidade como o marxismo e o iluminismo, que construiam uma ética do agir e do pensar. Emerge uma lógica localista, que se rebela contra o pensamento sistêmico e estruturador do modernismo. Desenvolve-se a consciência de que a utopia modernista era autoritária e congelava as aspirações de realização das futuras gerações, impedindo-as de pensar a partir de suas condições.



Em 1980 Ronald Reagan assume a
presidência dos EUA, impondo uma forte
desregulamentação do capital
Em 1979 Margareth Thatcher assume como primeira ministra britânica, em 1980 Ronald Reagan assume a presidência dos EUA, desenvolvendo-se uma enorme desregulamentação do capital. O wellfare state ou estado de bem estar social desmorona, uma transformação que esvaziou o uso industrial e fez emergir um contínuo de serviços financeiros e especulativos, que passaram a representar no mundo anglo saxão, um terço do emprego disponível. Inicia-se uma forte hegemonia do capital financeiro no mundo[18]. Em 9 de novembro de 1989 cai o muro de Berlim, que dividia a Alemanha em dois, e o mundo da Guerra Fria das duas superpotências apresenta sinais de esgotamento.


Em meados dos anos 1990 o advento da internet e das Tecnologias de Informação e Comunicação lançam para a humanidade a possibilidade de acessar um amplo acervo de informações, que determinam uma imensa dispersão de energias, parecendo inviabilizar a possibilidade de construção de prioridades e consensos. A política se fragmenta numa infinidade de interesses que parecem irreconciliáveis, apontando para a impossibilidade da construção de consensos.


4. As respostas da crítica, ou a permanência do Projeto Moderno:


Também em meados dos anos 1990 o filósofo Jürgen Habermas decreta num texto, no qual ironiza a tendência contemporânea de se utilizar do prefixo pós para caracterização do nosso tempo, a distinção entre modernidade e modernismo[19]. O texto de Habermas ao distinguir a modernidade do modernismo, afirma que a pretensão humana de auto determinação do seu futuro, que as revoluções americana e francesa tinham expressado, permanecia inalcançado. Habermas também elabora sua teoria da racionalidade comunicativa, que se contrapõe a racionalidade meramente instrumental, determinando que a razão não deve estar carregada de personalismos, mas construída a partir de consensos[20]. Abre-se uma nova perspectiva utópica, que não mais condena as gerações futuras a uma construção congelada e fixa, mas que celebra o processo de auto-construção e de auto-determinação.



1979 Teatro do Mundo Aldo Rossi
No campo específico da arquitetura e do urbanismo, Kevin Linch[21] e Aldo Rossi[22] apontam para a processualidade da construção da cidade, reforçando conceitos como o da Legibilidade, e o da História. Emerge a idéia das pré-existências na cidade e a leitura de que o projeto da cidade é único e coletivo, desenvolvido no longo tempo por uma série de agentes e atores. Emerge a idéia de legibilidade das partes da cidade, a partir da experiência concreta da vida nesses espaços.

O crítico italiano de arquitetura Manfredo Tafuri lança em 1968 o livro História e Teorias da Arquitetura, no qual elabora a idéia do arquiteto como ideólogo do habitar, um formulador de conceitos e proposições que propõe o Bem viver e possuem a capacidade de contaminar a sociedade para suas formas de operação e de prática[23]. Em 1977 o arquiteto Christopher Alexander lança o livro A Patern Language (Uma linguagem de padrões)[24], que se propõe a mapear a gênese da evolução da forma no processo de desenvolvimento do espaço construído, com o claro interesse de impulsionar a participação do usuário na elaboração do seu ambiente. Desenvolve-se nos EUA o advocacy planning ou projeto participativo, no qual o processo de construção do vir a ser de comunidades específicas é celebrado como a verdadeira pulverização da democracia.



Nova York, apesar de um plano homogeneizador de 1811, a
cidade gerada é diversa e variada
No Brasil em 1988 Carlos Nelson dos Santos lança o livro A cidade como jogo de cartas[25], no qual celebra uma certa neutralidade do desenho da grelha, que impulsiona sua apropriação por diferentes agentes no longo prazo da cidade. O Plano de Nova York de 1811 é celebrado, pois apesar de decretar uma imensa homogenização do território baseado na malha xadrez, em um padrão de ruas e avenidas, e até nas mesmas dimensões dos lotes, acaba por gerar uma cidade diversificada. Os elementos celebrados são a rua, a quadra e o lote como unidades em torno dos quais o jogo da cidade é jogado. Num paradoxo, Carlos Nelsom dos Santos aponta que apesar desse inicio homogenizador a ilha de Manhattan apresenta hoje grande diversidade de tipologias, usos e contínuos diferenciados. Se restabelece a possibilidade da construção utópica, que deixa de ser um objetivo fixo e congelado, mas a celebração de uma processualidade que restabelece a necessidade da presença contínua da criatividade das futuras gerações. O jogo pressupõe agentes e atores igualmente empoderados, que declaram suas intenções e negociam objetivos, a racionalidade abandona a subjetividade isolada e se aproxima da inter-subjetividade.

Kenneth Frampton lança em 2002 o livro Studies on Tectonic Culture[26], no qual aponta a saturação do problema do símbolo e da representação no campo da arquitetura, apontando como saída o desenvolvimento da tectônica, as opções construtivas como um vetor de reessencialização para os arquitetos. O compromisso com o construído. As obras de grandes arquitetos são analisadas a partir da escolha de diferenciados modos de construção, que recolocam a complexa relação entre custo e benefício no projeto.



Museu de Arte Romana em Mérida,
arquiteto Rafael Moneo
O arquiteto atuante Rafael Moneo lança em 2008 Inquietação Teórica e Estratégias Projetuais[27], no qual rejeita a adoção de um personalismo de linguagem por parte dos arquitetos, celebrando a idéia da reinvenção do arquiteto a cada novo projeto. Cada novo projeto representa uma oportunidade, que demanda do arquiteto uma leitura específica de cada lugar, celebrando uma reinvenção particular a cada novo projeto. Moneo também percorre no livro a obra de arquitetos notáveis, identificando em cada um deles as estratégias para convencer a sociedade da relevância do fazer arquitetônico. Nesse percurso reflete sobre a auto biografia de cada arquiteto, encarando as oportunidades de cada projeto como um momento estratégico de celebração do ofício. A obra construída de Moneo revela muito desse ecletismo de linguagem, principalmente quando comparamos o Museu de Arte Romana de Mérida de 1985, com o Kursaal de San Sebastian de 1999.

 






O Plano Voisin para Paris de 1925, destruição da cidade histórica; torres
e rodoviarismo
Estamos às vésperas do Congresso UIA2020Rio e da Capital Mundial da Arquitetura, que começarão em 01 de janeiro de 2020, e se estenderão por todo o ano, culminando nas futuras eleições municipais brasileiras, que ocorrerão em outubro de 2020, no seu primeiro turno. Essas eleições serão diversas de todas as outras que ocorreram anteriormente no Brasil, por uma série de fatos que atingiram nosso meio ambiente político, tirando-o de uma inércia estabelecida. O periodo do Congresso Mundial UIA2020Rio e da Capital Mundial da Arquitetura também pode ser uma oportunidade ímpar para refletir sobre que cidade temos, e qual queremos construir para as futuras gerações? O que aconteceu com nossas cidades, ou para onde estamos indo? Ou melhor, qual imagem da boa cidade que elegemos como modelo entre nós? Qual forma-tipo de cidade que compartilhamos como representação ideal do bem viver? Apesar dos modelos estarem esgotados, e, como defendem alguns teóricos, vivemos um momento pós hegemônico, onde não é mais possível a eleição de uma forma tipo sintética e representativa; será que ainda é possível compartilhar princípios norteadores da cidade que queremos ter?

Um princípio geral vem pautando a política no Brasil nos últimos anos e tudo indica que continuará na nossa agenda, que é a busca por uma sociedade com maior equidade, ou melhor distribuição de renda. O senso comum da sociedade brasileira de uma maneira geral não identifica nas atribuições do governo municipal, ou na estruturação do espaço construído da cidade a capacidade para promover ou induzir uma melhor distribuição de renda. De uma maneira geral, o brasileiro considera que a promoção de maior equidade em nossa sociedade é fruto apenas de políticas nas áreas da saúde, da educação, do salário mínimo, mas nunca da nossa ordenação espacial.

No meu modo de entender esse é um grande equívoco, uma vez que a qualidade espacial da cidade pode representar uma apropriação indireta de renda para parcela significativa da população. Por exemplo, se temos melhores condições de mobilidade, que garantam tempos médios pendulares menores dos deslocamentos casa e trabalho, a população poderá se apropriar de um maior tempo livre, que pode representar incremento de renda, ou de qualidade de vida. Se tivermos melhores condições de saneamento nas nossas cidades, menos poluição e menos tempos em nossos deslocamentos teremos menos gastos em saúde, e, portanto apropriação indireta de rendas suplementares. A estruturação espacial ou a política urbana de nossas cidades é um fator primordial para se alcançar maior equidade na sociedade brasileira, afinal a segmentação espacial das nossas cidades está determinada por forte clivagem entre as classes.

Há no mundo contemporâneo um modelo econômico hegemônico baseado no neo-liberalismo, uma forma de operar que celebra a iniciativa particular ou mesmo coletiva, desregulamentada das formas tradicionais de controle do Estado, apesar da afirmação recorrente de uma realidade pós-hegemônica. As iniciativas públicas ou articuladas pelo Estado são vistas com desconfiança, e consideradas incapazes de promover processos bem sucedidos, ou virtuosos. Essa proposição começa a se desenvolver na década de setenta do século XX, que é apontada como um momento de crise e de virada da regulação internacional acertada pelo acordo de Bretton Woods, que regulava as finanças desde 1944, e que começava a apresentar sintomas de esgotamento. A partir desse momento irá se articular uma narrativa, que impõe a desregulamentação financeira e a austeridade fiscal.

Em 1973 o golpe de estado no Chile impõe uma ideologia neo-liberal no país, em 1975-76 a disciplina fiscal é implantada no Reino Unido pelo FMI, e também em 1975 a cidade de Nova York  inicia a aplicação de rigorosa meta fiscal, após sua declaração de inadimplência[28]. No final dos anos setenta, as eleições de Thatcher e Reagan marcam a conquista do poder pelo discurso neo-liberal, que passa a pautar nosso cotidiano com a ideia da desregulação econômica e liberação do empreendedorismo individual. Muitos dos fluxos financeiros aprisionados por regulações estatais passam a circular pelo mundo de forma livre, e, sem conseguir ser  sequer monitorados por qualquer tipo de regulação fiscal, afinal as iniciativas estatais continuam sendo vistas com desconfiança.

Em 2008, uma crise sem precedentes se abate sobre a economia americana, grandes instituições financeiras sugadas pela quebra de confiança no sistema de hipotecas e nos seguros a sua volta ameaçam grandes conglomerados rentistas, que são classificados como; "so big to crash".[29] O governo americano, temendo um efeito dominó em toda a atividade econômica, semelhante a crise de 1929, aporta grande quantidade de capital do contribuinte americano, socializando os prejuízos. Alguns economistas liberais, como Stglitz[30] e Piketi[31] apontam a necessidade de retorno da regulação, que deverá ser globalizada para controlar a especulação desenfreada.

Os insistentes marxistas, como o crítico cultural Jameson[32] e o geógrafo Harvey[33] recolocam a questão da tendência preferencial do sistema pela forma líquida monetarizada, que se materializa de forma mais concreta nas bolsas e investimentos rentistas, mas também no espaço, e em processos especulativos nas cidades. Apesar disso tudo, permanece a desconfiança pelas iniciativas governamentais e públicas, que ainda são vistas como esforços arrecadatórios mantenedores de aparatos burocráticos, que apenas visam sua reprodução e auto-sustentação, sem qualquer interesse público ou projeto republicano.

Por outro lado, as cidades passam a concentrar e expressar imensas manifestações de rebeldia e de insatisfação, explodem aglomerações em várias partes do mundo, que reinvindicam melhores condições de habitar e de circular sem a capacidade de formular uma pré-figuração alternativa para o módus operandi do status quo hegemônico. É nas cidades que se materializa uma imensa segmentação e fragmentação de oportunidades, uma concentração desequilibrada de benefícios que atendem a uma minoria. O território de nossas cidades demonstram de forma didática a segmentação da sociedade, a cidade capitalista neo-liberal é produtora de imensas áreas de exclusão, enquanto outras muito restritas se globalizam.

Portanto, se não há mais possibilidade para os modelos pelo seu esgotamento, os princípios da boa cidade precisam ser explicitados de forma a dar sentido as imensas manifestações de rebeldia. A cidade deve encontrar um princípio geral na busca da promoção da equidade, um território urbano onde está universalizado o acesso às infraestruturas urbanas é o objetivo maior. Por outro lado, as cidades brasileiras precisam transformar o modo como vêm sendo construídas, para tanto, sugere-se priorizar quatro proposições objetivas:

* a Cidade deve ser compacta e densa, evitando-se a dispersão interminável e enfatizando-se o papel aglutinador do antigo centro histórico;

* a Cidade deve ser lugar da convivência da diversidade de classes e de usos, evitando-se os guetos de ricos e pobres e a monofuncionalidade;

* a Cidade deve ter mobilidade efetiva para todos, evitando-se a exclusão determinada pela ineficiência ou tarifação alta dos sistemas de transporte coletivo;

* a Cidade deve ampliar o reconhecimento da ecologia e dos biomas locais, construindo-se melhor relação com a natureza. 
6. NOTAS:
[1] Disponível em www.uia2020rio.archi
[2] Dados disponíveis no site da ONU, sobre os Objetivos do Desenvolvimento Sustentável (ODS) https://nacoesunidas.org/conheca-os-novos-17-objetivos-de-desenvolvimento-sustentavel-da-onu/
[3] Disponível na pesquisa nacional por domicílio PNAD contínua, que projeta para 2030 esse resultado. Ver https://www.ibge.gov.br/
[4] BENEVOLO 1983 página 557
[5] REIS 2004 página 17
[6] HALL 2002 descreve as terríveis condições das primeiras cidades industriais “A cidade da noite apavorante”
[7] MOREIRA 1999 página 27
[8] CARVALHO (org.) 2010 descreve as experiências de Saturnino de Brito em Recife
[9] A referência as vanguardas centro-europeias está em TAFURI 1979, que identificou na Alemanha, Austria, Russia e outros países o impulso do modernismo
[10] DAL CO (org.) 1975 – La ciudad americana de la guerra civil al New Deal – compilação de vários autores
[11] ARRIGHI 1996 destaca a hegemonia cultural Estado Unidense como uma conquista a partir do 2º pós Guerra
[12] LOOS 1980 condena a ornamentação na arquitetura
[13] WAGNER 1983 OBRAS COMPLETAS
[14] KOPP 1990 página 42
[15] HABERMAS 2002 página 153
[16] MOREIRA 2007 página 87
[17] FRAMPTON 1997 página 328
[18] ARRIGHI 1996 desenvolve a ideia de que o mundo contemporâneo é dominaod pela hegemonia do capital financeiro.
[19] HABERMAS 1987 página 125
[20] HABERMAS 2002 página 412
[21] LINCH 1999
[22] ROSSI 1995
[23] TAFURI 1979
[24] ALEXANDER 1977
[25] SANTOS 1988
[26] FRAMPTON 2002
[27] MONEO 2008
[28] DARDOT  e LAVAL 2016 indicam a instalação no mundo contemporâneo do neo-liberalismo, a partir do Golpe de Estado no Chile
[29] DARDOT  e LAVAL 2017 apontam o conceito de comum como algo que transcende a esfera pública e privada, e como os governos foram privatizados pela lógica financeira
[30] STIGLITZ 2013 aponta a necessidade de se retomar a regulação do sistema financeiro para estancar a crise, trata-se de um Prêmio Nobel de Economia
[31] PIKETI 2015 também aponta a necessidade de se operacionalizar um imposto de âmbito mundial, que regule os fluxos financeiros. Internacionais.
[32] JAMESON 2001 aponta como o capital financeiro se articula com o capital imobiliário na cidade contemporânea, impulsionando o caráter especulativo da economia em geral.
[33] HARVEY 2013 aponta como determinadas cidades americanas foram aprisionadas pelo capital especulativo imobiliário e financeirO




7. BIBLIOGRAFIA:

ALEXANDER, Christopher – El modo intemporal de construir – Editorial Gustavo Gilli Barcelona 1981 413 páginas

ALEXANDER, Christopher – Urbanismo y participación-  Coleccion Punto y linea Barcelona 1978 119 páginas

ARRIGHI, Giovanni - O longo século XX, dinheiro, poder e as origens do nosso tempo - editora Unesp São Paulo 567 páginas

AYMONINO, Carlo – Origenes y desarollo de la ciudad moderna – Editorial Gustavo Gilli Barcelona 1972 329 páginas

BENEVOLO, Leonardo – História da Cidade – Editorial Perspectiva São Paulo 1983 584 páginas

CARVALHO, Maurício Rocha, MOREIRA, Fernando Diniz e MENEZES, José Luiz Mota – Um Recife Saturnino: Arquitetura, Urbanismo e Saneamento – Editora Nectar Recife 2010 127 páginas

DAL CO, Francesco, (org). - La ciudad americana, de la guerra civil al new deal - editora Gustavo Gilli Barcelona 1975, particularmente o ensaio de TAFURI, Manfredo - La Montaña desencantada, el rascacielo y la ciudad 206 páginas

DARDOT, Pierre e LAVAL, Christian - A nova razão do mundo, ensaio sobre a sociedade neoliberal - Editora Boitempo, São Paulo 2016



DARDOT, Pierre e LAVAL, Christian - Comum, ensaio sobre a revolução do século XXI - Editora Boitempo, São Paulo 2017



FRAMPTON, Kenneth – História Crítica da arquitetura moderna – Martins Fontes São Paulo 1997 470 páginas

FRAMPTON, Kenneth – Studies in Tectonic Culture – The MIT Press London 2002 430 páginas

HABERMAS, Jürgen – Arquitetura Moderna e Pós Moderna  - Conferência  proferida por  Habermas  por  ocasião  da  abertura  da  exposição A Outra Tradição — Arquitetura em Munique de 1800 à Atualidade, em novembro de 1981. Publicada  originalmente  na revista  Der  Architekt    2, 1982, e incluída posteriormente  com  acréscimos no livro Die Neue Unuebersichtlichkeit,  Frankfurt,  1985, pp. 11-29.  Tradução  feita  do  alemão  a partir da versão de 1985 Novos Estudos CEBRAP 1987.10 páginas

HABERMAS, Jürgen – O Discurso Filosófico da Modernidade – Editora Martins Fontes São Paulo 2002 540 páginas

HALL, Peter – Cidades do Amanhã – Editora Perspectiva São Paulo 2002 578 páginas

HARVEY, David - Os limites do capital -editorial Boitempo São Paulo 2013



JACOBS, Jane – Morte e vida de grandes cidades – Editora Martins Fontes São Paulo 2000 510 páginas

JAMESON, Frederic - A cultura do Dinheiro, ensaios sobre a globalização - editora Vozes Petrópolis 2001, particularmente o ensaio O tijolo e o balão: arquitetura, idealismo e especulação imobiliária 

KOPP, Anatole – Quando o moderno não era um estilo e sim uma causa – Editora Nobel Edusp São Paulo 1990 253 páginas

LINCH, Kevin – A imagem da cidade – Editora Martins Fontes São Paulo 1999 227 páginas

LOOS, Adolf – Ornamento y delito y otros escritos – Editorial Gustavo Gilli Barcelona 1972 275 páginas

MOREIRA, Pedro da Luz – Projeto, Ideologia e Hegemonia, em busca de uma conceituação operativa para a cidade brasileira – PROURB julho 2007 422 páginas

MOREIRA, Pedro da Luz – Belo Horizonte, e a fundação de nossa tradição moderna – PROURB 1999 362 páginas

PIKETI, Thomas – O capital no século XXI – Editora Intrinseca Rio de Janeiro 2015 756 páginas

REIS, Nestor Goulart – São Paulo vila cidade metrópole – Garamount São Paulo 2004 260 páginas

ROSSI, Aldo – A arquitetura da Cidade – Editora Martins Fontes Saõ Paulo 1995 309 páginas

SANTOS, Carlos Nelson dos – A cidade como um jogo de cartas – Editora Eduff e Projeto São Paulo 1988 192 páginas

STIGLITZ, Joseph E. - O Preço da Desigualdade – Editora Boitempo São Paulo 2013

TAFURI, Manfredo – Teorias e História da arquitetura – editorial Presença Lisboa 1979 389 páginas