domingo, 10 de junho de 2018

Subalternidade, planejamento, segurança e a Favela da Rocinha

A Favela da Rocinha entre São Conrado e a Gávea
Grande parte dos problemas brasileiros são fruto de uma incapacidade nacional de pensar com sua própria cabeça de forma autônoma nossa realidade, há uma certa subalternidade recorrente entre nossos pensadores mais brilhantes. A presença daquilo que nosso genial dramaturgo Nelson Rodrigues denominava, "complexo de vira lata do brasileiro" é um fato, que nos impede muitas vezes de perceber como nossa história se conecta e se vincula com movimentos mundiais. Afinal a expressão, "Somos ainda hoje uns desterrados em nossa própria terra" inaugura no ano de 1936 a primeira edição do livro Raízes do Brasil de Sérgio Buarque de Holanda. Nossas elites sempre se encantaram com a Europa e a "América" como representações civilizatórias avançadas, contrapostas a uma realidade feia, caótica e surpreendente, que lhes fugia da compreensão. Aqui a regra foi sempre a convivência solidária entre arcaico e moderno, determinando a parcialidade de nossas transformações, que se restringem a revoluções passivas recorrentes, mantendo nos numa eterna condição periférica.

O mundo grande e terrível, que sempre maravilha nossas elites cresce em sua cabeça como algo inalcançável, da realidade agrária e atrasada dos campos as nossas imensas metrópoles modernas e arcaicas nada parece digno de menção, ou reconhecimento de originalidade e potência. Mesmo Sérgio Buarque de Holanda apresentava em suas entre linhas o "complexo de vira latas" na sua celebração do iberismo hispânico, na sua apressada comparação entre as regulares cidades da América espanhola, e o pseudo acaso das cidades coloniais portuguesas. A metáfora do ladrilheiro, que correspondia as cidades da colonização espanhola, onde a regularidade é celebrada, frente ao semeador, que lança suas sementes ao acaso, que denunciava o aleatório português. Na verdade, o rigor dos engenheiros militares portugueses era fruto de um projeto muito mais sofisticado de cidade, que a pensava a partir de seu sítio, e não a partir dos cânones homogeneadores da Lei das Índias, consolidadas com Felipe II. Cada cidade deveria ter uma implantação específica, capaz de reunir projeto e sítio numa interação mais articulada e pensada, ao invés de um projeto genérico e repetido, com a malha xadrez reguladora, uma solução para cada sítio. Apesar dessa maior sofisticação de projeto, nas cidades de colonização portuguesa, ainda permanece uma certa subalternidade com relação às nossas vizinhas cidades de gênese espanhola, mantendo-se o argumento a partir da necessidade de se contrapor ideologicamente às cidades pré-colombianas (astecas, maias e incas) com um modelo único.

É emblemático dessa atitude, o comportamento de alguns liberais nacionais, que sempre renegam a história, a composição social e os procedimentos cotidianos do povo como inadequados a modernização capitalista. Nesse sentido, o artigo do publicista, ou antecipador de marqueteiro, Roberto Campos é exemplar da eterna necessidade no pensamento conservador de predominância da ordem frente ao localismo, e até ao liberalismo:

"Busco sem êxito razões para ser otimista, mas recorrentemente recaio em depressão ao ser lembrado das tres raízes de nossa cultura;  a cultura ibérica, que é a cultura do privilégio;a cultura africana, que é a cultura da magia; e a cultura indígena, que é a cultura da indolência. Com esses ingredientes, o desenvolvimento é uma parada."* CAMPOS 1991

Mas tal atitude não se restringe aos ideólogos publicistas, como Roberto Campos, mas também atingiu o campo da ciência articulada a pesquisa, que por meio de citações eruditas mantinham nosso complexo de vira-latas. Para esses outros não tínhamos a feudalidade, nem portanto a comunidade burguesa em luta contra senhores de terra, fazendo de nossas cidades fortalezas autocráticas desconfiadas do campo que imperava, e onde dominava o coronelismo e o caudilho. A temática é sempre a mesma a necessidade de apagar nossa história, e reeducar nosso povo a partir de modelos europeus ou americanos, que refaçam nossa filiação ao ocidente. O obscurantismo, o autoritarismo e o burocratismo sempre atropelam os processos decisórios por cima, a partir de uma necessidade de urgência social.

A questão da segurança, que tanto angustia a sociedade brasileira não está a margem desse posicionamento da subalternidade e de uma certa incapacidade de pensar nossos problemas a partir da originalidade e da criatividade de sua própria gente. Por exemplo, a política de segurança pública de qualquer cidade no Brasil não pode ficar alheia a necessidade de se articular com o investimento na autoestima de comunidades sujeitas a exceção das atividades paralelas do tráfico de drogas ou outras. Essa foi, e permanece sendo a proposta implantada na cidade de Medellin na Colômbia, que teve um enfrentamento com a violência muito maior do que o vivido nas cidades brasileiras, lá, assim como aqui era claro a necessidade de investimento em auto-estima das comunidades. Apesar de problemas, havia uma virtude na política de segurança das Unidades de Polícia Pacificadoras (UPPs) no Estado do Rio de Janeiro, exatamente por essa considerar o território como um dado concreto. Afinal, a percepção de segurança nos mais diversos extratos não é a mesma quando estamos num bairro como o Leblon, ou na Favela do Morro Dona Marta. A dimensão territorial, espacial e demográfica são fundamentais também para as políticas de educação, saúde,  lazer, e outras, pois as oportunidades não estão distribuídas de forma equânime na cidade. Afinal, os níveis de urbanidade existentes são compreendidos de forma totalmente diferente entre bairros como Ipanema no Rio de Janeiro e Alcântara em São Gonçalo.

Paradoxalmente, essa mesma questão espacial também determinou o enfraquecimento da política das UPPs, pois, ao reproduzir mecanicamente a mesma solução do Morro Dona Marta, em outras favelas como na Rocinha e no Alemão revelou, que essa gestão não atentou para as diferenças de escala, demografia e tipologia entre esses assentamentos. Por outro lado, a questão da segurança é muito mais ampla do que a mera presença policial, envolvendo o controle social, que só pode ser alcançado na medida em que a urbanidade se faz presente, com serviços como coleta de lixo, distribuição de água, coleta de esgotos, iluminação, acessibilidade, mobilidade, etc... Nesse sentido, no caso específico da favela da Rocinha houve uma clara perda de oportunidade, na história recente da cidade, com o concurso de projetos para urbanização da área, promovidao pelo IAB-RJ, e vencido pelo escritório do arquiteto Luiz Carlos Toledo, em 2006. Esse concurso mobilizou dois seminários com a população da favela, organizados pelo escritório antes da proclamação do resultado, que apontava pontos positivos e negativos do morar nessa localidade. Sem dúvida, um esforço notável, uma vez que mobilizava a população da comunidade para se expressar, antes da garantia da remuneração do contrato. Após a decretação do vencedor, o escritório Luiz Carlos Toledo arquitetos associados construiu um projeto com intensa participação da população, promovendo claramente uma ampliação da sua autoestima, e apontando para uma pacificação ampla com o entorno e com a cidade. 

No entanto, ao contrário do que se esperava, e desse esforço notável, o projeto não foi integralmente implantado. Em 2013, o governo do Estado do RJ anuncia a substituição dos planos inclinados do projeto, a partir da solução pensada e negociada, por teleféricos, visualmente mais impactantes. A troca significa um expressivo aumento no orçamento da transformação, mudando o orçamento de R$70 milhões dos planos inclinados, para R$700 milhões nos teleféricos. A população da Rocinha se mobiliza numa enorme manifestação, que fecha a Avenida Niemyer e acampa em frente ao apartamento do governador no Leblon, reinvindicando saneamento básico, e o retorno ás concepções do projeto original. Mais uma vez se detecta por parte de nossas elites a incapacidade de perceber as aspirações da população favelada da cidade, e deixar que a construção de seu vir-a-ser possa ser socialmente compartilhado. Ao final, a pergunta, que hoje perpassa a cidade do Rio de Janeiro, e particularmente o bairro de São Conrado e da própria Rocinha, submetido a guerra de facções é; “Como estaríamos hoje, na área da segurança, se tivéssemos perseverado no projeto e no planejamento estruturado pelo escritório de Luiz Carlos Toledo, arquitetos associados?


NOTAS:

* A citação está em VIANNA 1997, artigo do jornal O Globo de 14 de julho de 1991 de Roberto Campos, sintomaticamente escrito no dia 14 de julho

BIBLIOGRAFIA;

ROIO, Marcos Del (org.) - Gramsci periferia e subalternidade - Editora da Universidade de São Paulo, São Paulo 2017

VIANNA, Luiz Werneck - A revolução passiva, iberismo e americanismo no Brasil - Editora Revan Rio de Janeiro 1997