sexta-feira, 17 de novembro de 2023

Gustav Landauer, uma figura ímpar do judaísmo na Europa Central, na passagem do século XIX ao XX

Gustav Landauer (1870-1919)


Gustav Landauer (1870-1919), que se auto intitulava um judeu anarco-socialista, talvez seja dessas figuras, apenas possíveis de serem encontradas na transição do século XIX para o século XX, quando, um espectro progressista  rondava toda a Europa, e particularmente, aquilo que se convencionou chamar da Mittle Europe, ou Europa Central, ou ainda, a Europa de influência germânica. Landauer era amigo e correspondente de figuras notáveus nesse contexto, como o sionista Martin Buber ou judeus assimilados como Walter Benjamim, Gyorgi Lukács, Ernst Bloch e Gershon Scholen. Com uma clara capacidade ímpar de celebração tanto da revolução, quanto da restauração medieval e comunitária, típicas do romantismo alemão e da cultura judaica messiânica e utópica da Mitle Europe, desse período. A visitação aos seus pensamentos e reflexões anti estatais e universalistas são como importantes testemunhos relativizando nossas concepções contemporâneas de nação, território e identidade, tão absolutizadas, no atual conflito judaico islâmico entre Palestinos e o Estado de Israel.  A ideia de povos sem territórios e de nações sem Estados aparecem como provocações, que na verdade são celebradas como potencialidades, e que tenham tanto para nos ensinar e nos fazer pensar. A partir de uma perspectiva de convívio com a Revolução Russa de 1905-1917, das dificuldades concorrenciais da emergência da Alemanha como um Estado Nacional tardio, no sistema competitivo capitalista de nações. Ao mesmo tempo, a presença arraigada nesta mesma cultura de uma crítica romântica a sociedade moderna industrial, seu vínculo à práticas sagradas e culturais com as tradições judaicas, que ao final fazem suas reflexões serem enquadradas como um esforço heterodoxo e multipolar. Importante referência para olharmos para problemas, como Identidade e Representação, Práticas e Costumes Comuns, Estado e Sociedade Civil, a partir de um perspectiva inusitada, uma outra lente, com relação a uma ética da pluralidade. Pois, o sonho de ordenar a história humana a partir de uma totalidade universal, com um sentido didático, auto explicativo e auto justificativo, que está presente em Imanuel Kant (1724-1804) também aparece nas pretensões utópicas de Gustav Landauer.

“Uma tentativa filosófica de elaborar a história universal do mundo segundo um plano da natureza que vise à perfeita união civil na espécie humana deve ser considerada possível e mesmo favorável a este propósito da natureza. É um projeto estranho e aparentemente absurdo querer redigir uma história segundo uma ideia de como deveria ser o curso do mundo, se ele fosse adequado a certos fins racionais – tal propósito parece somente poder resultar num romance. Se, entretanto, se pode aceitar que a natureza, mesmo no jogo da liberdade humana, não procede sem um plano nem um propósito final, então esta ideia poderia bem tornar-se útil; e mesmo se somos míopes demais para penetrar o mecanismo secreto de sua disposição, esta ideia poderá nos servir como fio condutor para expor, ao menos em linhas gerais, como um sistema, aquilo que de outro modo seria um agregado sem plano das ações humanas.” KANT 2022, pág.16

Landauer, que se engajou na efêmera Comuna da Baviera em abril de 1919,  no contexto de emergência das revoluções socialistas da Europa Central, como comissário do povo para a Instrução pública, e que ao final será preso e prematuramente assassinado em 2 de maio de 1919. Encerrando uma trajetória de um pensamento vivo e provocador, que procurava reunir; a crítica romântica da sociedade industrial moderna com seus processos alienantes, o anarquismo e sua desconfiança com relação ao exercício da coerção e dominação, e o sonho do socialismo, como a busca de um sentido para o trabalho humano não mais refém da mera lógica produtivista e consumista, mas libertador da individualidade cidadã. A necessidade e o supérfluo, a socialização e a personificação, a produção social e a auto expressão do trabalho se reuniam em Landauer a partir de um prisma de equilíbrio entre as soberanias individuais e sociais num diagnóstico dinâmico das angústias da sociedade alemã do início do século XX. Entre a veneração dos procedimentos artezanais e expressivos da Idade Média, e as conquistas mercantil produtivista do mundo moderno, Landauer identificava uma profunda crise de nossa sociedade, ainda hoje não resolvida. Ele criticava o marxismo, por recusar a afinidade entre o socialismo a ser perseguido no futuro e a tradição de certas estruturas sociais do passado, como as repúblicas das cidades do Medievo, com o comunitarismo de marca rural, chegando a mencionar as práticas do Mir russo, como típica experiência da resistência das terras comuns, diante dos cercamentos. Landauer é um romântico-revolucionário, um típico pensador ao mesmo tempo restaurador-utópico, articulando extremos aparentemente inconciliáveis, tais como; passado e futuro, conservadorismo e revolução, e messianismo e utopia.

"Num artigo autobiográfico redigido em 1913, Landauer descreve a atmosfera de sua juventude como uma revolta contra o meio familiar, como "choque incessante de uma nostalgia romântica contra as estreitas barreiras do filisteísmo". O que significa o romantismo para ele? Em uma nota que se encontra entre seus papéis no Arquivo Landauer de Jerusalém, indica que o romantismo não deve ser entendido nem como "reação política (Chateaubriand)" ou "medievalismo alemão-patriótico", nem como "escola lietrária". O que o romantismo, Goethe, Schiller, Kant, Fichte e a Revolução Francesa têm em comum é que todos eles são antifilisteus - filisteu é uma expressão que designa na linguagem cultural do século XIX, a estreiteza, a mesquinharia e a vulgaridade burguesa." LÖWY 2020, pág.134

Segundo LÖWY 2020, no livro de 1911 de Landauer, - O Apelo ao Socialismo ou Llamamiento al socialismo: Por una filosofía libertaria contra el estado y el progreso tecnológico - há um claro ataque as noções de progresso compartilhadas tanto pelos liberais, como pelos marxistas da Segunda Internacional (Londres 1896), rejeitando a crença em um evolução progressista uni direcionada. De certa forma, antecipando as famosas Teses sobre a Filosofia da História de Walter Benjamin, que lançam profundas dúvidas sobre a direção do progresso técnico-produtivista da modernidade, nos anos 1930. A história humana não corresponde a uma acumulação quantitativa direcionada para um artificialismo produtivista predador e negador da natureza. Há uma clara presença de uma melancolia saudosista, típica do movimento do Romantismo, notadamente germânico, que celebra a micro economia, a auto determinação das pequenas comunidades / cidades, e os processos locais de longa duração de apropriação tecnológica e cultural. LÖWY 2020, também menciona um ensaio de Landauer sobre o poeta americano Walt Whitman, comparando-o ao socialista francês Proundhon, num esforço comum de conciliação entre individualismo e socialismo. Ao mesmo tempo, o pensamento de Landauer pensa em reunir; tradição ancestral e esperança no futuro, mobilizando-os contra o gigantismo do Estado moderno, a partir das posições de Proudhon, Kropótkin, Bakunin e Tolstoi, mirando e celebrando a descentralização das pequenas comunidades. Há uma clara ponte entre o pensamento de Landauer e a religiosidade judaico-cristã do final do século XIX, como clara reação ao Iluminismo francês universalista de Voltaire, LÖWY 2020, pág.139 se refere ao livro de Martin Bubber intitulado A Lenda do Baal Schem, que provoca uma guinada na posição de judeu assimilado.

"Pouco após o aparecimento desse livro, Landauer saúda, em carta de outubro de 1908, "esses maravilhosos contos e lendas da tradição de místicos judeu-poloneses do século XVIII do Baal Schem e de rabi Nakhman". Ele escreve um artigo a respeito - que aparecerá somente em 1910 -, pondo em evidência os aspectos romântico/messiânicos do livro. "O extraordinário dessas lendas judaicas é [...] que o Deus  que é buscado deve não apenas libertar dos limites e ilusões da vida sensível, mas sobretudo ser o Messias, que fará erguer do sofrimento e da opressão os pobres judeus torturados." Os contos hassídicos são a obra coletiva de um Volk (povo), o que não significa algo de "popular' ou trivial mas "um crescimento vivo; o futuro no presente, o espírito na história, o conjunto no indivíduo [...] O Deus libertador e unificador no homem aprisionado e dilacerado, e o céu na terra." LÖWY 2020, pág.140

No campo da arquitetura e urbanismo, Landauer manifestou profunda simpatia pelo movimento inglês do Arts and Krafts, de socialistas como John Ruskin e William Morris e formuladores como Patrick Guedes e Ebenezer Howards das proposições das Gardens Cities of Tomorow. Numa clara celebração do comunitarismo dos pequenos produtores, presente no renascimento das cidades-estados medievais, a partir do século X na Europa inglesa e germânica. Ruskin, que escrevera Las Siete Lâmparas de la Arquitectura, e As Pedras de Veneza, celebrando a cidade da Itália e a cultura do construir da Idade Média, nos seus longos processos de estratificação do tempo, que acabavam configurando um território sem repetições, e de constantes surpresas e maravilhamentos únicos. Landauer identifica no messianismo judaico a presença da constante insatisfação do povo consigo mesmo, uma constante crítica a forma de operar da sociedade humana e terrena. Segundo LÖWY 2020, pág.143 era forma arquetípica do messianismo pária, que remonta a própria Bíblia, que "num comentário sobre Strindberger de 1917, ele afirma a existência de duas grandes profecias na história: "Roma, a dominação do mundo; Israel, a redenção do mundo." Enfim, para nosso anarquista anti Estatal a missão redentora e messiânica judaica assumia a forma secular do socialismo, que pela condição do judeu internacionalista na Alemanha do começo do século XX. Afinal, os judeus tinham então esta particularidade única de ser um povo, um grupo, uma comunidade, sem a presença de um Estado, pelo menos na Alemanha do início do século XX. Há uma rejeição, por parte de Landauer das duas correntes que mobilizam a cultura judaica da Mitle Europe, de um lado, a assimilação ao Estado imperial alemão, e do outro, a pretensão a estabelecer um Estado judeu. LÖWY 2020, menciona um artigo de Landauer, que tem como título; Serão estes Pensamentos Heréticos? (Sind das Ketzergedanken?), no qual celebra, que enquanto as outras nações separam-se dos seus vizinhos pelas fronteiras, "a nação judaica carrega seus vizinhos no próprio peito."

"Convidado em 1912 por um agrupamento local do movimento sionista alemão em Berlim para proferir uma conferência sobre "Judaísmo e Socialismo", Landauer lança a ideia provocante de que Galuf, a diáspora, o exílio, é precisamente o que liga o judaísmo ao socialismo - tese que decorre logicamente de toda sua análise da condição judaica. Eis aí aonde seu caminho separa-se do de seu amigo sionista Martin Buber e o conduz à revolução de 1918-1919." LÖWY 2020, pág.143

Portanto, Landauer apresenta profundas divergências frente ao movimento Sionista, e ao emergente nacionalismo da Alemanha, enxergando nesses movimentos, por um lado, uma clara atitude pró Estatal, com a qual como anarco-socialista não pode concordar, e por outro, como questionador da emergente burguesia nacionalista alemã, que também insufla o mesmo Estado. Afinal, o posicionamento de Gustav Landauer me parece ser um importante ponto para refletir sobre os lugares comuns compartilhados hoje por nosso senso comum reducionista, que articula de forma mecânica a positividade da construção do Estado.

BIBLIOGRAFIA:

BENJAMIN, Walter - Teses sobre a Filosofia da História - Editora Ática, São Paulo 1985

BUBER, Martin - A Lenda do Baal Schem - Ed. Perspectiva São Paulo 2002

LANDAUER, Gustav - Llamamiento al socialismo: Por una filosofía libertaria contra el estado y el progreso tecnológico - Ediciones el Salmon, Madrid, 2019

LÖWY, Michael - Redenção e Utopia: o judaísmo libertário na Europa Central (um estudo de afinidade eletiva) - Editora Perspectiva, São Paulo 2020

KANT, Imanuel – Ideia de uma história universal de um ponto de vista cosmopolita – Editora Martins Fontes São Paulo 2022, pág16

RUSKIN, John - Las Siete Lâmparas de la Arquitectura - Editora Alta Fulla, Barcelona 1987

RUSKIN, John - As Pedras de Veneza - Editora Martins Fontes, São Paulo 1992