domingo, 22 de janeiro de 2023

O Brasil contemporâneo e a questão do fascismo


O livro de Alysson Leandro Mascaró, Crítica do Fascismo da editora Boitempo São Paulo 2022 é leitura obrigatória para tentar começar a compreender, o apelo da sociabilidade autoritária, fascista e nazista na história do Brasil. Vinculado ao campo do Direito, professor da tradicional Faculdade de Direito da USP  do Largo de São Francisco, na cidade de São Paulo, Mascaró crítica claramente a idealização da justiça, que se generaliza no Brasil. Ao contrário das justificativas morais e éticas, que tendem a enxergar o direito como um instrumental neutro e imparcial, e que acabam levando a idolatria de figuras do nosso judiciário, como foram os casos passados com Joaquim Barbosa ou Sérgio Moro, e agora o mais recente com Alexandre de Moraes. MASCARÓ 2022 defende a ideia de uma sociabilidade capitalista condicionada pela competitividade e a mentalidade empreendedora, que não se coaduna mais com a democracia, com a heterogeneidade social, seja nos tempos históricos do fascismo tradicional italiano, ou do nazismo alemão, ou ainda no contemporâneo do bolsonarismo brasileiro. Embasado numa potente revisão bibliográfica, que envolve autores de diferentes matizes, tais como; Karl Marx (1818-1883), Friedrich Engels (1820-1895), Karl Kautsky (1854-1938), Clara Zétkin (1857-1933),  Vladimir Ulianov Lenin (1870-1924), Leon Trotsky (1879-1940), Josef Stálin (1878-1953), Ernst Bloch (1885-1977),  Nilolai Bukharin (1888-1938),  Evguiémi B. Pachukanis (1891-1937), Antônio Gramsci (1891-1937), Frederich Pollock (1894-1970), Max Hockheimer (1895-1973), Alfred Sohn-Rethel (1899-1990), Michal Kalecki (1899-1970), Franz Neumann (1900-1954), Theodor W. Adorno (1903-1969),  Charles Bettelheim (1913-2006), e Nikos Poulantzas (1936-1979). 

Há uma clara predominância do marxismo nesta bibliografia, no entanto MASCARÓ não se exime de uma avaliação rigorosa dos diferentes posicionamentos, transitando entre o direito, a filosofia e a sociologia. O autor avalia a emergência de práticas autoritárias no tempo histórico, do fascismo e do nazismo, nos anos sessenta na Grécia e na América Latina, e de certa forma não se aprofunda em nossa contemporaneidade, quando fenômenos como o trumpismo e o bolsonarismo celebram o autoritarismo de Estado. Nesta sua interpretação há um afastamento da leitura moralista, ou "juspositiva" àquela que separa a sociedade de forma maniqueísta em cidadãos de bem e cidadãos desqualificados. Para MASCARÓ 2022, é necessário buscar a "raiz material do problema", que segundo ele é a força predominante da sociedade capitalista, a forma mercadoria que se desdobra em valor, que engendra a acumulação e a concentração de renda e que tende a não conviver bem com as liberdades democráticas e os direitos humanos. 

"A forma do Estado e a forma do direito são derivadas da forma mercadoria, então, não pode a forma jurídica ser contrária àquela que é sua forma raiz: a forma do capital. O direito é forma do capital; não pode ele ser contra o interesse da acumulação e do capital. O direito chancela, constitui, organiza o próprio capital, e o fascismo é uma manifestação capitalista, essencialmente capitalista, fundamentalmente capitalista." MASCARÓ 2022 página111

Alguns dos autores acima possuem reflexões notáveis a respeito do autoritarismo, como por exemplo Max Horkheimer, um dos fundadores da Escola de Frankfurt e testemunha da emergência do nazismo na Alemanha, que afirmou de forma algo emblemática; "quem não conseguir falar do capitalismo não deve falar do fascismo." MASCARÓ 2022 pág.111, apud HORKHEIMER Há aqui uma visceral ligação entre capitalismo e nazismo, que nos remete a questão, de que quando o capital quer explorar chegando ao fascismo, ou quando ele quer explorar sem fascismo, o direito sempre lhe dará apoio. Por outro lado, outro pensador contemporâneo da tragédia fascista é Antônio Gramsci, prisioneiro do Cárcere da ditadura de Mussolini, que Mascaró explora pouco, mas que a partir da identificação de uma certa fraqueza da burguesia italiana justifica a adoção e celebração do autoritarismo fascista, como forma de construção do Estado na Itália. Tal formulação representa um ramo importante das interpretações sobre o inerente autoritarismo das sociedades que chegam tardiamente a organização capitalista, como Alemanha e Itália. E, que será tão importante em nossa sociologia de Florestan Fernandes (1920-1995), Leandro Konder (1936-2014), Carlos Nelson Coutinho (1943-2012) e Luiz Werneck Vianna (1938-), que formularam a ideia de revolução burguesa passiva ou sem povo, no Brasil. 

Mas voltando a revisão bibliográfica de Mascaró, percebe-se um especial destaque para o filósofo alemão Ernst Bloch, "o pensador marxista mais brilhante a compreender as categorias que estavam por detrás do surgimento do nazismo" MASCARÓ 2022, pág.112. Há aqui um especial enquadramento na questão dos desejos, das mobilizações das massas e a perda da aglutinação dos pobres alemães pelo pensamento progressista, para o nazismo, devido a um certo temor dos vanguardismos da República de Weimar. No livro, Erbschaft dieser Zeit de Bloch, que pode ser traduzido como Herança deste Tempo, e que ainda não possui tradução para o português, o autor menciona a presença de uma temporalidade em camadas. Isto é, a convivência de temporalidades e comportamentos éticos e morais distintos, onde a libertação de costumes e práticas confronta uma parcela silenciosa da sociedade, que não aceita e sente medo da velocidade das mudanças.

"Suas cidades perdidas lá no interior da Alemanha têm relações feudais, seus pais viviam relações servis, faz muito pouco tempo que deixaram de ter condicionamento social servil, e basicamente sua mentalidade persiste como servil; são religiosos, de um religiosismo primitivo, separando o mundo entre bem e mal. Tal visão de muitas pessoas da Alemanha não é a mesma, no entanto de quem estava em Berlim, que na década anterior ao surgimento do nazismo, a década de 1920 viveu um florescimento cultural, inclusive com uma liberação extraordinária dos costumes até mesmo eróticos, sexuais, Então, o mesmo país de progressismos tinha massas em outra temporalidade, praticamente feudal. Aponta Bloch que, muitas vezes, as lutas sociais não compreendiam que setores inteiros da sociedade estavam alijados da dinâmica histórica do capitalismo mais avançado, mas o nazismo compreendeu isso, falando ao coração dos setores mais atrasados da sociedade." MASCARÓ, 2022 pág.113

A interpretação nos remete também a ideia presente em Gramsci, dos desenvolvimentos desiguais e combinados, de arcaísmos e modernidades,  entre o sul rural e agrário e o norte urbanizado e industrializado da Itália, que na verdade se constituem como peculiaridades interessadas do sistema capitalista. E, que na verdade se configura como uma característica marcante do desenvolvimento capitalista desde seu surgimento, esta combinação interessada de desigualdades, que sempre impulsionou a apropriação de mais-valia de forma intensa. Mas no livro, o autor enfatiza a interpretação gramsciana do fascismo, a partir da crise de hegemonia, isto é, uma crise de autoridade onde a classe dominante perde o consenso, não sendo mais dirigente pelo consenso, mas mantendo sobre seu domínio as forças coercitivas do Estado. Gramsci menciona, que o velho já havia morrido, e o novo ainda estava impedido de nascer na "crise da hegemonia", levando a soluções de força e a busca por líderes carismáticos ou salvadores impulsionados principalmente pela pequena burguesia. A crise de autoridade ou de hegemonia gramsciana emergia e identificava o fracasso político de um projeto da burguesia, no caso da Itália, a promoção da unificação do Estado, que não incluiu as populações desassistidas do sul do país. Esta condição determinava uma fraca aderência das classes altas ao povo, que apresentam uma tendência a adesão a movimentos políticos carismáticos, que misturam insurgências com pautas de costumes conservadoras.

"Gramsci percebe as peculiaridades culturais e valorativas italianas e as contradições desse velho que morria sem que permitisse novidades de desenvolvimento capitalista ou de socialismo [...] Além disso, a ausência de um história nacional  nos séculos recentes fazia com que a intelectualidade italiana se pensasse como universalista - num sentido no qual se via também a Igreja católica - sem condições de promover, então, uma revolução burguesa nacional." MASCARÓ 2022 pág.27

Um fenômeno com claras analogias com a História do Brasil, onde a ausência de uma história nacional, de certa forma nos condiciona à manifestações auto depreciativas (1), que gestarão soluções de tom autoritário engendradas pelas Forças Armadas de forma recorrente. Mas retornemos, a revisão bibliográfica de MASCARÓ 2022, que então aborda o cientista social e economista alemão também da Escola de Frankfurt, Frederich Pollock (1894-1970), e que vincula o problema do fascismo e nazismo ao capitalismo de Estado e ao capitalismo monopolista. A construção do Estado totalitário, que envolvia a associação explícita entre capital, burguesia e Estado na Alemanha nazista, que para MASCARÓ 2022 acaba desembocando na defesa do direito e das instituições, naquilo que ele chama da "esquerda liberal". Sua crítica, a esta visão da Escola de Frankfurt, presente no livro State Capitalism; Its possibilities and limitations, se baseia na pretensão de autonomia do direito frente a subjetividade jurídica capitalista, que envolve para MASCARÓ 2022 a formalização da competição e da super exploração dos despossuídos. Mas o autor, também aponta a diversidade da Escola de Frankfurt, citando dois pensadores como; Franz Neumann, com o livro; Behemoth; The struture and practice of national socialism e Alfred Sohn-Rethel, com o livro; Economy and class struture of German Fascism que divergiram das posições de Pollock, identificando o nazismo e o fascismo como aglutinadores de fraquezas, como uma coesão de fragilidades. Em contraposição a Pollock, que identificava no nazismo um amálgama de forças fortes, a partir da aliança entre burguesia, capital e Estado, Neumann e Sohn-Rethel apontam cisões e contradições entre capital, burguesia e Estado, exatamente na ênfase da busca frágil de um inimigo externo, quase efêmero tais como; judeus, comunistas, homossexuais, outros países e nações.

"Tanto a tese de Neumann quanto a de Sohn Rethel apontam que o fascismo advém de fraquezas. E as senhoras e senhores transplantem essa leitura de Neumann e de Sohn Rethel para o tempo presente. Tudo aquilo que nós lemos como mobilização da extrema direita no mundo, não só no Brasil em geral não advém de setores econômicos extremamente olímpicos, no sentido da alta lucratividade, de Estados fortíssimos ou então de classes ou grupos sociais com alta dominância, advém da crise do capital, do lúmpen da classe burguesa, do lúmpen do próprio Estado, do lúmpen intelectual [...] Ou seja, Sohn-Rethel faz exatamente o oposto da leitura que diz que o fascismo e o nazismo advém do totalitarismo; muito pelo contrário, advém de uma sociedade capitalista altamente esgarçada, altamente rompida, em crise." MASCARÓ 2022 pág.116

Na sequência de autores abordados por MASCARÓ 2022, destaco aqui a figura do economista polonês marxista Michal Kalecki, que por suas origens possui profundos vínculos com a dominação nazista, uma vez que seu país foi logo ocupado pela Alemanha, e abrigou grandes estruturas do holocausto. Kalecki desenvolve uma tese inusitada, apontando e conectando a emergência do nazismo e fascismo para a destruição da estrutura de reprodução da vida nas sociedades capitalistas, a partir de uma percepção relativa do posicionamento das classes sociais. Para ele, o pleno emprego gera o reacionarismo fascistas na burguesia e na classe média, que percebem a distância relativa dos pobres se reduzir, a partir da acessibilidade a determinados bens e serviços que se generalizam. Kalecki identificava nas gestões social-democratas, de centro esquerda do período entre guerras, uma ampliação do Estado de Bem Estar Social, que amplia o acesso a bens e serviços pelos pobres, e que passa a representar uma ameaça para a burguesia e a classe média em seu posicionamento social relativo. Uma certa sensação de frustração, principalmente da classe média, que se vê obrigada a compartilhar serviços e bens com os pobres. Depois de Kalecki, Mascaró aborda o também economista Charles Bettelheim, que segundo ele; é "o maior economista marxista da segunda metade do século XX." MASCARÓ 2022, pág.118 Para Bettelheim, o nazismo e o fascismo eram consequências do sub consumo das massas, ou de uma falta de conexão entre produção e consumo, fazendo com que a produção tenha de ser direcionada para a guerra. Para Bettelheim, o sub consumo era próprio, era uma característica central da exploração capitalista, levando-o a mesma afirmação de Hockheimer; "o capitalismo é estruturalmente fascista" MASCARÓ 2022, pág118 As leituras de Kalecki e Bettelheim se aproximam, na medida em que identificam no sistema capitalista, de uma forma geral, uma incapacidade para distribuir renda, e desvendam um conflito latente entre classes no sistema.

"Kalecki explica: com o pleno emprego, o salário aumenta. Com as condições da massa salarial subindo, na sociedade, procura-se mais gente para ser explorada, só que já se está em pleno emprego; por isso é que, então, o salário aumentará. O Brasil viveu o pleno emprego no início do governo Dilma Roussef, até 2013, 2014. Para cá acorriam bolivianas e bolivianos, haitianas e haitianos; vinham para trabalhar no Brasil porque já brasileiros e brasileiras não queriam laborar em certos serviços que essas pessoas consideravam inferiorizados ou mal pagos, como o emprego doméstico [...] Pois bem diz Kalecki, o pleno emprego gera o reacionarismo, como o fascismo, porque as classes médias e as elites, quando veem que a distância relativa dos pobres e dos trabalhadores em relação a elas está diminuindo, reagem destruindo as condições desse progresso. Nem é necessário, para tal processo, que o pobre se torne efetivamente de classe média; basta diminuir um pouco a distância relativa entre pobres e classes médias." MASCARÓ 2022 pág.117

Por fim, destaco aqui que MASCARÓ 2022 traz a luz reflexão dos anos 1970 de Nicos Poulantzas, um sociólogo e jurista grego, exilado na França por conta da Ditadura Militar no seu país, que escreveu importantes reflexões sobre o fascismo e ditaduras. Nessa apresentação, MASCARÓ 2022 destaca a diferenciação entre fascismo, nazismo e Ditaduras Militares do terceiro mundo, como no Brasil, na Argentina, no Chile e na sua Grécia. Mas, Poulantzas faz também uma importante aproximação entre fascismo e imperialismo, afirmando as conexões entre política de expansão colonial, dinâmicas econômicas e produtivas e disputas bélicas de dominação. Poulantzas destaca a chegada tardia de Alemanha e Itália na partilha do mundo colonial, principalmente em relação a Inglaterra e França, mas também Espanha e Portugal, e como, essa condição retardatária determina um certo belicismo. Enfim, o livro de Alysson Leandro Mascaró, Crítica do Fascismo é uma das mais importantes reflexões para entender a captura da sociedade brasileira por movimentos reacionários, conservadores e autoritários no início do seculo XXI.

NOTAS:

(1) O dramaturgo Nelson Rodrigues mencionou de forma recorrente, "o recorrente complexo de vira lata do brasileiro", como um narcisismo as avessas.

BIBLIOGRAFIA:

BETTELHEIM, Charles - La economia alemana bajo el nazismo, vol.2 - Editorial Fundamentos, Madrid 1973

BLOCH, Ernst - Erbschaft dieser Zeit - Suhrkamp, Frankfurt 1985

GRAMSCI, Antônio - Os cadernos do cárcere, Volume 5 Risorgimento e Notas sobre a História da Itália - Editora Civilização Brasileira Rio de Janeiro 2002

HORKHEIMER, Max - Die Juden und Europa - in Zetschrift für Sozialforschung / Studies in social Science ano 8 1939-1940, Deutscher Taschenbuch, Munique 1980

KALECKI, Michal - Os aspectos políticos do pleno emprego - Editora Hucitech São Paulo 1990

MASCARÓ, Alysson Leandro - A crítica do fascismo - Editôra Boitempo São Paulo 2022

NEUMANN, Franz - Behemoth: pensamiento y acción en el nacional-socialismo - Fundo de Cultura Econômica, México 1983

POLLOCK, Friedrich - State, Capitalism: Its Possible and Limitations - The essential Frankfurt School Reader, Nova York 1982

POULANTZAS, Nicos - Fascismo e ditadura - Enunciado Publicações, Florianópolis 2021

SOHN-RETHEL, Alfred - A economia dual da transição - Zahar Rio de Janeiro, 1982

SOHN-RETHEL, Alfred - The economy and Class Struture of German Facism - Free Association Books, Londres 1987