terça-feira, 30 de setembro de 2025

A questão da moradia nas cidades brasileiras e contemporâneas: o Rio de Janeiro e a incapacidade de se pautar a transparência de seus esforços construtivos.

O texto a seguir foi publicado no âmbito do Encontro Marx e o Marxismo: O capitalismo do fim do mundo, A era da policrise. Organizado pelo Núcleo Interdisciplinar de Estudos para Marx (NIEP Marx) da Universidade Federal Fluminense


 Pedro da Luz Moreira Professor Associado EAU-UFF e PPGAU-UFF, email: pedroluz@id.uff.br ou daluzmoreira.pedro@gmail.com

Resumo: 

A questão da moradia é central em nossas cidades contemporâneas, pois o percentual do uso habitacional corresponde a 80% da demanda por construção numa aglomeração urbana em qualquer parte do mundo. Tal condição, representa que uma política urbana estruturada pode ser determinada por uma política habitacional, que se paute pela garantia do Direito de Morar. Na cidade capitalista, o Direito de Morar entra em conflito com o Direito de Propriedade, pois a presença de infraestruturas urbanas garante melhor qualidade de vida, diferenciando o valor da terra urbana, em função de sua localização. A lógica da exclusão se impõe quando o valor de troca do domicílio prevalece sobre valor de uso. E mais, a política urbana ou espacial pode ser um poderoso impulso para a concentração de renda, bloqueando a equidade na sociedade, pois invariavelmente o investimento em infraestrutura urbana é investimento do Estado, enquanto a apropriação do lucro imobiliário é aferido pelo proprietário da terra urbana. A pauta da definição da relevância das obras públicas deve ganhar transparência na sociedade brasileira, garantindo que o interesse público e comum seja resguardado.

Palavras Chaves: A questão da moradia, a cidade, o Interesse Público, Direito de Propriedade e Direito de Morar. 

Abstract: 

The issue of housing is central to our contemporary cities, since the percentage of housing use corresponds to 80% of the demand for construction in an urban agglomeration anywhere in the world. This condition means that a structured urban policy can be determined by a housing policy that is guided by the guarantee of the Right to Live. In the capitalist city, the Right to Live conflicts with the Right to Property, since the presence of urban infrastructure guarantees a better quality of life, differentiating the value of urban land according to its location. The logic of exclusion prevails when the exchange value of the home prevails over its use value. Furthermore, urban or spatial policy can be a powerful impetus for the concentration of income, blocking equity in society, since investment in urban infrastructure is invariably an investment by the State, while the appropriation of real estate profits is measured by the owner of the urban land. The agenda for defining the relevance of public works must become transparent in Brazilian society, ensuring that the public and common interest is protected. 

Keywords: The housing issue, the city, the Public Interest, Property Rights and the Right to Live.

Resumo: 

La cuestión de la vivienda es central en nuestras ciudades contemporáneas, ya que el porcentaje de uso de vivienda corresponde al 80% de la demanda de construcción en una aglomeración urbana en cualquier parte del mundo. Esta condición significa que una política urbana estructurada puede estar determinada por una política de vivienda que se oriente por la garantía del Derecho a la Vivienda. En la ciudad capitalista, el Derecho a la Vivienda entra en conflicto con el Derecho a la Propiedad, pues la presencia de infraestructura urbana garantiza una mejor calidad de vida, diferenciando el valor del suelo urbano, dependiendo de su ubicación. La lógica de la exclusión prevalece cuando el valor de cambio de la vivienda prevalece sobre su valor de uso. Además, la política urbana o espacial puede ser un poderoso motor de concentración del ingreso, bloqueando la equidad en la sociedad, ya que la inversión en infraestructura urbana es invariablemente una inversión estatal, mientras que la apropiación de las ganancias inmobiliarias se mide por el propietario del suelo urbano. La agenda de definición de la relevancia de las obras públicas debe ganar transparencia en la sociedad brasileña, garantizando la protección del interés público y común. 

Palavras Chaves: La cuestión de la vivienda, la ciudad, el interés público, el derecho de propiedad y el derecho a vivir. 

Introdução: 

O texto a seguir busca caracterizar como a cidade brasileira vem se produzindo e reproduzindo a revelia dos interesses gerais, beneficiando grupos específicos como construtoras, empreendedores, proprietários, incorporadores, especuladores e empresários da área de transportes públicos. A fragilidade do debate urbano e espacial no Brasil gera uma grande intransparência, fazendo com que, a cidade bem comum da humanidade, seja privatizada e usada como mercadoria que beneficia poucos e prejudica muitos. A explicitação das estratégias dos possuidores precisa ser desvendada, mostrando de forma clara a imensa capacidade do espaço urbano de construção de inequidades. O texto se desenvolve, numa primeira seção, que debate as implicações do neoliberalismo para a questão da moradia, onde se impôs uma agenda de declínio do controle público, e a emergência do espírito empresarial. Logo depois, aborda a Questão da Moradia, título de um texto de Engels de 1873-74, que se referia as condições de habitação insalubre dos trabalhadores nas cidades da Inglaterra do século XIX. Num paradoxo, esse texto ainda possui sintonia com nossas condições atuais da cidade, quando a ideologia neoliberal hegemônica, conquista o metabolismo social, e determina práticas e ações, que reduzem o Direito à Cidade. Partindo desse ponto para mostrar, que na história da cidade ao longo do século XX, e na primeira quadra do século XXI, as condições de acesso a uma efetiva urbanidade se restringiram fortemente. Em seguida, o texto se debruça sobre a situação atual da cidade brasileira, particularmente a cidade metropolitana do Rio de Janeiro, mostrando como grande dos seus esforços construtivos beneficiam grupos de interesses específicos, com claro prejuízo para o conjunto de sua população. Por fim, nas considerações finais o texto aborda a centralidade da radicalização da democracia no Brasil, não apenas representativa, mas também de forma direta, a partir da gestão do espaço físico de suas cidades e da questão da moradia. Desenvolvimento: O neoliberalismo e o espaço: 

“Nesse sentido, o neoliberalismo não é apenas uma ideologia, um tipo de política econômica. É um sistema normativo que ampliou sua influência ao mundo inteiro, estendendo a lógica do capital a todas as relações sociais e a todas as esferas da vida.” DARDOT e LAVALL, 2016, p.7 

O neoliberalismo criou e impôs um hábito cotidiano disseminado e introjetado em nossa cidadania contemporânea, onde impera; o individualismo, a competição entre indivíduos, e a monetização de direitos, como a habitação, a saúde, a educação, e o lazer. Com ele, naturalizou-se a ideia, de que o acesso ao morar em determinadas partes da cidade depende do poder aquisitivo da população, determinando a homogeneização de extratos sociais nessas vizinhanças. Além disso, naturalizou que serviços essenciais, como distribuição de água, coleta de esgotos e transportes públicos foram concedidos a iniciativa privada, determinando a lógica do lucro em serviços essenciais. No Brasil, a habitação, a saúde, a educação, a cultura que constam em nossa Constituição Federal de 1988 como direitos da população em geral passaram com o advento neoliberal a ser mais caracterizados como mercadorias. Nessa condição, notadamente a moradia passou a compor seus preços, pelas comodidades de infraestrutura urbana presentes ou ausentes nas suas áreas da cidade. Em outros tempos, anteriores ao advento do neoliberalismo havia a aceitação de que era necessário que o Estado fizesse a gestão da cidade e do espaço, garantindo o acesso a habitação às camadas mais precarizadas. Essa aceitação nunca foi plena no Brasil, devido as nossas tradições culturais patrimonialistas, que sempre absolutizaram a propriedade do imóvel identificando a locação como um fator de insegurança econômica(1). Atualmente, o programa do Governo Federal para a promoção da Habitação de Interesse Social (HIS) nas cidades brasileiras possui o nome algo dramático; “Minha Casa, Minha Vida” (MC,MV), denotando a ideologia de fazer do trabalhador, um proprietário.

Por outro lado, o mercado imobiliário no Brasil, nas grandes cidades tende a operar a partir grandes grupos monopolistas empresariais, produzindo moradia, tanto para os extratos de maior poder aquisitivo, como também para os mais precarizados. A renda imobiliária, decorrente da densificação do uso do solo urbano que até a década de 60 era operada de forma mais pulverizada, por pequenos capitais nas grandes cidades brasileiras, passa a ser controlada e capturada por grupos monopolistas. Vários autores, HILFERDING 1986, ARRIGHI, 1994, POLANYI 2000, LENIN, 2013, MARX, 2013, SCHUMPETER, 2017 indicam a pulsão monopolista do sistema capitalista, como forma de defesa da queda tendencial da taxa de lucros, muitas vezes associadas ou capitaneadas por bancos. Particularmente, ARRIGHI, 1994 menciona a nossa contemporaneidade como uma era de hegemonia do capitalismo financeiro, onde se identifica uma perda de predomínio da produção para um maior protagonismo das finanças e das especulações  Na verdade, as duas formas de capital estão profundamente interligadas, tendo como proprietários as mesmas elites endinheiradas que circulam entre a produção e a especulação com seus recursos acumulados. Desenvolve-se com a financeirização uma predominância das atitudes especulativas, que passam a considerar a moradia como um investimento financeiro, o valor de troca se sobrepõe ao valor de uso, que tende a se enfraquecer. 

“Desenvolve-se, por assim dizer, a união pessoal dos bancos com as maiores empresas industriais e comerciais, a fusão de uns com as outras mediante a posse das ações, mediante a participação dos diretores dos bancos nos conselhos de supervisão (ou de administração) das empresas industriais e comerciais, e vice-versa.”(LENIN, 2013, p. 46) 

Por último, mas não menos importante há uma tendência nas economias de desenvolvimento capitalista tardio, como o Brasil, de ser capturada por ordenações monopolistas, seja pela maior presença do Estado, como também pela competição prematura com conglomerados internacionais também monopolistas. É a promoção do desenvolvimento desigual e combinado, que foi apontado por GRAMSCI, 2002, e que também, foi por analogia de uma série de pensadores (2) no Brasil apontado como o modelo de modernização, que combinava o arcaísmo e a modernidade. O desenvolvimento capitalista tardio determina o enfraquecimento da sua fase concorrencial, fazendo com que essas nações adentrem o cenário com uma maior proteção do Estado e com grupos monopolistas. Há no mercado imobiliário formal, principalmente nas grandes cidades, como Rio e São Paulo, uma clara homogeneização dos preços de venda das unidades habitacionais oferecidas, determinando um horizonte muito restrito de consumidores, que possuem as reais condições de compra (3). Portanto, houve a combinação perversa da ideologia do neoliberalismo, com a condição de chegada tardia no sistema capitalista, intensificando a concentração de renda. Essa inacessibilidade a mercadoria da moradia tem determinado uma forte angústia, mesmo nos setores médios da população, que não consegue acessar o preço da unidade habitacional, não só nas áreas centrais, mas no contexto das cidades brasileiras.  

Os setores populares, de menor poder aquisitivo, que são alijados deste horizonte de consumo, sempre encontraram nas cidades do terceiro mundo, ou na periferia do capitalismo central, ou ainda na cidade brasileira formas de resistência, tais como; ocupações de imóveis abandonados, abrigo nas ruas, favelas, loteamentos irregulares, etc..., que viabilizaram sua sobrevivência cotidiana. Com isso, as cidades no mundo todo, mesmo em economias mais desenvolvidas passaram a ser marcadas por uma profunda estratificação social, concentrando classes sociais homogêneas determinando a emergência de pequenos guetos ricos e imensas áreas pobres, repletas ou destituídas das infraestruturas. Nas áreas centrais, os movimentos de ocupação popular tem se revelado uma estratégia adequada, mas que nem sempre é bem sucedida. Basta para tal, comparar a bem sucedida Ocupação Manoel Congo no centro do Rio de Janeiro nas adjacências da Assembleia Legislativa e a experiência de colapso estrutural pelo fogo, do Edifício Wilton Paes de Almeida, no centro de São Paulo, nas adjacências do Teatro Municipal dessa cidade, ambas ocupadas por movimentos de moradia. 

Durante o segundo pós guerra, a partir de 1945, com a emergência de uma lógica keynesiana, principalmente nos países centrais instala-se um maior controle do Estado sobre o desenvolvimento urbano e a propriedade da terra. As cidades operam políticas de gestão do preço da habitação regulando o mercado imobiliário, garantindo aos menos privilegiados acesso a moradia em áreas bem estruturadas. Essas políticas baseavam-se invariavelmente na regulação e limitação do direito de propriedade da terra urbana, tais como; locação social, construção de conjuntos habitacionais, obrigatoriedade de destinação subsidiada de percentuais da moradia em empreendimentos imobiliários, impostos progressivos para propriedades fechadas ou sub-utilizadas. Com o advento do neoliberalismo, primeiro nos países anglo-saxões, nos anos 1979 Margareth Thatcher assume como primeira ministra na Inglaterra, e Ronald Reagan em 1981 como presidente dos EUA, inicia-se o desmonte das políticas do Estado de Bem Estar Social, determinando a desregulamentação do mercado imobiliário nessas culturas, que depois se estenderão ao resto do mundo (4). Recentes artigos na imprensa e na academia apontam Viena (5), como a única cidade europeia que mantém o acesso de sua população à habitação por manter seu parque imobiliário numa subdivisão de proprietários dispostos da seguinte forma; 1/3 governo municipal, 1/3 cooperativa de moradores e 1/3 mercado imobiliário. Tais condições garantiram que a população mais pobre e remediada acesse as unidades habitacionais em boas localizações. Importante destacar, que a Viena Vermelha do período entre guerras, governada por administrações social democratas realizou conjuntos habitacionais emblemáticos da História da Arquitetura Moderna, como o Karl Marx Hof e Friedrich Engels Hof. Ambos os Conjuntos Habitacionais localizados próximo ao centro de Viena, com ampla oferta de equipamentos de comércio, boa continuidade com a cidade novecentista, não representando qualquer excepcionalidade no conjunto da cidade construíram uma tradição de inclusão de seus moradores. 

Mas, voltando ao nosso cenário contemporâneo, de emergência da ideologia neoliberal, assiste-se agora a emergência da plataforma “Airbnb” de alocação de habitação voltada para temporadas turísticas, que coloca o ambiente da locação de imóveis, principalmente em destinos turísticos diante de uma demanda mundial, e que também vem demonstrando tendências monopolistas nas mãos de poucos especuladores e empreendedores. A questão vem sendo enfrentada por algumas administrações municipais, que já identificam a expulsão expressiva da população local e tentam pensar políticas de limitação dos abusos de preço. Particularmente a cidade de Barcelona, assume o pioneirismo de tentar restringir os preços praticados pelos investidores, que na verdade vem determinando no cotidiano das cidades, “vazios turísticos” em áreas como o entorno da Sagrada Família, a emblemática igreja de Antoni Gaudí, na cidade catalã. As novas Tecnologias de Informação e Comunicação (TICs) potencializam de sobremaneira as tendências especulativas do neoliberalismo de hegemonia financeira. 

A questão da moradia na história: 

Entre 1872 e 1873, no jornal de Der Volkstaat, do Partido Social Democrata Alemão, Friedrich Engels escreve Sobre a questão da moradia, que na verdade era composto por 3 textos; “Como Proudhon resolve a questão da moradia”, “Como a burguesia resolve a questão da moradia”, e “Adendo sobre Proudhon e a questão da moradia”. Esses 3 textos pretendiam responder ao médico de Würtemberg, Arthur Mülberger, que “se resumiam a achismos fortemente influenciados pelo socialismo pequeno-burguês de Pierre-Joseph Proudhon”(6). O texto ainda terá uma segunda edição em 1887, com uma irônica inserção de Engels agradecendo ao governo alemão por sua proibição, assim garantindo portanto enorme incentivo pela procura de seu conteúdo. 

“Seduzir os trabalhadores com a utopia burguesa de que todos eles merecem “uma casinha” e “uma hortinha” para chamar de suas é uma maneira ardilosa de prendê-los à terra, “ao método antiquado da produção individual e do trabalho manual”, e retroceder dos avanços da tecnologia e da ciência: a humanidade chegou longe demais para regredir.” ENGELS, 2015, P. 8 

Portanto, a questão da moradia retrocede ao século XIX, permanece no século XX, e se estende aos nossos dias, inicialmente pelo imenso êxodo rural das cidades europeias e americanas do século XIX, mas também pela industrialização, urbanização e decréscimo da população rural de forma tardia no Terceiro Mundo e no Brasil, e no século XXI, pela imensa desregulamentação e desmonte do Estado de Bem Estar Social, promovido pelo neoliberalismo a partir do final da década de 70. Esse desmonte, ocorre primeiro nos países de tradição anglo-saxã, e depois na década de 90 no restante do mundo, quando a Queda do Muro de Berlim parece apontar para a vitória do capitalismo, frente ao socialismo burocrático soviético. No campo da arquitetura e do urbanismo, na historiografia e na projetação os tempos do final do século XX apontam para um enorme achatamento das proposições utópicas, determinados pela mentalidade do “Fim da História” (7). Ocorre então um imenso retrocesso determinado pela absolutização do Direito de Propriedade, frente ao Direito de Moradia fazendo com que o empresariamento da terra urbana e dos ganhos de capital gerencie os programas de qualquer empreendimento urbanístico e arquitetônico. Se processa uma imensa redução das energias utópicas, a arquitetura e urbanismo se amoldam de forma acrítica aos programas corporativos, se limitando a um presente contínuo e inusitado, que nos deixa perplexos. Numa sociedade hiper informada, mas sub teorizada (8), incapaz de processar a avalanche de dados pela perda de suas bases teóricas. Onde, também o passado não gera mais empatia, ou experiências que acreditávamos, conformavam nossa história comum compartilhada, não como indivíduos isolados, mas enquanto gênero humano. A pulverização realizada por identidades fragmentárias condenou o universalismo a representar uma globalização automática, concorrencial e limitada. O futuro passou a ser bloqueado, em nome de um pensamento, que conforme ZIZEC, 2024, denominou como “a completa incapacidade de imaginar um futuro alternativo, que não seja nossa própria extinção.” 

Na Europa, há uma sequência de programas de cidades, que se sucedem a partir do tempo de Engels. No início do século XX, o modelo concorrencial ou imperialista chega até a 1ª grande Guerra, realiza-se nesse contexto a urbanização eclética da |Ringsstrasse na Viena, e a implantação do bem articulado Metrô, projetado por Oto Wagner na mesma capital. Em seguida, no entre guerras, emerge nas administrações social-democratas da Europa central ou no socialismo real dos construtivistas russos, uma moradia industrial e padronizada, que faz experiências notáveis, em Viena, Berlim e Moscou. Na Europa Central administrações social democratas debatem a continuidade ou descontinuidade dos empreendimentos, com a cidade pré-existente, tanto no que se refere a escala, como também com relação as técnicas industriais de produção construtiva. No lado soviético, apesar da guerra civil experiências como a da conceituação da moradia e da cidade como “condensadores sociais” (9) são discutidas e implantadas em pequena escala. As experiências dos desurbanistas, ou da cidade dissipada no campo (10), ou ainda dos grandes empreendimentos da indústria de base configuram figurações revolucionárias, onde o espaço anuncia um novo cidadão do socialismo. 


Figura 1: O emblemático conjunto da Ferradura em Berlim do arquiteto Bruno Taut, Berlim 1928-30, 1100 unidades 


Figura 2: O Conjunto do Narkonfim em Moscou, arquiteto Mosei Guinzburg, 1928-32 

O advento do fascismo e do nazismo, desembocando na 2ª Guerra Mundial, suspende todas essas experiências da cidade e da moradia coletiva, insta-se a destruição generalizada. No pós guerra, a Europa elege a regulação keynesiana, que executará a reconstrução dos países europeus, enquanto nos EUA, o New Deal também decreta uma maior regulação da economia liberal. No lado europeu a reconstrução das cidades pelo keynesianismo produz uma efetiva inclusão das parcelas mais precarizadas, destacando se as experiências das Novas Cidades do Reino Unido, a recuperação histórica do centro de Bolonha na Itália, que mantém seus habitantes morando no patrimônio restaurado e a Exposição experimental de Berlim de produção habitacional do IBA Hanswiertel. No lado soviético, com os expurgos de Stálin as vanguardas são silenciadas e emerge uma arquitetura acadêmica com claras analogias com o ecletismo e a utilização de pré moldagem intensiva de concreto armado. Realiza-se na Berlim Oriental, a Karl Marx Alle, uma avenida de cunho haussmaniano, com edifícios de 8 a 11 andares, de claro cunho acadêmico, alinhado ao realismo soviético e em clara contraposição aos edifícios modernistas da Hansviertel na Berlim Ocidental. Em Varsóvia, sede do Pacto dos Países de economia planejada e burocrática ergue-se a torre do Palácio da Ciência e da Cultura, um arranha céu, que permanecerá como prédio mais alto da Europa, até a década de 80 (ver nota 11). No outro lado do Atlântico, nos EUA ergue-se o premiado conjunto habitacional modernista de Pritt Igoe, na cidade de Saint Louis, que receberá vários prêmios do American Institut of Architects (AIA), e que terá um destino macabro na determinação do fim do Movimento Moderno na Arquitetura. 

Nos EUA, a implantação do New Deal produzirá a ideologia macarthista de caça ao pensamento de esquerda, de que na América do Norte não existe classe trabalhadora, mas apenas uma classe média consumista. Contra essa hipocrisia, nos EUA nos anos 60 explodem as lutas pelos Direitos Civis e a constatação de que a permanência da pobreza em alguns rincões persistia pelo desenvolvimento desigual e combinado, já mencionado. É nesse momento, que o já citado e premiado Conjunto de Pritt Igoe em St Louis é implodido por estar completamente dominado pelo tráfico de drogas e pelo crime, determinando aquilo que foi caracterizado como o momento preciso do final do Movimento Moderno na arquitetura, pelo crítico Charles Jencks. No fim dos anos 70, com a crise do petróleo, supera-se o keynesianismo e o New Deal, substituindo-os pelo neoliberalismo da atualidade, que permanece operando até hoje, apesar da crise de 2008. Do lado soviético, no final de década de 80, as seduções consumistas do ocidente fazem desabar o sistema de socialismo burocrático passando desde então a vigorar, um salve-se quem puder geral, competitivo e individualista Todas essas experiências, com a exceção dos períodos entre guerras, o New Deal e o keynesiano do Estado de Bem Estar Social, claramente demonstram uma enorme incapacidade de fazer frente ao acesso à moradia. É sintomático da falta de alternativas e da homogeneização mediocrizada do mundo da arquitetura e do urbanismo, a celebração do programa da torre individualizada, que gestada nos EUA no final do século XIX, na cidade de Chicago, conquista mesmo as sociedades soviéticas1(11), como padrão tecnológico fetichizado, dentro da estética do realismo soviético. A torre empresarial ou habitacional ou mesmo mista segue sendo reproduzida nas mais diversas localidades, apesar de sua clara desvinculação com o território público da cidade, ou com seu impacto ambiental que ultrapassa a escala das possibilidades da arborização urbana. A torre representa na economia política do espaço(12), o programa preferencial dos empreendedores, construtores e investidores, representando para a cidade uma descontinuidade que não impulsiona a interação dialética entre esfera pública e esfera privada ou íntima da família(13), impulsionando a insegurança e violência da cidade atual. 

No Brasil, o período concorrencial se inaugura na República indo até 1930, sendo sucedido pelo período Vargas quando emergem os Institutos de Previdência e Assistência, que empreenderam conjuntos residenciais emblemáticos, como o Pedregulho e o Parque da Gávea do arquiteto Reidy. No período do governo João Goulart 1960-64 entra em debate as reformas de base (agrária e urbana)(14), que serão bloqueadas pelo período da Ditadura Militar, quando emerge o BNH que unifica os institutos de assistências numa carteira unificada. O BNH promoverá na década de 70 o mais intenso programa de remoção de favelas na Zona Sul do Rio de Janeiro, as Comunidades do Pinto, sob palafitas pega fogo e da Catacumba, ambas na borda da Lagoa Rodrigues de Freitas são removidas para locais ermos, como Cidade de Deus (Jacarepaguá) e Vila Nova Aliança (Bangú). Ambos os novos assentamentos serão baseados no princípio; de cada família um lote, sendo entrega aos removidos uma casa embrião, dentro da ideologia da Aliança para o Progresso, que pautava as ações da Ditadura. Na redemocratização, os governos Sarney, Collor, Itamar e Fernando Henrique Cardoso realizam muito pouco na área da produção da Habitação de Interesse Social (HIS). Nos governos Lula e Dilma, o volume de HIS é impulsionado, pelo Programa MC. MV, mas repete-se os erros do BNH pela falta de enfrentamento da questão do valor da terra urbana, que apesar dos instrumentos do Estatuto da Cidade não é gestionada pelas administrações públicas, no âmbito municipal, estadual ou federal. Tal situação, implica na realização de grandes conjuntos habitacionais em periferias distantes, onde os promotores e empreiteiros encontram terra barata, mas com absoluta ausência de urbanidade. Mais uma vez, se caracteriza uma transferência de recursos públicos para agentes privados, que enganam o interesse público, entregando moradias onde não há cidade ou urbanidade, penalizando o precariado com imensos custos de deslocamento e de reprodução de sua prole. Ocorre a repetição de implantações, do que hoje representam enormes passivos sociais e ambientais, como os bairros de Cidade de Deus, Nova Aliança ou Vila Kenedy, da década de 60, no âmbito da Aliança para o Progresso com os EUA. Essas implantações, que foram realizados em periferias distantes, e se utilizaram da tipologia da casa embrião, que celebrava a ideologia de cada lote uma família, acabando por se transformarem em territórios da violência e da exclusão. Claramente a situação é consequência já anunciada por arquitetos e urbanistas, da negativa do poder público, municipal, estadual e federal, de criar as condições para que as implantações ocorram onde há urbanidade. 

O déficit habitacional no Brasil e a qualidade de vida na cidade metropolitana do Rio de Janeiro: 

Há na cidade brasileira, no tempo do neoliberalismo, um declínio do valor de uso e uma ampliação desmesurada do valor de troca, na valoração da moradia a partir de sua inserção no imaginário coletivo. O programa de produção de Habitação de Interesse Social (HIS) em massa carrega o nome dramático de “Minha Casa Minha Vida”, como já assinalado, denotando a importância dada a aquisição da casa própria, no inconsciente coletivo. A monopolização do capital imobiliário, das construtoras e das incorporadoras tem determinado um preço médio de venda por metro quadrado alto, que tem afastado parcelas expressivas da nossa população do acesso a casa própria. O déficit habitacional no país é monitorado pela Fundação João Pinheiro de Belo Horizonte, que distingue um déficit quantitativo e qualitativo. A questão do déficit qualitativo é central, pois ela representa a maior parte da carência de moradia no Brasil e representa a inadequação das instalações sanitárias, seja dentro das unidades ou no seu entorno. 

“O déficit habitacional no Brasil, que representa a necessidade de novas unidades, atingiu 5,87 milhões de domicílios, correspondendo a 19,9% da população. Este déficit é composto principalmente por famílias com ônus excessivo com aluguel (3,03 milhões), situações de coabitação (1,36 milhões) e habitações precárias (1,48 milhões)... Além do déficit quantitativo, há o problema da inadequação habitacional, que demanda melhorias nas moradias existentes. No Brasil, 24,89 milhões de domicílios são considerados inadequados (80,1%), devido à carência de infraestrutura básica (14,25 milhões), condições edilícias inadequadas (11,24 milhões) e insegurança fundiária urbana (3,55 milhões).” SILVA, 2025, P. 1 e 2 

A ausência de infraestruturas básicas no ambiente urbano é um pesado impacto sobre a saúde da população brasileira, que se encontra diante de condições de salubridade inadequada, expondo a primeira infância e os mais velhos a doenças que colocam em perigo seu desenvolvimento humano. As crianças de 0 a 2 anos, que possuem nessa época um fundamental desenvolvimento de seu cérebro, e portanto de sua capacidade de cognição a partir da absorção de uma adequada alimentação, são particularmente penalizadas, quando ocorrem doenças como difterias e diarreias. Por outro lado, os idosos com mais de 60 anos submetidos as condições precárias da cidade brasileira reduzem de forma significativa sua expectativa de vida. Os números são expressivos; 24,8 milhões de domicílios nas cidades brasileiras não possuem acesso a infraestrutura básica ou desfrutam de condições edilícias inadequadas e possuem alguma insegurança fundiária. A ausência de banheiros e cozinhas nos domicílios brasileiros mostra-nos muito do caráter do desenvolvimento econômico do país; oitavo ou sétimo PIB do mundo, com uma das piores distribuição de renda, mostrando-nos como esse desenvolvimento foi incapaz de repartir a renda. 

Particularmente, a destinação correta dos esgotos nas cidades brasileiras é mais um crime de lesa pátria, contra a maioria de sua própria população. Segundo dados do Instituto Trata Brasil, 48% da população urbana brasileira não destina de forma correta seus esgotos, seja no âmbito intra moradia ou fora dela. O caso da despoluição da Baía de Guanabara, na cidade do Rio de Janeiro é mais um caso de atendimento dos interesses das construtoras, com claro adiamento e desrespeito pelo interesse público. Segundo dados do próprio Programa de Despoluição da Baía de Guanabara (DPBG), as 7 Estações de Tratamento de Esgotos (ETEs), planejadas na despoluição já foram executadas, no entanto elas permanecem com seus tanques ociosos, pois as ligações troncais e sub-ramais ainda não foram executadas. É claro e transparente, que as obras de execução das 7 ETEs eram mais confortáveis para as construtoras, pois envolviam canteiros controlados e tapumados, bem como grandes volumes de concreto. Enquanto, as obras de execução dos troncais e sub-ramais para coleta de esgotos nos domicílios envolviam canteiros expostos e baixo custo de faturamento no assentamento de tubos e canalização dos troncos. Fica claro, que a obtenção de balneabilidade nas praias da Baía de Guanabara, tais como São Gonçalo, Itaboraí, Magé, Duque de Caxias e Zona Norte do Rio de Janeiro não seduzem o capital imobiliário, ou as construtoras, e muito menos, nossos gestores públicos. 

A lógica de resguardar lucros volumosos para setores empresariais segue em plena operação também na área de transportes públicos, onde modais de alta capacidade, como trens e barcas são sucateados, enquanto os modais de baixa e média capacidade como ônibus e Bus Rapid Transit (BRTs) recebem recursos vultuosos. A supremacia rodoviarista segue ditando a agenda das administrações públicas, sem que a população tome consciência do imenso prejuízo de suas condições de vida. O campo é importante para garantir melhor qualidade de vida e valorizar moradias nas periferias distantes, mas a naturalização da ampliação do tempo de deslocamento – casa/trabalho e casa/escola – segue deteriorando a saúde e a paciência da população. Particularmente, a cidade metropolitana do Rio de Janeiro apresenta mais uma vez dados revoltantes, que deviam levar seus últimos governantes a prisão. Os especialistas em transporte defendem a ideia de que a eficiência é alcançada por uma rede, onde existem modais de alta capacidade, como barcas e trens, que devem ser complementados pelos modais de baixa e média capacidade, como ônibus e BRTs. Em seu quadrante Oeste e Norte, a cidade metropolitana do Rio de Janeiro possui um sistema de trens urbanos, que irrigava um território expressivos, tendo chegado na década de 60, antes da hegemonia rodoviarista, a transportar 1,2 milhão de pessoas/dia. Hoje esse sistema, que não recebe manutenção e qualquer modernização, desde a década de 60, e que tem sido claramente deixado de lado para privilegiar o sistema sobre pneus (ônibus e BRTs) está transportando apenas 300mil passageiros/dia. As consequências dessa deterioração para núcleos urbanos como a Zona Norte e Oeste da cidade, ou para cidades como Queimados, Nova Iguaçú e Duque de Caxias são sentidas na perda de vitalidade habitacional dessas partes. É preciso afirmar e reafirmar, que esse estado de coisas foi determinado por um planejamento sistêmico de nossas elites endinheiradas, que visa interesses particulares das empresas de ônibus, que muitas vezes lançaram linhas que não o complementam, mas que competem com esse sistema. A destruição do sistema de trens urbanos da antiga Central do Brasil, na cidade metropolitana do Rio de Janeiro nos mostra de forma descarada, a forma de produção, reprodução e gestão do espaço da cidade brasileira. 

Considerações Finais: 

Nos anos 80, em pleno período da redemocratização do Brasil, Carlos Nelson Coutinho lançava; A democracia como valor universal: notas sobre a questão democrática no Brasil, no qual reafirmava um vínculo fundamental entre construção do socialismo e democracia. Composto de 4 ensaios, o autor firmava um objetivo claro; avaliar a relevância da luta democrática para a renovação política econômica e cultural da sociedade brasileira, para a reconstrução do projeto socialista no país. A cidade no Brasil, a partir do caso da cidade metropolitana do Rio de Janeiro, conforme descrito acima, vem sendo administrada por meio de vícios autoritários que concentram renda e afastam do debate parcelas expressivas de sua população. Essa forma de operar determina e impulsiona uma lógica de soterramento dos interesses comuns, por uma gestão intransparente que bloqueia o acesso as informações de infraestrutura urbana, que se constituem no suporte territorial da qualidade de vida. Nesse aspecto, a Questão da Habitação assume importância central, pois o bloqueio a seu acesso determina grande angústia em parcelas expressivas de nossa população, que não percebe a manipulação a que é submetida por interesses particulares. Ampliar a democracia, não apenas representativa mas direta no campo do espaço da cidade pode representar um verdadeiro revolucionamento nas práticas cotidianas da população brasileira. A consciência do espaço urbano na sociedade brasileira precisa ser fomentada, pois a sua intransparência penaliza fortemente o cotidiano de nossa população, afastando-a do Bem Viver. As perversões das decisões tecnocráticas e interessadas de grupos específicos precisa ser submetida ao interesse geral, no sentido da construção de um Comum, que espelhe a resolução do cotidiano com arte e ciência. 

“O comportamento cotidiano do homem é simultaneamente começo e fim de toda atividade humana, isto é, quando se imagina o cotidiano como um grande rio, pode-se dizer que, nas formas superiores de recepção e reprodução da realidade, ciência e arte ramificam-se a partir dele, diferenciam-se e constituem-se de acordo com suas finalidades específicas, alcançam sua forma pura nessa peculiaridade – que emerge das necessidades da vida social ´para então, por consequências de seus efeitos, de suas incidências sobre a vida dos homens, voltar a desembocar no rio da vida cotidiana. Portanto, esse rio é constantemente enriquecido com os resultados mais elevados do espírito humano, assimilando-os a suas práticas cotidianas, e daí voltam a surgir, em forma de questões e demandas, novas ramificações das formas de objetivação superiores. Desse modo, é preciso examinar detidamente as complexas inter-relações entre a consumação imanente das obras na ciência e na arte e as necessidades sociais que despertam ou ocasionam seu surgimento.” LUCKÁCS 2023, P.153

Notas:

1. Interessante assinalar que no período Vargas os diversos Institutos de Previdência de diferentes corporações (bancários, funcionários públicos, comerciários, etc...), que construiram Conjuntos Habitacionais concediam a locação dos imóveis e não a sua propriedade aos moradores. Apenas com a Aliança para Progresso do governo dos EUA é que se impõe a ideia de transformar os moradores em proprietários. BONDUKI, 2014.

2. Pensadores como Carlos Nelson Coutinho, Luiz Werneck Vianna, Leandro Konder, Marcos Del Roio destacam as contradições de uma modernidade, que convive com o arcaísmo ou; “A Modernização sem o moderno” 

3. COUTO, 2021 mostra como os novos empreendimentos no centro da cidade do Rio de Janeiro tenderam a homogeneizar o preço do Metro quadrado de venda, nas mais diversas situações desse contexto.

4. No Brasil, os marcos temporais da emergência do neoliberalismo são mais tardios, e de certa forma adiados por nossa Constituição Federal, artigos 182 e 183, aprovada em 1988. E, pelo Estatuto da Cidade aprovado apenas em 2001, 13 anos após a promulgação da CF, o que denota a luta cultural encarniçada entre Direito de Propriedade e Direito de Moradia, no nosso contexto. 

5. Artigo da BBC Londres, aponta Viena como única capital européia, que controla o preço de seus alugueis; https://www.bbc.com/portuguese/articles/czj7pz3xmdwo, acesso em 14/04/2025. Ou o texto de AYMONINO, 1973.

6. ENGELS, 2015 P.7. Nessa edição consta na orelha da capa, um texto do coordenador nacional do Movimento dos Trabalhadores Sem-Teto (MTST). Guilherme Boulos. 

7. Livro de FUKUYAMA, 2015, que a partir de um hegelianismo conservador aponta a vitória do liberalismo sobre as economias reguladas do socialismo real, com a queda do Império Soviético.

8. ZUBOFF 2021, apresenta o preciso diagnóstico de nossa condição contemporânea, sobre carregada de informação, mas sub embasada pela ausência orientadora de uma paradigma teórico.

9. O arquiteto Mozsei Guinsburg, autor do emblemático edifício Narkomfin em Moscou, formula a ideia de que a arquitetura e urbanismo são “condensadores sociais”, isto é, espelham das práticas sociais humanas no cotidiano comunista. O Conjunto Habitacional Narconfim em Moscou, para o Comissariado do Povo das Finanças sintetiza os novos arranjos familiares da nova sociedade. 

10. Karl Marx defendeu em várias ocasiões, que a divisão social do trabalho entre cidade e campo, ocorrida em tempos muito primevos na Pré-História, era uma das primeiras manifestações da dominação do poder nas sociedade humanas. Os desurbanistas russos buscavam a dissipação da distinção entre campo e cidade.

11. Na cidade de Varsóvia, a mais destruída da 2ª Guerra, há o já mencionado Palácio da Ciência e da Cultura, presente de Joseph Stálin para a capital polonesa, que permaneceu até a década de 80, como o edifício mais alto de toda Europa, mostrando-nos o fetiche alienado do desenvolvimento da torre isolada, como marco territorial. A torre isolada segue sendo aplicada como tipologia habitacional multifamiliar, no Rio de Janeiro e Niterói como programa, que interessa apenas ao capital imobiliário. Ver MOREIRA 2024 

12. A conceituação é de CUTHBERT, 2021, que explicita os agentes e interesses especulativos da produção habitacional atual.

13. Nesse sentido a opção do Dr. Lucio Costa, nas superquadras de Brasília, que foi definida com pilotis mais 6 pavimentos, que foi muito questionada pelas empreiteiras de Brasília, determinou o padrão a partir do seu discurso poético, que defendia: “A escala de pilotis mais 6 andares mantém a habitação multifamiliar na escala do grito da mãe, quando chama seus filhos para o lanche da tarde.” COSTA, 1995.

14.  Nesse momento, 1963, há um Congresso Nacional de Arquitetos promovido pelo Instituto de Arquitetos do Brasil, no Hotel Quitandinha em Petrópolis, que defende a ideia da Reforma Urbana, que relativizava o Direito de Propriedade e propunha que a Urbanização de Favelas deveria ser parte da Política Habitacional do país. O congresso também defende a Reforma Agrária como forma de diminuir a pressão do exôdo rural sobre as cidades. Apenas em 2001, com o Estatuto das Cidades o país alcança uma regulação que adequa o Direito de Propriedade ao Direito de Morar, no entanto parte dos instrumentos dessa lei não são aplicados pois a propriedade segue sendo um valor intocável na prática na sociedade brasileira.

Bibliografia: 

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COUTINHO, Carlos Nelson - A democracia como valor universal: notas sobre a questão democrática no Brasil – São Paulo, Ciências Humanas 1980 

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MOREIRA, Pedro da Luz - O filme Aquarius e a produção e reprodução da cidade no Brasil: A questão do habitar e seus padrões impostos pelo mercado imobiliário – Anais do Encontro Arquimemória 6, Salvador 2024 

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