domingo, 29 de abril de 2018

Conservadores e Progressistas numa breve História do Brasil

Lula no comando das assembléias do ABCD no final dos 
anos setenta
Há uma interpretação de nosso tempo contemporâneo, ou pelo menos da modernidade ocidental, compartilhada por alguns autores*, como um esforço do capitalismo industrial para regular e controlar os terríveis efeitos dos avanços da mercantilização generalizada da sociedade, através do associativismo. No século XIX, as terríveis descrições das condições da classe operária principalmente na Inglaterra mostram condições de insalubridade e de exploração do trabalho nunca antes presenciados. As organizações da sociedade civil, independentes do Estado, como sindicatos, associações de classe, cooperativas contrapunham uma lógica da solidariedade entre indivíduos ao sujeito isolado, contábil e financeiro do liberalismo clássico. O elemento espacial que configura a possibilidade de construção dessa solidariedade é a indústria fordista, com grande concentração de mão de obra, que a partir da sua mobilização forçam as instituições legais e jurídicas a conceder benefícios variados, que configuram o Estado de Bem Estar Social. Essa figura de distribuição de renda e de anti valor, como a caracterizou Chico de Oliveira** se disseminou no primeiro mundo, particularmente no núcleo central do capitalismo na Europa e nos EUA, domesticando não só o capital, mas também o movimento sindical nos países centrais. Tal presença, também determinou a disseminação de unidades fabris pela semi periferia do capital, a partir do segundo pós guerra, na expectativa de encontrar um movimento sindical mais dócil, que não mais ameaçasse as taxas de lucro dos grandes oligopólios.

Sobre essa ótica, a história do Brasil emerge como um amontoado de catástrofes, onde o elemento conservador sempre se impôs, impedindo uma melhor distribuição de benefícios, apesar de ter tido a segunda maior taxa de crescimento econômica do mundo ocidental entre 1870 e 1970. Um país brutalmente desigual, convivendo com uma violência cotidiana assustadora, onde o hipermoderno convive e se beneficia do mais obtuso arcaico. Na verdade, numa olhada rápida por nossa história constata-se a presença daquilo que Adorno qualificou como, a Dialética Negativa, onde os problemas não eram superados para dar lugar a uma nova e superior contradição, mas os problemas eram rebaixados, solucionados de forma precária, arcaica e regressiva. Esse truncamento sempre alimentou a auto ironia dos brasileiros, que invariavelmente identificava em nossa história a superação da comédia mais hilariante, por uma representação sempre incompleta e pífia em princípios.

Assim, nossa independência da metrópole portuguesa, foi realizada por um príncipe de Portugal, que ao invés de proclamar a república, institui um império autocrático influenciado pelo liberalismo, mas sem a extinção da escravidão. O regime escravocrata perdurou até o final do século XIX, manchando nossa história com o fardo de última nação do ocidente a largar o regime, até ser extinto pela Princesa Isabel. Paradoxalmente, selando também a queda do regime do seu governo monárquico, que se anunciava. e que é substituído por uma autocracia militar mais conservadora que o império, dominanda por um positivismo retrógrado, que repudia a cultura, as práticas e a sobrevivência das massas. As oligarquias agro-exportadoras nunca aceitaram a revogação do estatuto da escravidão pelo império, sem conferir qualquer benefício aos negros libertos, mantendo suas convicções de uma ganância imediatista, que parece negar qualquer futuro para a nação, acima de tudo. Muito além disso, os negros foram substituídos pela imigração européia e japonesa, que literalmente deprimia as suas reinvindicações indenizatórias, e pretendia de tabela embranquecer o país.

Segue-se uma sucessão de governos oligárquicos, numa democracia regulada pelos coronéis do interior e do sertão, as oligarquias agro-exportadoras, que tinham medo do desenvolvimento urbano e da industrialização, pelo que esse representava na radicalização do conflito. A emergência do modernismo brasileiro traz para esse cenário, o aparecimento da nova ciência social, Gilberto Freyre e Sérgio Buarque de Holanda, que pela primeira vez celebram a plasticidade portuguesa e a miscigenação das três raças tristes, o ibérico, o negro e o índio, declinando um certo complexo de inferioridade. O primeiro sociólogo, a partir de um dualismo redutor entre casa grande e senzala, ou sobrados e mocambos, e o segundo ancorado em Max Weber, celebrando um certo iberismo mais hispânico, que determinava a indistinção entre público e privado. Ambos, tinham em mente a contraposição da ética protestante, que determinara a vitalidade e prosperidade do nosso irmão americano do norte em contraposição ao nosso atraso, introjetando ainda um certo complexo de vira lata, na genial assertiva de Nelson Rodrigues. Aliás, a arte sempre desfrutou de um poder de síntese mais convincente da realidade brasileira, que os ensaios sociológicos, bastando para tal, lembrar do genial romance da mesma época de Mario de Andrade, que digere a tese da inferioridade da miscigenação brasileira, na figura emblemática do Macunaíma, um anti-herói, ambiguamente ingênuo, sabido e esperto.

Mas, o mérito das interpretações de Freyre e Holanda talvez esteja naquilo que eles menos destacaram em seus esforços explicativos, as diferenças sutis entre as colonizações espanholas e portuguesa da América. O Brasil em sua imensidão territorial, assim como outros países da região nunca pensaram numa integração, se limitando a competir de forma predatória entre si, apenas com o objetivo de atender as demandas das economias centrais, primeiro da Europa e no século XX dos EUA e do Japão. Mesmo nos esforços de industrialização e de substituição das importações, ao longo do século XX, que todos fizeram, nos quais a tônica era o fortalecimento do mercado interno foram criadas estruturas produtivas similares e portanto competitivas. A partir do fim da segunda grande guerra mundial surgem mecanismos que pretendiam mudar essa realidade, como o CEPAL de 1948 e a ALALC de 1960, construindo uma consciência regional. A figura síntese desse esforço no Brasil foi Celso Furtado, um economista nacionalista, militar que participou da campanha da FEB na Itália contra o nazi fascismo, que sintetizou esse esforço no seu livro Formação Econômica da América Latina, de 1969. Celso Furtado e Raúl Prebisch caracterizam o subdesenvolvimento não mais como uma etapa em direção ao pleno desenvolvimento, mas uma forma peculiar de divisão social do trabalho na semi periferia das economias centrais. O subdesenvolvimento não pode ser compreendido sem os elementos coercitivos determinados pela subordinação às potências capitalistas centrais, que impedem a revolução burguesa, mantendo a minoridade e dependência da nação, que não se assume enquanto plano e projeto autônomo. No entanto, as ditaduras militares instaladas no continente a partir de 1964 voltaram novamente a integração com o núcleo central do sistema capitalista, abandonando o projeto de integração regional, exilando Celso Furtado.

Mas antes da Ditadura Militar é necessário refletir sobre o periodo Vargas e JK. Vargas foi uma figura ímpar, que influenciou a história nacional de forma determinante da revolução de 30 até seu suicídio em 1954, após o último periodo democrático de seu governo. O enfrentamento com a potência norte americana parecia assinalar a emergência da nossa revolução burguesa, não consensuada, domesticada e pacífica, como sempre foram os interesses oligárquicos nacionais. Aqui, atestado pela hostilidade que a mídia nacional sempre dedicou a Vargas, particularmente em São Paulo, que foi por ele derrotado em 1932, e que apesar disso foi o principal Estado da federação beneficiado.

"A grande oligarquia paulista derrotada em 1932, com a cabeça feita havia mais de um século pelo jornal O Estado de São Paulo, elegeu Vargas como inimigo número 1. Mesmo hoje, quando a influência desse jornal já é menor, persistem no imaginário paulista o horror e o desprezo - que a academia e a universidade também ajudaram a enraizar - a seu nome." OLIVEIRA 2018, página46

Mesmo veículos de comunicação mais desligados da era Vargas, como a TV Globo, sempre expressaram um anti varguismo assustador, materializado na ira de classe média da União Democrática Nacional (UDN) de Carlos Lacerda, que até hoje parece que psico grafa do além os seus editoriais. A eterna teoria da conspiração sempre imputou ao enfrentamento, que Vargas representava à hegemonia norte-americana, materializada em ações como; a Petrobrás, o Conselho Nacional do Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico (BNDE), ou a centralização do câmbio. Essa última, uma clara estratégia para fomentar e subsidiar às importações de máquinas e equipamentos, horrorizando os liberais brasileiros e as instituições financeiras internacionais. Apesar disso, Vargas será eleito em 1945 como senador por dois estados, Rio Grande do Sul e São Paulo, e depois presidente em 1951, sucedendo ao General do Exército Eurico Gaspar Dutra, que o depusera da presidência e fora por ele apoiado na campanha, em detrimento do General da Aeronáutica Eduardo Gomes.

"A política varguista levou ao inevitável enfrentamento com a hegemonia norte-americana. Entrando de chofre na chamada Guerra Fria, os Estados Unidos elaboram uma doutrina paradoxalmente anti-industrialista, e todos os que dissentiam eram catalogados como inimigos da democracia A extraordinária aceleração do desenvolvimento capitalista no Brasil parecia não deixar dúvidas de que o país se estava construindo como nação capaz de rivalizar com os Estados Unidos no plano industrial, sustentada num amplo território e numa população em acelerado crescimento. A acusação de estatização serviu como uma luva para um pretenso 'aggiornamento' do Brasil em direção ao leste." OLIVEIRA 2018 página46

O mesmo autor destacará que o nacionalismo e o estatismo no Brasil seguia muito mais uma decorrência da conjuntura imposta ao país, do que uma convicção de nossas elites, exatamente pela ausência de financiamento abundante no mundo naqueles tempos. Se na industria do petróleo, tal ausência de financiamento denotava a proteção as grandes empresas petrolíferas mundiais, que eram naqueles tempos dominadas pelos EUA, Inglaterra e Holanda, nos outros campos a coerção financeira passou a operar de forma mais eficiente a partir dos anos sessenta. A Petrobrás apenas recorrerá a um empréstimo internacional na década de 1980, indicando de forma clara o boicote internacional aos seu desenvolvimento. JK ampliou a industrialização no sentido de Vargas, apenas acessando de forma substancialmente maior, o financiamento externo do país. O dilema permanecia o mesmo, por onde começar o desenvolvimento industrial, numa economia com renda extremamente concentrada, a opção foi a implantação de multinacionais, que desbloquearam o crédito do país. Aquilo, que foi caracterizado por muitos autores de filiação gramsciana, como a revolução passiva e a via prussiana da nossa burguesia - Florestan Fernandes, Carlos Nelson Coutinho e Luiz Werneck Viana*** - parecia chegar ao esgotamento com as reformas de base do governo Jango. Os casos clássicos de chegada tardia ao centro da economia capitalista eram Alemanha, Itália e Japão, que para promoverem seu desenvolvimento enveredaram por sistemas autoritários e centralizados, com forte presença do Estado.

Com o Golpe Civil-Militar de 1964, o desenvolvimento da nossa estrutura produtiva abandonava as reformas de base, que apontavam para o florescimento de um mercado interno, seguindo a lógica de primeiro fazer crescer o bolo para depois dividí-lo, atraindo grandes conglomerados das indústrias multinacionais a partir da promessa do arrocho salarial e de uma classe operária domesticada. O desenvolvimento permaneceu preso a uma lógica de hiper concentração de renda, condenando extratos expressivos da nossa população a uma sobrevivência abjeta. Os impressionantes indices de crescimento da economia do tempo do milagre brasileiro também foram baseados numa enorme ampliação da nossa dependência financeira, que ao final da década de setenta já não apresentavam os juros atrativos da década de sessenta. A teoria da revolução passiva da burguesia e a via prussiana se complementa com a teoria do subdesenvolvimento, não mais como uma etapa predecessora do pleno capitalismo, mas como uma forma peculiar na periferia do sistema. A nossa modernidade será sempre incompleta e inacabada, convivendo com o arcaísmo mais atrasado de uma elite, que então abandona de forma definitiva o projeto da autonomia da nação, aderindo a total dependência cultural, social e econômica. Mais uma vez aparecerá uma síntese no campo da literatura de dimensões inigualáveis para nossa auto-explicação, a fantástica e mágica saga do Grande Sertão, Veredas, de João Guimarães Rosa. Um livro de 1956, que contrapõe as imensidões do sertão as angustias e questionamentos de Riobaldo Tatarana, um vaqueiro, num ambiente violento, misterioso, numa luta constante entre sobrevivência, indução e dedução. Um romance épico, lido num só folego, que nos contrapõe precariedade das existências e profundidade de reflexão. em torno da pata do boi e das imensidões do cerrado brasileiro. Aliás, o mesmo cenário da implantação da nova capital, Brasília.

Após a Ditadura Civil-Militar e o milagre econômico, emerge o movimento sindical da região do ABCD paulista, que surpreende o mundo com uma capacidade de organização inusitada e articulada, e com uma mobilização que questiona um regime fechado e autocrático, que promovia uma adequação submissa aos ditames do centro do capital. Na época, eu cursava a Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (FAU) da UFRJ, no campus da Ilha do Fundão, e nós estudantes havíamos nos antecipado ao movimento sindical do ABCD, voltando a ocupar o espaço das ruas, questionando o regime autoritário com manifestações, que foram duramente reprimidas. Mas as manifestações estudantis do final dos anos 1970s estavam longe de mobilizar os contingentes das greves do ABCD, que demonstraram uma capacidade de organização inesperada. O espanto com o inusitado do movimento do ABCD, não se limitou ao Brasil percorrendo o mundo, e gestando a primeira onda de raiva e ojeriza das elites brasileiras contra o líder sindical, popular, vindo como imigrante do Nordeste num pau de arara, mas que na verdade nunca foi um radical revolucionário, podendo ser classificado como um reformista contumaz. Numa entrevista em março de 1978, ao jornal Pasquim, o então líder sindical Lula responde as perguntas do repórter sobre o FGTS, a repressão da ditadura, pelegos, e política, com uma claro tom de contemporização;


"Pergunta: Convém registrar por que a memória nacional é curta: a safanagem do fim da estabilidade foi feita por Roberto Campos. Resposta do Lula: Em 1963, num Congresso Nacional de Metalúrgicos, os trabalhadores aprovaram a criação de um fundo mas para ser paralelo à estabilidade e não para acabar com ela. Roberto Campos aproveitou a deixa e criou o FGTS. Pergunta: Lula, quais têm sido suas dificuldades com os órgãos de repressão? Quantos agentes tão te seguindo? Resposta do Lula: Se eu disser que sofri repressão estou mentindo, sabe. Nunca me prenderam. Pergunta: Nem chamaram para depor? Resposta do Lula: Chamaram quando uma empresa me denunciou como subversivo. Fui lá com o diretor do DOPS e fui muito bem tratado. Isso foi o ano passado. Agora fui na Polícia Federal por causa do Congresso das Mulheres, mas também fui bem tratado...Pergunta: O movimento sindical que desembocou em 64 era dirigido por pelegos? Resposta: Tanto isso é verdade que os homens estão aí, toda a cúpula sindical é composta por homens de antes de 64. Isso também define o pelego: o cara consegue se moldar a qualquer tipo de governo. Se amanhã entrar um governo de ultra-esquerdistas, se entrar um de ultra-direita serão ultra-direitistas. Não vivi muito bem a época do João Goulart, mas acho que ele ouvia muito dirigente sindical de gabinete, sem base popular... Pergunta: O que você acha da tese de que o operário, para fazer política, deve se filiar a partidos? Resposta: Não só o operário mas o povo como um todo deve fazer política, até na mesa de um bar tomando uma pinga. Realmente, não aceito que os políticos exerçam influência dentro do sindicato, mas acho que o sindicato tem obrigação de exercer influência na classe política." GUIZZO 1981 página13, página19, página29, página32 

Vencida a Ditadura Civil-Militar, num processo lento, gradual e seguro, no qual novas derrotas são imputadas ao pensamento e as ações mais progressistas, dentre as quais a maior e mais emblemática, sem sombra de dúvida é a Emenda das Diretas Já, em 1984. Percebe-se também, ao longo de nossa história recente, uma domesticação dos posicionamentos mais progressistas de figuras importantes, como Fernando Henrique Cardoso e Luiz Inácio Lula da Silva, que ao longo de suas trajetórias foram cedendo a posicionamentos e articulações mais conservadoras. Afinal, a governabilidade no Brasil passa sempre por acordos com o campo do centro, que muitas vezes em comparação com outros referenciais poderia ser classificado como conservador. Assim, FHC da teoria da dependência se metamorfoseia em avaliador da doutrina neo liberal do Consenso de Washington.  Enquanto Lula, do confronto com Collor, na primeira eleição direta após a ditadura, na qual ainda se posicionava contra os monopólios e a especulação rentista se transforma em 2002, com a redação da Carta aos Brasileiros, um documento de clara garantia para o capital especulativo.

Enfim, o Brasil tem um referencial político conservador, de uma maneira geral os posicionamentos do nosso espectro partidário são condicionados por uma tendência que nega a mudança e preserva a manutenção do status quo. O posicionamento político de uma maneira geral é decorrência de um temor disseminado no senso comum de um sentido de preservação de determinado habitus comportamental, que na verdade, celebra a preservação e descarta o experimentalismo. Paradoxalmente essa condição tem como consequência imediata, uma economia hiper concentrada, com uma das piores divisão de renda do mundo, uma premissa ou diagnóstico reconhecidos por todos, conservadores ou progressistas. Novas figuras despontam em nosso espectro político numa dinâmica extremamente imprevisível e improgramável para todos, na qual a novidade parece ser a declaração agora explícita de ódio dos conservadores; ao estatismo, às políticas de compensação, aos direitos humanos e à inclusão solidária. Os fundamentalistas do mercado neo liberal proclamam a necessidade de libertar o empreendedorismo, suprimir o Estado, terminar com programas de renda mínima, num claro ódio a pobreza, que talvez venha a ser suprimida, pela seleção natural.

NOTAS:

* HABERMAS, Jürgen - O discurso filosófico da modernidade - Editora Martins Fontes São Paulo 2002.  Fala muito da ampliação do associativismo, que conseguiu domesticar os ímpetos de lucro e concentração de renda do sistema capitalista, nas imensas instalações fabris da indústria fordista das economias centrais.

** OLIVEIRA, Francisco numa série de livros descreve a idéia de benefícios indiretos, que diminuíram as condições brutais de sobrevivência da classe trabalhadora. Ver bibliografia.

*** Os livros dos três autores eram; FERNANDES, Florestan - A revolução burguesa no Brasil, ensaio de interpretação sociológica - Editora Globo São Paulo 2005, COUTINHO, Carlos Nelson - A democracia como valor universal - Editora Ciências Humanas São Paulo 1980 , e VIANNA, Luis Jorge Werneck - A revolução passiva - Editora Revan Rio de Janeiro 1997

BIBLIOGRAFIA:

ADORNO, Theodor W. - Dialética Negativa -  Editora Zahar Rio de Janeiro 2009

DARDOT, Pierre e LAVAL, Christian - A nova razão do mundo, ensaio sobre a sociedade neoliberal - editora Boitempo São Paulo 2016

GUIZZO, João - Lula, Luiz Inácio da Silva entrevistas e discursos - editora Guarulhos Guarulhos SP 1981

OLIVEIRA, Francisco de - Brasil, uma autobiografia não autorizada - Editora Boitempo São Paulo 2018

domingo, 8 de abril de 2018

Schumpeter, capitalismo, socialismo e democracia

O livro Capitalismo, socialismo e democracia do economista austríaco Joseph Alois Schumpeter teve sua primeira publicação em 1942 e tornou-se uma obra clássica da economia política do século XX, nele o cerne da questão está colocado na capacidade de inovação, ou na questão da "destruição criativa", quando acontece uma transformação produtiva, que demandava um realinhamento tecnológico. E, no fato de que essa demandava um certo grau de controle ou poder monopólico dentro do sistema capitalista, para que o investimento na inovação pudesse ser apropriado. Bastante crítico ao marxismo, Schumpeter acaba enveredando por um interessante debate, no qual era necessário salvar o capitalismo dos capitalistas, pois ao contrário de muitos neo-liberais contemporâneos, o autor identificava no Estado, uma construção dos capitalistas, se aproximando de Marx. Para Schumpeter, o poder do Estado era de fato usado para proteger os ricos e poderosos, enquanto em sua concepção deveria olhar pelos pobres e pelo conjunto da sociedade. Essa prática se cristalizava a partir da burocratização dos procedimentos do Estado, que visavam a proteção dos monopólios econômicos, interessados em obter rendimentos dos seus investimentos em inovação.

"Podia se haver alegado que, naquelas circunstâncias, até mesmo a mera "administração do capitalismo" era um grande passo a frente. Mesmo porque não se tratava de administrar o capitalismo no interesse capitalista, e sim de fazer um trabalho honesto no campo da reforma social e de construir um Estado que girasse em torno dos interesses do trabalhador." SCHUMPETER 2017, página492

De certa forma, essa também era posição de Marx, que considerava o Estado uma construção interessada da burguesia, mantenedor e defensor dos seus interesses, e que deveria ser dissolvido assim que o proletariado tomasse o poder. Já foi comentado aqui o livro clássico de Lênin, O Estado e a Revolução, a doutrina do marxismo e as tarefas do proletariado na revolução, texto concebido nos meses de agosto e setembro de 1917, portanto antes da tomada do poder pelos bolcheviques. No qual, Lênin defende que uma das primeiras responsabilidades da revolução era privilegiar os mecanismos de democracia direta, como os sovietes, para mudar o Estado burguês em suas práticas interessadas. De fato, essa concepção não se materializou havendo na verdade uma hipertrofia do Estado soviético, para fazer frente às guerras civis e as ameaças que se seguiram à tomada do poder pelos bolcheviques. Portanto, o livro de SCHUMPETER 2017, publicado em 1942 já desfruta da perspectiva histórica das práticas inerentes ao Estado autocrático, não apenas soviético, mas também fascista na Itália e nazista na Alemanha.

"Em terceiro lugar, enquanto os comunistas de todos os países (inclusive o próprio Lênin) acreditaram na iminência de uma revolução mundial, o exército russo significou para eles a mesma coisa que o exército do tsar Nicolau I havia significado para os grupos reacionários durante o segundo cartel do século XIX. Note-se que os comunistas abandonaram o antimilitarismo e o não intervencionismo com a mesma facilidade com que haviam abandonado a democracia. SCHUMPETER 2017, página486

É interessante constatar em SCHUMPETER 2017, apesar das profundas divergências com Marx, a presença em suas construções de um profundo respeito não apenas por algumas assertivas do pensador alemão, mas pela estrutura de sua mensagem.

"Pelo contrário, podemos acreditar que ela é um poder das trevas; podemos considera-la fundamentalmente errada e dela discordar em muitos pontos particulares. No caso do sistema marxista, esses julgamentos adversos ou mesmo a reprovação correta, pela sua própria incapacidade de ferir mortalmente, só servem para ressaltar a força de sua estrutura." SCHUMPETER 2017 página17

E, mais na frente no texto, em suas considerações sobre a caracterização de Marx, não como economista, e muito menos como profeta, mas como sociólogo considero que SCHUMPETER 2017 limita de forma correta, o problema;

"Ao perpetrar o crime e falar no Marx sociólogo depois do Marx profeta, não pretendo negar nem a presença de uma unidade de visão social que consegue dar a sua obra certa medida de unidade analítica e, mais ainda, uma aparência de unidade, nem o fato de o autor ter correlacionado cada parte dela, ainda que intrinsecamente independente, com todas as demais. Não obstante, em cada província do vasto reino, há independência bastante para possibilitar ao estudioso aceitar os frutos de seu trabalho em uma delas e rejeitá-los em outra." SCHUMPETER 2017 página25

Essa me parece uma questão central no pensamento de Marx, a partir da diversidade de suas abordagens sejam filosóficas, econômicas, ou sociológicas há uma estrutura compartilhada que lhe confere uma incrível potência. Ela me parece corretamente colocada, pelos cortes propostos por SCHUMPETER, tanto no Marx profeta, quanto no sociólogo. Pois aí, me parece estar colocado o núcleo de seu pensamento. De um lado, o profeta, expresso em sua décima primeira tese sobre o filósofo materialista Feuerbach; a filosofia se restringiu até Marx em interpretar o mundo, enquanto seu interesse era de modifica-lo. E, de outro, o sociólogo, que ao analisar o sistema de funcionamento da sociedade identificou um agente, que era o maior prejudicado - o proletário - que passa a ser investido em sua identidade, construindo sua auto estima econômica e cultural. Ambos os autores, portanto investem fortemente num sistema dinâmico de pensamento, SCUMPETER 2017 se colocava contra o modelo do equilíbrio competitivo formulado pelo economista francês Léon Walras, enquanto Marx celebrou de certa forma o capitalismo por sua capacidade de revolucionar o mundo*.

De certa forma, o equilíbrio criticado por SCHUMPETER 2017 é ainda o paradigma dominante identificado numa impossível estabilidade entre oferta e demanda, a concorrência perfeita, que era e ainda é a crença dos economistas liberais. Os ciclos ou os períodos de depressão, que historicamente se sucedem na história do capitalismo, sejam determinados pela questão da destruição criativa, que impunha a presença do monopólio, ou pelo decréscimo da taxa de lucros foram e são desconsiderados pelo pensamento liberal. SCHUMPETER 2017 vincula fortemente estrutura industrial e o ritmo de inovação tecnológica, considerando-os como forças determinantes do funcionamento do sistema concorrencial. Mas por outro lado, esse ritmo da inovação tecnológica exigia a estruturação de monopólio para que a inovação alcançasse seu justo retorno financeiro, antes de ser substituída por outra. Essa forma de operar acaba determinando que as empresas destinem recursos consideráveis para barrar tecnologias emergentes, se concentrando na criação de barreiras socialmente produtivas à tecnologia, ou ao bem comum. O caso contemporâneo da Microsoft, ou da Apple, ou mesmo, a apropriação dos avanços tecnológicos pelo sistema financeiro internacional talvez sejam a representação mais palpável do paradigma construído por SCHUMPETER 2017, em torno do monopólio ou da cristalização da prática rentista. A pergunta colocada pelo economista Joseph E. Stiglitz no prefácio do livro me parece a mais adequada para nosso mundo contemporâneo;

"Schumpeter fala nas virtudes do capitalismo ao promover a inovação. Parece menos preocupado com os monopólios - em todo caso, eles seriam temporários, já que a inovação leva um monopolista a ser substituído por outro. Mas a economia trata da escassez de recursos, e a pergunta natural de um economista é: ela aloca recursos para a inovação de maneira eficaz? Não é uma crítica a Schumpeter dizer que ele não respondeu plenamente a essa pergunta ou que as respostas que a sua discussão sugere não são totalmente corretas: ele estava lançando um "modelo" de capitalismo diferente do modelo do equilíbrio que prevalecia havia muito tempo." STIGLITZ, Joseph E. na Introdução do SCUMPETER 2017 página9, grifos meus

De qualquer maneira, o que hoje parece claro para todos é que o otimismo de SCHUMPETER 2017 com a proposição de interpretação do capitalismo como sistema dinâmico, e que ele promoveria maior benefício para todos os cidadãos, não é mais convincente, pela ausência de um elemento presente em seu tempo, que era a operação do socialismo real ou burocrático. Uma presença, que hoje pode ser a comprovação de que o sistema capitalista distribui melhor as benfeitorias, na medida em que estava ameaçado por um modelo alternativo, o socialismo real. Tal configuração pode ser observada, se nos debruçamos sobre os indices de distribuição de renda, dos países centrais do capitalismo, no período da ameaça pelo socialismo burocrático. Nos EUA, no período de 1910-20, a renda dos 10% mais ricos representava entre 45% e 50% da renda nacional. Essa porcentagem cai para 35% em 1950, chegando a 33% em 1970. A partir daí se reverte essa tendência nos anos noventa, e retorna aos níveis de 1910-20 (45% a 50%), quando alcançamos os anos entre 2000 e 2010. No Brasil, um país da semi-periferia do capital, a terrível distribuição de renda consegue ser ainda pior, segundo relatório do insuspeito Boston Consulting Group, publicado na Folha de São Paulo em 13 de janeiro de 2008, declarava que o país tinha ganhado 60 mil novos milionários em 2007, totalizando um grupo de 160 mil pessoas com patrimônio de US$675 bilhões, ou cerca de metade do PIB brasileiro, que corresponde a assustadora marca de 0,08% de nossa população, que simplesmente monopoliza a metade de nosso PIB.

É bastante interessante o desenvolvimento do raciocínio de SCHUMPETER 2017, no que se refere à teoria marxista do imperialismo e sua conexão com o declínio das taxas de lucro, que sempre foi uma tendência do sistema como um todo, constantemente negado pelos neoliberais. Aqui o autor celebra o dinamismo do sistema, assim como Marx, discordando desse apenas da sua pretensão de estabilização pela via da estatização dos empreendimentos, ou do socialismo. A expansão capitalista pelo mundo determina uma diferenciação, onde os já industrializados não defendem mais o protecionismo estatal, enquanto os periféricos e semi-periféricos precisam proteger sua produção;


"Como, por um lado, a sociedade capitalista não pode existir e o seu sistema econômico não pode funcionar sem lucros, e como, por outro, os lucros são eliminados constantemente pelo próprio funcionamento do sistema, o esforço incessante para mantê-los vivos passa a ser o objetivo central da classe capitalista. A acumulação acompanhada pela mudança qualitativa da composição do capital é, como vimos, um remédio que, embora alivie momentaneamente a situação do capitalista individual, a torna pior no fim. Assim, cedendo à pressão da taxa de lucro decrescente - recordemos que ela decresce tanto porque o capital constante aumenta relativamente ao capital variável quanto porque, se os salários tendem a subir, e as jornadas de trabalho, a diminuir, a taxa de mais valia declina - , o capital procura saída nos países em que ainda é possível explorar o trabalho à vontade e em que o processo de mecanização ainda não avançou." SCHUMPETER 2017 página77

A questão do mundo contemporâneo me parece mudou de paradigma, apesar de anunciada por SCHUMPETER 2017 na ansiedade incessante de acompanhar o progresso tecnológico, hoje em dia o lucro produtivo passou a demandar a financeirização contínua da acumulação, lançando-nos num presente contínuo, onde quem mais ganha são os que manipulam os juros. A dominância financeira acabou gerando competição entre lucro e juro, onde me parece o segundo com a desregulamentação neo liberal vem ganhando a competição, impondo também uma perigosa criminalização da política. A acumulação pela via do capital produtivo decresce claramente em sua capacidade, enquanto o investimento rentista passa cada vez mais a representar uma forma perversa de gerar mais concentração de renda. Afinal dinheiro passa a gerar dinheiro, sem passar pela produção. Enfim, a barbárie bate a nossa porta**.

NOTAS:

* Acho que o único autor que identificou de forma correta essa celebração de Marx do sistema capitalista foi Marshall Berman, na expressão "Tudo que é sólido desmancha no ar", que era o título de seu livro.

** Quando no tempo de Schumpeter, o socialismo permanecia uma opção acessível pela via democrática, houve a formulação da proposição "socialismo ou barbárie", que hoje se metamorfoseou em democracia ou barbárie, numa radicalização dos processos de participação e consulta.

BIBLIOGRAFIA:

SCHUMPETER, Joseph A - Capitalismo, socialismo e democracia - Editora UNESP São Paulo 2017