quarta-feira, 24 de janeiro de 2018

Finalmente emerge uma autocrítica consistente da esquerda brasileira

Governos progressistas na América Latina
O livro de Vladimir Safatle, Só mais um esforço, apresenta uma dolorosa revisão dos anos  de governo da esquerda no Brasil (Lula de 2003-10 e Dilma Roussef 2011-16), e da América Latina onde mais uma vez ficou clara a ideia de conciliação por cima da política e do patronato brasileiro e sul-americano. Já tinha comentado aqui no espaço do blog https://arquiteturacidadeprojeto.blogspot.com.br  a continuidade e a impossibilidade de distinção entre as políticas macroeconômicas de Fernando Henrique, Lula e Dilma, no texto A continuidade da política econômica dos três últimos presidentes. Fato, que denuncia a clara ausência de identidade de governos de esquerda, nos últimos anos, não apenas no Brasil, mas em todo o mundo, bastando para tal revisitar os períodos de Felipe Gonzalez (1982-1996) na Espanha, Tony Blair (1997-2007) na Inglaterra, ou Françoise Hollande (2012-2017) na França. Todos acabaram fazendo caixa de ressonância da questão da austeridade nas contas públicas, moderando discursos de maior distribuição de renda e enveredando por processos, que claramente incentivaram o patronato em detrimento do mundo do trabalho. Já houveram outras auto-críticas da esquerda no contexto do Brasil sobre esse período, como as de André Singer e Jessé Souza, que também já foram comentadas aqui no blog, no entanto ambas ainda se mantém celebratórias, e até com um tom saudoso e melancólico.

SAFATLE 2017, inicia sua crítica contextualizando na América Latina e no mundo contemporâneo o esforço das esquerdas para tentar integrar anseios populares aos processos de consolidação democrática. E, aqui emerge uma primeira questão, que ao meu ver parece bastante acertada, os governos de esquerda da última década do século XX e da primeira do século XXI concentraram seus esforços na consolidação e não na radicalização da democracia existente. As formas utilizadas pela esquerda de integração popular, notadamente na América Latina, não investiram na intensificação da sua participação, como aliás anunciavam antes da conquista do poder central.

"Lembremos, então, como a experiência latino-americana conheceu nestas últimas décadas, dois eixos principais. No primeiro encontramos um modelo de polarização social normalmente marcado por reformas estruturais nas instituições do poder e por processos de incorporação popular populista. Foi o que ocorreu em países como Venezuela, Equador, Bolivia e Nicarágua. Esse modelo, autodenominado "bolivariano", vendeu-se como o "socialismo do século XXI", mas foi em larga medida dependente de dinâmicas de constituição de corpos políticos que remetem ao populismo do século XX... No segundo eixo encontramos  um modelo de gestão social marcado, ao contrário, pela conservação de estruturas institucionais próprias à democracia liberal e por processos de incorporação popular também caracterizados como populistas. Esse é o modelo que vigorou no Brasil e na Argentina, principalmente, mas em menor grau no Uruguai, no Chile, no Peru, em El Salvador e, por algum tempo, no Paraguai. Tal modelo representou uma experiência retardatária que procurou realizar políticas de redistribuição respeitando o espaço político próprio à democracia liberal, acreditando que poderia, de alguma forma, repetir certas estratégias de gestão da social-democracia europeia do pós-Segunda Guerra Mundial." SAFATLE 2017 página17 e 18

Interessante destacar que SAFATLE 2017 destaca e sublinha alguns casos no contexto latino americano, como o da Bolivia, que apresentou crescimento econômico contínuo no período, e se auto denominava como "Estado plurinacional", apresentando casos de aprofundamento democrático, como a eleição para os juízes do seu Supremo Tribunal. O importante é a contextualização acertada do autor do Brasil num contexto mais amplo, na semi periferia do capital e mesmo no seu centro, onde experiências foram testadas, e parecem apontar para o esgotamento da política de conciliação e ajustes gradualistas, que foram facilmente cancelados no primeiro retorno ao poder, no golpe parlamentarista de 2016, da velha autocracia do país. As experiências latino americanas e europeias, portanto apontam para o fim da experiência de conciliação por cima da democracia liberal, com a inclusão de setores populares mais ampliados. A orientação política deixa a tendência da luta pela conquista do centro, reconhecendo que a constituição do Estado de Bem-Estar Social foi uma "criação conjunta de esquerda e direita" no pós segunda guerra mundial. O neoliberalismo acabou desvelando as reais intenções do patronato, que pretende manter intocado suas posses e reduzir os custos do trabalho, revivendo processos de acumulação primitiva. O declínio do mundo do socialismo real, que tanto assombrou as democracias liberais europeias, que de certa forma regulava a fúria do capital em direção a lucros exorbitantes.

"Uma crise provocada não pelo custo da Previdência Social, mas, por um lado, pelo desmantelamento do colonialismo que sustentava a social democracia (principalmente em países como França e Reino Unido), garantindo acesso monopolista a mercados, além de mão de obra imigrante barata, seguindo uma lógica colônia-metrópole." SAFATLE 2017 página21

Por outro lado, a crise do petróleo de 1973, e os seus rebatimentos no conflito Israel-mundo árabe, com consequências também para o equilíbrio do sistema colonial determinaram a primeira crise global do pós-guerra, desarrumando o crescimento e a distribuição de renda desse período. O autor menciona uma inversão peculiar que o sistema capitalista foi capaz de operar, com relação a pauta do Maio de 68, na qual existia uma clara crítica ao Estado burguês, burocrático e disciplinar. Maio de 1968 recusava o estado e as instituições de controle burocrático tanto da democracia liberal, quanto do socialismo soviético. Se revoltava contra a reprodução material, os dispositivos de controle social, a partir de uma crítica totalizante ao capitalismo como sistema econômico e modo de existência, recolocando a questão da revolução. No entanto, ao final da década de setenta e começo dos anos oitenta, a direita capitaneada pelo mundo anglo-saxão, com a primeira ministra Margaret Thatcher da Inglaterra, e o presidente americano Ronald Reagan tomam a dianteira e assumem propostas de desregulação e retração do Estado, atendendo de forma parcial a pauta de maio de 68.

"Os arautos do modelo econômico atual gostam de se ver como vencedores de um embate no qual teriam demonstrado ao mundo que o capitalismo neoliberal era a melhor forma, até mesmo a única, de produzir riqueza, inovação e bem-estar." SAFATLE 2017 página23

De fato é preciso reconhecer, que o discurso neoliberal conquistou muitos corações e mentes pelo mundo, colonizando não só formas de estruturar governos e instituições, mas também o cotidiano de variados agentes e atores. Efetivamente, o aumento da autonomia individual, ideias de flexibilidade do agir cotidiano, crítica ao Estado burocrático estavam presentes nas pautas do Maio de 68.

"Atualmente, conhecemos estudos que defendem a tese de que a ascensão do neoliberalismo no final dos anos 1970 é um peculiar desdobramento dos impulsos de Maio de 1968." SAFATLE 2017 página27 "Deve-se assumir que a extrema direita foi capaz de constituir uma resposta política, ouvindo o descontentamento social, a insegurança produzida por um sistema econômico de pauperização e aumento de vulnerabilidade." SAFATLE página32

De uma hora para outra, o sistema instituído passou a celebrar a gramática do empreendedorismo, o declínio dos padrões de solidariedade social, a imposição de um individualismo competitivo que beira a animalidade, o fim do emprego, e a busca incessante pela desregulamentação. No entanto, com a crise do sistema capitalista avassaladora de 2008 esse discurso perde poder de convencimento, surgindo os primeiros levantamentos, inclusive de economistas liberais, de que a pobreza vem se ampliando de forma contínua, a partir da desregulamentação dos anos oitenta. No período de 1910-20, a renda dos 10% mais ricos representava entre 45% e 50% da renda nacional norte-americana. Essa porcentagem cai para 35% em 1950, chegando a 33% em 1970, revertendo essa tendência nos anos noventa, e retorna aos níveis de 1910-20 (45% a 50%) entre 2000 e 2010. O autor também destaca discursos que botaram em cheque, o argumento moral da meritocracia, como o trabalho de dois economistas italianos; Guglielmo Barone e Sauro Mocetti, que mostraram como os sobrenomes das pessoas ricas em Florença eram os mesmos há quase 500 anos, desde 1427 até 2011. SAFATLE 2017 também sublinha o cinismo do patronato nesses anos, na fala do multimilionário  Warren Buffet;

"Quem disse que não há luta de classes? É claro que há uma, e estamos vencendo." Warren Buffet, citado por SAFATLE 2017 página24

É verdade, que nos anos noventa uma série de países do centro do capitalismo investiram em propostas que pareciam anunciar o declínio do neo liberalismo, naquilo que ficou conhecido como "onda rosa". França, Inglaterra, Alemanha e Itália pareciam anunciar uma guinada a favor do mundo do trabalho, Lionel Jospin, Tony Blair com sua terceira via, Gerhard Schroeder com sua aproximação ao centro e Massimo D´Alema, assim como a volta dos democratas com Bill Clinton nos Estados Unidos anunciaram mas não realizaram a virada da esquerda. Na verdade tratava-se da visita da saúde, antes da morte da social-democracia europeia e do new deal americano, ambos agora conciliadores com a hegemonia financeira neo liberal. Tratava-se na verdade de uma capitulação e uma simbiose com modos de gestão, que hoje se percebe geraram mais concentração de renda. Impressionante como essas experiências não informaram, e não orientaram a guinada neoliberal do segundo governo Dilma, que entregou sua política econômica a Joaquim Levy. Ficava cada vez mais claro, que essa ideologia apenas oferecia um futuro de condomínio fechado, fortemente vigiado, sem qualquer construção da noção de bem público, o que demonstra que ela passara a vender não mais promessas, mas medo. Com isso, o capitalismo na sua fase atual não pode mais ser descrito como uma sociedade da satisfação administrada, como argumentavam os teóricos de Frankfurt nos anos sessenta e setenta, mas passou a ser uma sociedade do desencanto e da insatisfação. Passamos a ser socializados pela precariedade, por meio da não partilha de expectativas positivas, mas pela necessidade de pequenos ajustes que garantam apenas a sobrevivência imediata.

Não se trata da clássica distinção, existente no seio da esquerda entre reforma e revolução, pois a esquerda nessas experiências abandonou as reformas, afinal foi ela que levou a cabo os choques de austeridade. De tudo parece que só restou para os progressistas as políticas de identidade, os direitos de setores vulneráveis. SAFATLE 2017 parece ainda acreditar na formulação de uma síntese generalizante capaz de gerar um "sujeito político" abrangente aglutinador de um discurso, como foi o marxismo no século XIX;

"Na verdade, tais embates funcionam atualmente como compensação pela incapacidade da esquerda de lutar pela emergência de um sujeito político com força de implicação genérica, ou seja, com capacidade de implicar todo e qualquer sujeito em um mesmo movimento de emergência de corpos políticos. Insisto nesse ponto há anos, ao afirmar a necessidade de passarmos de uma política das diferenças a uma política da indiferença*. Não é estranho que tenhamos hoje grande força de mobilização por pautas específicas, mas nenhuma capacidade de criar constelações capazes de colocar todas essas lutas em processo de unificação." SAFATLE 2017 página36 

O autor chama a atenção de que essa força generalizante não é fruto de alguma universalidade positiva, mas "fundada na crença na possibilidade de atribuição extensiva de predicados gerais." Para SAFATLE 2017 a política se transformou em mera experiência de autoexpressão, reduzindo-se a demandas de reparação e compensação, passando a ser restritivas a locais específicos e nunca a exigências globais de transformação dos modos de reprodução da vida. Nesse contexto é fundamental enfatizar o esvaziamento do Poder Legislativo e do Executivo, como políticas da mera representação, lutando por mecanismos de democracia direta. Além disso lutar pela justiça tributária radical, gestão direta pelo mundo do trabalho dos empreendimentos, gestão coletiva de recursos públicos, e restrição ao direito à propriedade privada. Nada disso foi abordado pela esquerda que chegou ao poder no Brasil, e que foi apontada no início do segundo governo Lula, como exemplo de crescimento e conciliação.

UM PROBLEMA DE IMAGEM

A partir daí SAFATLE 2017 articula imagens e periodos da história brasileira, destacando a foto do jornalista Vladimir Herzog morto nas dependências do DOI-Codi em São Paulo, como a representação de sua barbárie. Era materialmente impossível alguém se enforcar àquela distância tão pequena do chão, diziam legistas e especialistas, mas para a ditadura civil-militar pouco importava, ela criava e forçava o discurso. Para o autor, essa era a essência mesma de uma ditadura, uma foto que literalmente queria fazer a sociedade acreditar num auto enforcamento, mas que ao final provava que era impossível alguém se matar assim. O arbítrio não precisa ser convincente, ele simplesmente cria o relato e determina uma única verdade, que deverá ser seguida pela sociedade, não importando os dissensos.

A segunda foto destaca Lula com as mão sujas de petróleo numa plataforma da Petrobrás na bacia de Campos, repetindo uma imagem emblemática de Getulio Vargas na campanha, O Petróleo é nosso. Era claramente uma reencarnação da história brasileira, uma de suas maiores fantasias sociais, uma reconciliação por cima através do crescimento, da unidade e do progresso, uma repetição da história comandada pela primeira experiência de conquista do poder pela esquerda. Aquela imagem era materialização da repetição da história, "a repetição de uma estratégia populista de governo de extração getulista." A questão do populismo é bastante delicada na história nacional, para o autor o Brasil está condenado a repetir um pêndulo, que oscila entre governos oligárquicos e governos populistas, incapaz de pensar a si mesmo de forma prospectiva e inaugural. Mas SAFATLE 2017 não repete a crítica do PSDB ao populismo PTista, mas reconhece nessa tendência a incorporação de setores populares ao processo político, resgatando o filósofo argentino Ernesto Laclau, um dos poucos entre nós que conseguiu escapar da desqualificação genérica do populismo.

"O filósofo argentino Ernesto Laclau foi um dos poucos a conseguir escapar da desqualificação genérica do populismo, ao mostrar como este descrevia uma característica fundamental da democracia, a saber, a capacidade de incorporação, através da construção do "povo", de classes sempre expulsas do poder.**" SAFATLE 2017 página48

O próprio PT em épocas pretéritas desqualificava o populismo varguista, e identificava o brizolismo como continuidade populista apontando seu caráter de querer manter na minoridade as massas populares emergentes na política brasileira. O novo sindicalismo do ABC paulista, no qual Lula emerge como grande liderança apontava a Consolidação das Leis Trabalhistas, CLT varguista, como o Ato Institucional número 5 da Ditadura Civil-Militar, o AI5 dos trabalhadores. Mas o fato é, que o pacto populista com sua concentração no poder arbitrário de uma liderança carismática acaba por manter as massas populares num estágio de minoridade, impedindo que se construa sua efetiva autonomia. A fragilidade da concentração do poder no líder carismático acaba determinando a implosão do consórcio do governo pelo próprio setor oligarca, que deixa sua presença discreta para assumir o comando.

"Ao sair do governo em 1945, Vargas dará lugar a seu próprio ministro da Guerra, representante da ala conservadora que negociara com o nazismo, Eurico Gaspar Dutra. Já Lula verá o projeto que ele representava ser golpeado pelo próprio vice-presidente de Dilma Roussef." SAFATLE 2017 página50

A terceira imagem selecionada por SAFATLE 2017, para representar a síntese ou o espírito do tempo é a foto de 20 de junho de 2013 com o Palácio do Itamaraty em chamas, invadido pelos manifestantes da ocasião. Ela é "a emergência de uma revolta sem comando ou controle com força suficiente para destituir o poder." Na verdade essa imagem representa um potencial de revolta e transformação, que foi de certa forma desperdiçada, a partir da falta de comando e direcionamento. Ela também mostra a destruição de um substituto do Congresso Nacional, pois os manifestantes primeiramente se dirigiram a ele, ameaçando quebra-lo, como as forças de repressão impediram esse movimento, quebraram o primeiro edifício público a sua frente. E, segundo SAFATLE 2017 demonstrou uma clara desconexão entre os movimentos sociais e a esquerda, que ficou mais interessada em se manter no poder, do que radicalizar a participação democrática e ouvir as demandas das manifestações. O autor faz uma analogia com movimentos pretéritos de explosão das massas, como o 18 de Brumário descrito por Marx, onde o resultado é o retorno da reação com Napoleão III. A criminalização dos movimentos sociais, emerge o perigoso resgate da ditadura militar, uma ansiedade pelo estabelecimento da ordem a partir da repressão e a recuperação de narrativas como a de Bolsonaro, que literalmente propõe o esquecimento e a amnésia.

O ESGOTAMENTO DA NOVA REPÚBLICA:

"O Brasil é, acima de tudo, uma forma de violência." SAFATLE2017 página59

A presença de territórios nas cidades brasileiras, onde a nossa constituição não impera, onde o que vale é a exceção, são locais que pretendemos sejam invisíveis; favelas, loteamentos irregulares, presídios superlotados, etc... A unidade do Brasil, segundo o autor foi constituída a partir de genocídios; índios, negros, população pobre são comandadas por uma política de Estado, que invariavelmente voltam às pautas da classe média para o proto fascista. Para comprovar tal fato, o autor aponta que o Brasil é o único país onde os casos de tortura e desaparecimento aumentaram depois do fim da Ditadura civil-militar. É, também o único país na América Latina onde os torturadores foram anistiados, numa imposição dos militares, e suas histórias de horror estão recalcadas, nessa condição a possibilidade de retornarmos a esse módus operandi é grande, E, apesar disso tudo, esse setor proto fascista da classe média clama nas ruas para o retorno da intervenção militar. Os dois grupos que comandarão a transição do governo autoritário para a Nova República foram o PMDB e o PFL, oposição e situação ao regime ditatorial, que promoveram um acordão, que traiu o movimento das Diretas Já, que então mobilizava as ruas brasileiras.

Por outro lado três grupos polarizaram as esquerdas; o trabalhismo de Brizola e seu PDT, a social-democracia dos tucanos, e o PT com sua aliança de intelectuais, sindicalistas e setores progressistas da Igreja Católica ligados à Teologia da Libertação. No inicio a força política que demonstrou maior força foi o trabalhismo de Brizola, que logo conquistou o governo do estado do Rio de Janeiro, e chegou a primeira eleição direta depois da Ditadura (1989) para presidente como favorito. No entanto, seu isolamento, que impediram a ampliação do trabalhismo numa força política efetiva, uma certa incapacidade de entrar em São Paulo, e sua adequação maior ao rádio do que a televisão com suas novas práticas mais ligeiras e imagéticas fizeram com que Brizola não se qualificasse para o segundo turno das eleições. Com o afastamento de Collor parecia que as esquerdas estavam fadadas a ocupar o poder no Brasil, mas mais uma vez o acordo de PMDB/PFL reencarnou em Fernando Henrique Cardoso (FHC), que foi domesticado apesar de manter citações de Hegel e Gramsci nos discursos. A experiência traumática da inflação, acabou possibilitando, que o PSDB impusesse ao país um duro ajuste, onde estatais foram privatizadas a preços módicos, e se legitimou uma enorme ciranda financeira, que enfatizou o descolamento entre lucros e produtividade. Ao final, o governo do professor e sociólogo FHC entregou o país diante de uma crise energética, taxas de juros exorbitantes, desindustrialização, dependência do FMI, e universidades públicas sem conseguir pagar suas contas de luz.

Diante desse cenário o PT e Lula assumiram o governo central, com claras expectativas na população de inovação, presentes na afirmação de que a esperança havia vencido o medo, e uma clara negação da política de conciliação da Nova República. Logo com a "Carta ao povo brasileiro" e a Reforma da Previdência se percebeu que o partido da mobilização das bases sociais, agora se interessava em atrair e não estava mais contrariando os grupos oligárquicos de sempre. Ao invés de interessado na mobilização de suas bases sociais, e na radicalização da experiência democrática, o PT começou a administrar acordos pouco transparentes na Câmara Legislativa, num modelo de operar que repetia até atores dos governos do PSDB. O primeiro escândalo do mensalão, ainda no primeiro governo de Lula, no ano de 2005, demonstrou de forma clara a forma de operar do Chefe da Casa Civil, José Dirceu, loteamentos de cargos e gerenciamentos de quantias gordas de contratos de propaganda para cooptação de figuras do Congresso Nacional, como o presidente do PTB, Roberto Jeferson. Claro, que tudo isso também contava com uma grande seletividade do judiciário e da grande imprensa nacional, que literalmente engavetava os processos e apagava as notícias do escândalo do governador de Minas Gerais do PSDB, Eduardo Azeredo.

"Assim foi por pouco que tudo não acabou entre 2005 e 2006. Salvou o governo o fato de a direita temer, naquele momento, mobilizações populares. Elas ainda eram uma exclusividade da esquerda. Toda tentativa da direita de ir às ruas, como no caso do movimento Cansei, demonstrou-se fraca, mesmo a despeito de doses maciças de auxílio da imprensa, que noticiava como fato maior manifestações de cinquenta pessoas no centro das capitais brasileiras. Com a reeleição de Lula e sua popularidade consistente não foram poucos os que acreditaram que a lição tinha sido aprendida, que era hora de enfim escapar do sistema de travas das conciliações da Nova República. Mais uma vez nada mais falso... Lula compensava tudo isso com a crença de que ele agora era a reencarnação de Vargas... O trabalhismo morto com Brizola ressuscitava pelas mãos de uma esquerda, como a do PT, que, em seu nascedouro era não trabalhista e crítica do nacional-desenvolvimentismo." SAFATLE 2017 página73 e 74

E, podemos complementar, uma esquerda que pela boca do próprio Lula, apontava que o populismo condenava o povo brasileiro a uma eterna minoridade. Na verdade, o PT seguiu acreditando que era possível manter a hegemonia popular e negociar com nossas oligarquias de forma pouco transparente, sem que setores do judiciário, da imprensa, das empreiteiras o traísse. O esquema explodiu no governo Dilma, em 2013 com as manifestações, que começaram com a esquerda, mas depois se bandearam para a direita, na reeleição apertada da presidenta em 2014, e com o impedimento em 2016. E, apesar desses sinais todos, e principalmente após a eleição apertada de 2014, a esquerda ou o PT seguia acreditando ser possível não romper com uma elite rentista, ociosa, que vive de seu patrimônio, tomando de assalto o bem público e sem qualquer produção.

O ESGOTAMENTO DO LULISMO:

Os algozes políticos, que comandaram a destituição da presidenta Dilma foram os operadores centrais do consórcio governista Petista, figuras notáveis do Pemedebismo, como Michel Temer e Gedel Vieira, beneficiários privados como Marcelo Odebrecht e outros. A paixão pelo poder a qualquer preço acabou por levar os petistas a sacrificar os grandes valores do partido, como a democracia direta, o socialismo e o combate a forma de operar das oligarquias brasileiras. Havia aí uma tática secular, de expurgar o sócio mais novo do consórcio do poder, atraindo ao mesmo tempo os derrotados nas últimas quatro eleições. A atual narrativa justificando a destituição da presidenta era por sua irresponsabilidade fiscal, e pelo estatismo, típica do neo liberalismo, que se repete na Grécia, na Islândia, na Letônia e na Espanha, como um mantra ideológico. Interessante assinalar, que três das economias que registram maior crescimento nos tempos contemporâneos, a China, a Russia e a India, são economias onde o protagonismo do Estado é claro. A despeito disso tudo ao final do governo Lula, em 2010, o Brasil havia conhecido um forte movimento de ascensão social via consumo, e um fortalecimento de seu mercado interno.

"Segundo o Instituto Data Popular, 42 milhões de pessoas entraram na chamada "nova classe média", na última década. O salário mínimo foi elevado em 50% acima da inflação, o crédito passou de 25% para 45% do PIB, a economia brasileira chegou a ser a sexta maior do mundo, deixando para trás (por um  momento) a Grã-Bretanha. Foram inauguradas catorze novas universidades federais e realizados mais de 7 mil concursos públicos para professores universitários." SAFATLE 2017 página82

A partir desse ponto SAFATLE 2017, aponta, o que ele entende, como o tripé de sustentação do Lulismo, caracterizado por SINGER 2009***, como um reformismo fraco. Em primeiro lugar, entendia-se o Estado como indutor de processos de ascensão social, realizados através do aumento real do salário mínimo, ampliação do crédito consignado e do Bolsa Família. Em segundo lugar, o mesmo Estado se compreendia como estimulador e protetor do empresariado nacional em seus anseios de competitividade global, para tanto os bancos públicos de fomento disponibilizaram crédito para as incursões internacionais. Enfim, de um lado inserção de massas de cidadãos pobres ao universo do consumo, e do outro lado, associação entre Estado e burguesia nacional criando multinacionais competitivas no mercado internacional, a partir de subsídios dos bancos de fomento, sem mexer na estrutura do Congresso Nacional e do Poder Judiciário, claramente oligárquicos. Era o modo de gestão da era Vargas, repetido sessenta anos depois.

Mas, segundo SAFATLE 2017, acabou chegando aquilo que Tocqueville chamou de frustração relativa, isto é grupos que acabam sem a satisfação esperada, não se contentando com a satisfação alcançada. Nesse item, da frustração relativa ficava cada vez mais claro a ausência no Brasil de comodidades de infraestrutura, tais como de saúde, de educação, e de mobilidade, que na verdade penalizavam a existência da nova classe média. Essa afinal havia sido a pauta inicial das manifestações de junho de 2013; transporte, educação e saúde no padrão da Copa do Mundo, e das Olimpíadas. Na verdade, nossas cidades tiveram um significativo declínio da qualidade de vida, tanto no que se refere à segurança, ao transporte, á educação e à saúde. A resistência de atuar sobre o valor da terra urbana, nos grandes centros urbanos, apesar dos instrumentos do Estatuto das Cidades aprovado em 2001 rebatia numa especulação enorme, fazendo com que os imóveis triplicassem de preço entre 2004 e 2013. Tudo isso, na verdade denunciava que o país apesar da melhora geral no nível de consumo interno, permanecia uma das economias mais desiguais do planeta, e que, os governos Petistas não apresentavam propostas de redução da concentração de renda. É impressionante como os governos de esquerda no Brasil e no resto do mundo se amoldaram a um declínio do capital industrial, e a emergência de uma devastadora febre especulativa e rentista, que se rebate na predominância das cadeias de distribuição, frente aos centros produtivos.

"Lembremos que, no Brasil, a maior alíquota de imposto de renda é de 27,5%, porcentagem mais baixa do que a de países de economia liberal como os Estados Unidos e a Inglaterra....Como se não bastasse, a política lulista de financiamento estatal do capitalismo nacional levou ao extremo as tendências monopolistas da economia do país...Exemplo pedagógico disso foi a incrível história do setor de frigoríficos. O Brasil era, em 2017, o maior exportador mundial de carne, graças a constituição do conglomerado JBS/Friboi, com dinheiro do BNDES." SAFATLE 2017 página91 e 92

Na verdade, a história do capitalismo no mundo todo comprova que a verdadeira questão liberal nunca foi como diminuir o Estado, mas sim como coloca-lo a serviço das oligarquias, sejam elas industriais ou financistas. Tal observação fica clara, quando na última crise  de 2008, o governo americano usou o dinheiro do seu contribuinte para salvar bancos privados, como o Citibank e outros, portanto o Estado sempre intervém a favor de grupos com propriedades. Mas as consequências no Brasil, dessas atitudes da esquerda acabaram construindo um grande vazio, que deixou a população numa grande perplexidade, insuflando um discurso conservador que nos atropela a todos. E, nesse ponto emerge a crítica mais contundente de SAFATLE 2017, porque auto dirigida aos intelectuais, que participaram do governo ou não.

"Na verdade tratava-se de fornecer ao Estado um melhor discurso de justificação de seus arcaísmos, além de produzir ajustes em seu funcionamento e, posteriormente, garantir benesses de consultoria e assessorias. Os intelectuais não transformaram o Estado brasileiro, eles se integraram a ele...Por fim, do ponto de vista político, o esforço do setor hegemônico da classe intelectual brasileira pareceu ter se esgotado com a eleição de Lula." SAFATLE 2017 página 99

Houve também medo de instrumentalização pela mídia conservadora, de auto críticas mais contundentes, houve também um argumento que não mais refletia a esperança, mas sim o medo, o de que as coisas poderiam estar piores, com outros atores. O autor então, reafirma que política deveria ser um processo de transformação de sujeitos, quando o Lulismo se associou ou propôs uma integração social via consumo, e achou que podia fazer acordos silenciosos com grupos oligárquicos assumiu que sua transformação era conservadora. Ao não aprofundar, e ao não buscar transparência e participação para questões como; justiça tributária, origens do rombo da Previdência, impostos sobre fortunas, sobre lucros e dividendos, regulação do valor da terra urbana, regulação da especulação, etc... os governos de esquerda apenas apontaram para a gestão, e não para outros modos de existência.

NOTAS:

* SAFATLE 2017 Remete nesse ponto do texto a suas produções; A esquerda que não teme dizer seu nome Três Estrelas São Paulo 2012 e ao manifesto Quando as ruas queimam: manifesto pela emergência N-1 edições São Paulo 2016

**LACLAU, Ernesto - A razão populista - Editora Três Estrelas São Paulo 2013

*** Os sentidos do lulismo, reforma gradual e pacto conservador, já comentado no blog no texto Debate sobre a crise atual brasileira no IAB-RJ esclarece vários pontos no link https://arquiteturacidadeprojeto.blogspot.com.br/

BIBLIOGRAFIA:

SAFATLE, Vladimir - Só mais um esforço - Três Estrelas São Paulo 2017
SINGER, André - Os sentidos do lulismo, reforma gradual e pacto conservador - Editora Companhia das Letras São Paulo 2009

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