terça-feira, 25 de dezembro de 2018

O espaço da Europa em 1848, e o nosso tempo contemporâneo

Mapa da região da atual Alemanha em 1848, ano de publicação do
Manifesto Comunista
Karl Marx nasceu em 1818 na Prussia, e morreu em 1883 em Londres, é portanto um típico homem do século XIX, com alguns traços burgueses e conservadores, característicos do seu tempo notadamente em suas relações familiares e pessoais. Uma das mais belas sínteses sobre essa faceta da vida do filósofo alemão é o livro da sua biógrafa inglesa, Mary Gabriel, Amor e Capital, a saga da família de Karl Marx e a história de uma revolução, que nos revela sua vida afetiva. Um dos aspectos mais destacados por Mary Gabriel é o amor e a dedicação da nobre prussiana Jenny von Westphalen, que foi sua mulher durante toda sua vida. Mas, uma das questões apresentadas logo no começo do livro, que exatamente assinalam essa condição de um homem do século XIX é o mapa da ainda inexistente Alemanha em 1848, mesmo ano da publicação do Manifesto Comunista. A pequena cidade de Treveris aonde Marx nasceu em maio de 1818 ao norte de Berlim, mau está assinalada no mapa. A Prússia que domina a costa do Mar do Norte ainda se estende em sua parte oriental, com o nome de Prússia Polonesa. O Império Austríaco, com sua capital na cidade de Viena ainda domina uma ampla região no sul, mantendo fronteira com o Império Otomano, chegando ao que foi a Hungria. Esse mesmo Império também denominado de Austro Húngaro, alcançava o Mar Adriático, dominando a região da Lombardia-Venecia, que envolve a atual região do Veneto da Itália, e que abriga uma das cidades mais marcadamente italianas do nosso tempo, a charmosa Veneza. A Alemanha atual ainda está partida em uma série de reinos e feudos, como; a Silésia, a Baviera, a Saxônia, a Westphalia, e outros, sendo denominada como Confederação Germânica. No mesmo ano de 1848, a Itália também está partida em uma série de pequenos reinos, iniciando o processo do que se denominou, o risorgimento, que foi sua unificação.

O segundo mapa apresentado por Mary Gabriel é o da Europa também em 1848, com uma nota esclarecedora de que grande parte das fronteiras da Europa haviam sido definidas pelo Congresso de Viena de 1815, que após a queda de Napoleão haviam consolidado fronteiras a oeste da França de monarquias, apesar dos clamores pelas liberdades democráticas. Vários historiadores destacam o papel de Napoleão na disseminação dos ideais da Revolução Francesa, através das Guerras Napoleônicas no continente europeu.  Nessa mesma nota, também assinala-se, que no ano de 1848 ocorerram uma série de rebeliões, que reforçavam as demandas por liberdades democráticas, e que foi a única revolta continental da história europeia, segundo a biógrafa inglesa. Tal fato, explica a veemência da frase inicial do Manifesto Comunista, que se inicia com o anuncio de que; "Um espectro ronda a Europa, o espectro do comunismo."

Mais uma questão também se destaca no mesmo livro, as condições de salubridade da Londres da Rainha Vitória, aonde a família do velho Marx viveu, que não era das melhores e que acabou determinando a morte de dois de seus filhos, devido a epidemias como cólera, típicas das condições sanitárias e das péssimas formas de sustentação. O mapa de Londres ao lado, assinala o ano da morte de Marx 1883, mas em 1851 quando chegou a cidade o filósofo alemão estava com 33 anos e a cidade mantinha as mesmas condições. Marx e sua mulher, Jenny von Westphalen e cinco filhos ocuparam um sótão na Dean Street no terceiro andar sem instalações sanitárias refugiados primeiro da França e depois da Bélgica. Apesar disso, a cidade se destacava no cenário europeu como destino preferencial de irlandeses, alemães, franceses, húngaros, italianos refugiados de seus países por conta das rebeliões contra as monarquias de seus países.

"Eram refugiados políticos após tentativas fracassadas de derrubar a monarquia e lutavam pelas liberdades mais fundamentais. Agora, castigados pela chuva e pelo frio cortante, até a ideia de lutar pelos próprios direitos parecia absurda. O farol que Londres parecia ser se provara uma miragem; a cidade lhes abrira as portas, mas não lhes dera nada. Morriam de fome. Dia e noite uma cacofonia de vozes aflitas se esgoelava para se fazer ouvir em meio ao rumor da capital. Para sobreviver, os recém-chegados vendiam tudo o que podiam – cortes de tecido, botões, cadarços. O mais frequente, contudo, era venderem-se a si mesmos, por hora ou por dia, no trabalho ou na prostituição. " GABRIEL 2013 página21

Apesar dessa grande força de atração das diferentes nacionalidades, as condições sanitárias de Londres e de Manchester eram absolutamente degradantes, envolvendo densidades inimagináveis e condições habitacionais insuportáveis, nunca antes vistas. As cidades na Inglaterra, e logo depois na Europa explodem com um número de população nunca visto, Manchester em 1760 tinha 12mil habitantes, em 1850 atinge 400mil. Engels descreveu as terríveis condições desse crescimento explosivo das cidades industriais inglesas dessa época, reconhecendo a perda de uma certa unidade comunitária, para uma diversidade de grupos culturais e de raças. As condições da infância eram aviltantes, não havendo qualquer proteção contra o trabalho infantil nas fábricas, nas ruas, muitas vezes oferecendo seus próprios corpos para exploração sexual.

"Em Manchester, os ricos se empenharam para não ver os pobres - a cidade era disposta de modo que as classes ricas pudessem viver sem de fato jamais encontrar nenhuma pobreza. Em Londres tais esforços nunca tinham sido feitos. Ricos e pobres parilhavam as mesmas ruas, mas era como se fossem duas espécies diferentes, tão socialmente afastados, que era como se não existissem a não ser como objetos da exploração.. Em Manchester, os bairros operários se espraiavam como ervas daninhas ao longo do rio, mas em Londres os cortiços eram verticais, e os pobres lotavam edifícios de quatro andares do porão ao sótão. Cada centímetro, inclusive as escadas era ocupado. Algumas pessoas alugavam apenas um lugar na cama, nem mesmo uma cama inteira... A industria do sexo que reunia os pobres em Soho Square, St. Giles e no Strand era lendária. Crianças imitando adultos proferiam suas ofertas repulsivas para qualquer passante que pudesse lhes dar um centavo" GABRIEL2013 página127 e 128

Por tudo isso, percebe-se a condição de homens do século XIX tanto de Marx, como de Engels, apesar disso, a construção feita por eles do sistema capitalista, ainda mostra algumas permanências na sua forma de operar. Sem dúvida, o mundo capitalista e sua própria espacialidade mudaram de forma brutal do século XIX para o XXI, as formas de atuação e operação mudaram havendo uma clara aceleração dos processos, no entanto a lógica de procurar na forma monetária a segurança da realização do lucro permanece intocada. E, esse fato acarreta uma série de permanências que não parecem mudar. Uma certa aproximação inevitável, e inexorável com as crises. Aquilo que SCHUMPETER 2017 denominou como destruição criativa do capitalismo, uma forma constante de revolucionar as formas de atuação. Marx no século XIX já apontava essa marca do sistema capitalista de funcionamento, que tendia a procurar a forma monetária, tendendo inexorávelmente a especulação e ao rentismo para de certa forma se livrar da forma mercadoria. Essa capacidade de descrever criticamente o sistema capitalista é talvez o principal legado de Marx e Engels, que identificaram nas crises cíclicas da economia um modo atávico de realizar o lucro para poucos, e sempre concentrar renda. O historiador francês Fernand Braudel, na sua imensa obra fazia uma distinção, que me parece importante entre mudanças superficiais, que ocorrem na superfície do mar fustigado por ventos e ondas, enquanto as grandes profundidades se mostram imutáveis, e funcionando do mesmo jeito. Na sua analogia Braudel, se referia a longa transformação, sofrida entre o feudalismo e o capitalismo, fixando um certo padrão de repetição no capitalismo, no qual a última metamorfose era sempre a fase de predominância financeira, da realização do lucro, ou sua monetarização.

"O ponto de partida de nossa investigação foi a afirmação de Fernand Braudel, de que as características essenciais do capitalismo histórico em sua longue durée - isto é, durante toda suas existência - foram a flexibilidade e o ecletismo do capital, e não as formas concretas assumidas por ele em diferentes lugares e épocas: 'Permitam-me enfatizar aquilo que me parece ser um aspecto essencial da história geral do capitalismo: sua flexibilidade ilimitada, sua capacidade de mudança e de adaptação. Se há, segundo creio, uma certa unidade no capitalismo, da Itália do século XIII até o ocidente dos dias atuais, é aí, acima de tudo, que essa unidade deve ser situada e observada.'" BRAUDEL 1982 pagina 433, citado por ARRIGHI 1996 página4

Os ciclos repetidos do capitalismo são sem dúvida uma constante na sua história desde o século XIII europeu, conforme demonstrado por ARRIGHI 1996, aonde a sucessão de hegemonias dominadoras assinalam o processo apontado por Braudel. Uma fase de intensa produção, aonde a mercadoria parece ser a própria representação da riqueza, seguida por uma fase aonde a moeda passa a ser centralidade da prosperidade. ARRIGHI 1996, também assinala, que no século XIX o capital parecia ter encontrado uma nova casa, algo inusitado até então, que eram as unidades fabris de produção da revolução industrial, que pareciam ter ancorado o capital na produção. Mas logo, a repetição das crises em 1870 e 1929 mostraram que o padrão de busca pelo padrão rentista e especulativo se repetia da mesma forma. Desde os banqueiros genoveses do século XV, que descobriram que era mais seguro emprestar dinheiro aos reis da península ibérica, aos investidores de Wall Street em Nova York em 1929 ou em 20018, vale mais apostar do que produzir. As crises das duas grandes guerras na Europa determinaram para ARRIGHI 1996 a emergência de um novo modo de regulação, notadamente depois do segundo pós guerra, orientados pelo fordismo e pelo keynesianismo. Ainda, segundo o autor italiano, único momento em que o sistema distribuiu renda, mesmo assim apenas nas economias centrais, a partir da super exploração das economias emergentes e periféricas, que mantiveram as condições da acumulação primitiva, também apontada por Marx. No entanto, o modelo de regulação, pelo fordismo e keynesianismo começa a demonstrar esgotamento, com a crise do petróleo dos anos setenta, determinando nova desregulação representada pela ascensão de Thatcher (1979) e Reagan (1981). O mundo dos anos oitenta e noventa reencontra o liberalismo, a partir de sua nova face, o neoliberalismo, que primeiro no mundo anglo-saxão, e depois da Queda do Muro de Berlim, no resto do mundo ditam a celebração da concorrência, e a recusa a qualquer tipo de solidariedade. Diferentemente do liberalismo do final do século XIX e início do XX, o neo-liberalismo elege como fundamental a conquista e domínio do Estado, como aparato regulador da economia, e portanto, criador das regras de sua própria autoajuda.

"Superpondo-se parcialmente a essa biografia, numerosos estudos seguiram os passos da "escola de regulação" francesa, interpretando as atuais mudanças no modo de funcionamento do capitalismo como uma crise estrutural do que eles denominam de "regime de acumulação" fordista-keynesiano. Esse regime é considerado uma fase particular do desenvolvimento capitalista, caracterizada por investimentos em capital fixo que criam uma capacidade potencial para aumentos regulares da produtividade e do consumo em massa. Para que esse potencial se realize, são necessárias uma política e ação governamental adequadas, bem como instituições sociais, normas e hábitos comportamentais apropriados (o"modo de regulação"). O keynesianismo é descrito como o modo de regulação que permitiu que o regime fordista emergente realizasse todo o seu potencial. E este, por sua vez, é concebido como a causa da crise da década de 1970." ARRIGHI 1996 página2

Mais uma vez retornamos a Marx, e constatamos o poder convincente de sua argumentação no distante século XIX, que já naquele tempo entendia os Estados Nacionais como uma construção de ordenação do mercado, e portanto profundamente vinculado aos interesses da burguesia. A falsa dicotomia construída pela mídia conservadora entre estatismo e mercado demonstram como a esquerda foi se limitando em um raciocínio cada vez mais defensivo de posições a manter, do que a conquistar. Em Marx, Engels e até meados do século XX, o pensamento de esquerda mais estruturado afastava-se da defesa incondicional do Estado como representação do interesse público geral, e enfatizava seu caráter classista, e seus interesses inexoravelmente vinculados à burguesia. E mais, Estado e mercado eram estruturas que se constituíram mutuamente, viabilizando-se a partir de regulações que estruturavam a possibilidade de existência de ambos. A força de convencimento do argumento neo-liberal, que repete menos Estado e mais mercado é exatamente pelo recalque da interdependência. O mercado imaginado pelos economistas clássicos liberais era uma verdadeira utopia, inexistente em nenhum lugar ou qualquer época da história humana, pois era um espaço onde os agentes econômicos estavam horizontalmente nivelados, sem a dominação hierárquica dos monopólios, que são outra tendência inevitável do Capital. Afinal, qual a capacidade de resistência de uma cerveja artezanal no cenário econômico do Brasil, diante do monopólio do mercado exercido pela AMBEV? O argumento neo-liberal, repetido ad-infitum, "de que não existe almoço de graça" deveria ser substituído por; porque deram tanto almoço grátis aos monopólios e aos grande grupos econômicos, que acabam sendo defendidos pelos Estados por serem muito grandes para quebrar? Termino por aqui, citando o grande historiador Eric Hobsbawn, que em um de seus últimos livros colocou de forma apropriada nosso problema contemporâneo, que contrapôs o socialismo de Estado, aos fundamentalistas do mercado;

"Paradoxalmente, ambos os lados tem interesse em voltar a um importante pensador cuja a essência é a crítica do capitalismo e dos economistas que não perceberam aonde levaria a globalização capitalista, como ele previa em 1848. Mais uma vez é óbvio que as operações do sistema econômico devem ser analisadas tanto historicamente, como uma fase da história, e não como seu fim, quanto de forma realista, isto é, em termos não de um equilíbrio de mercado ideal, e sim de um mecanismo integrado que gera crises periódicas capazes de transformar o sistema. A crise atual pode ser uma dessas. Mais uma vez, fica patente que, mesmo no intervalo entre grandes crises, "o mercado" não tem nenhuma resposta para o principal problema com que se defronta o século XXI; o fato de que o crescimento econômico ilimitado e cada vez mais tecnológico, em busca de lucros insustentáveis, produz riqueza global, mas às custas de um fator de produção cada vez mais dispensável, o trabalho humano, e, talvez convenha acrescentar, dos recursos naturais do planeta. O liberalismo econômico e o liberalismo político, sozinhos ou combinados, não conseguem oferecer uma solução para os problemas do século XXI. Mais uma vez chegou a hora de levar Marx a sério. " HOBSBAWM 2001 página375


BIBLIOGRAFIA:

ARRIGHI, Giovanni - O longo século XX, dinheiro, poder e as origens do nosso tempo - editora Unesp São Paulo 1996
BRAUDEL, Fernand - The Wheels of Commerce - Harper & Row, Nova York 1982
GABRIEL, Mary - Amor e Capital, a saga da família de Karl Marx e a história de uma revolução - editora Zahar Rio de Janeiro 2013
HOBSBAWM, Eric - Como Mudar o Mundo, Marx e o marxismo de 1840-2011 - Editora Companhia das Letras São Paulo 2011
SCHUMPETER, Joseph A - Capitalismo, socialismo e democracia - Editora UNESP São Paulo 2017