quinta-feira, 14 de outubro de 2021

A economia compartilhada ou capitalismo de plataforma e um Karl Marx prescritivo, ou a dimensão propositiva da filosofia da práxis

Capitalismo de Plataforma; ineditismo ou permanência
da lógica de acumulação capitalista?


"Quem quer que conheça qualquer coisa da história sabe que as grandes mudanças sociais são impossíveis sem o fermento feminino." MARX 1969, citado em NETTO 2020, página240

Dissemina-se no mundo contemporâneo a ideia de que o advento das plataformas de software, que se instalaram mediando nosso acesso a serviços ou a mercadorias possui um caráter disruptivo. Compartilha-se de uma visão idílica da chamada economia compartilhada, como se esta estabelecesse relações diretas entre as pessoas. O próprio nome, economia compartilhada parece desfrutar de um status que o afasta das inexoráveis tendências monopolistas e concentradoras que o sistema do capital promove, desde sua primeira aparição. Parte-se do pressuposto de que a economia compartilhada ou capitalismo de plataforma oferece possibilidades disruptivas, quando na verdade, ela mantém e celebra o status quo da competição e do individualismo exacerbado, típicos do neo liberalismo dominante. Expressões como; "as plataformas vieram para ficar" ou "não parecem ceder ao seu próprio desenvolvimento" nos indicam a condição de inevitabilidade do desenvolvimento tecnológico como algo autônomo e inexorável, que está acima das escolhas humanas. Sua casualidade é múltipla, mas seu desenvolvimento se atrela a uma evolução científica autônoma, neutra e pulverizada, impossível de ser domesticada, ou isenta de interesses, muito além da vontade dos homens comuns. Mesmo autores críticos, como ZUBOFF 2020, que identificou uma condição "superdescritiva e subteorizada" (1) da nossa sociedade contemporânea, ou STANDING 2013 que apontou um novo agente, "o precariado" (2), nesse nosso tempo apontam ambos, uma situação sem precedentes, um fenômeno inédito. Será que são mesmo sem precedentes? No entanto, a economia compartilhada pode ser responsabilizada pela mais nova crise do sistema capitalista internacional, lançando meios de distribuição e indústria numa encruzilhada na qual o que está em jogo é um novo arrocho na remuneração do trabalho, ou uma clara clivagem entre proprietários e despossuídos. Assim como em outros tempos, os ganhos se concentram em grandes corporações monopolistas, tais como; Google, Facebook, Amazon, AirBnb, Uber, etc, que não toleram a competição. Estruturas que muitas vezes podem até  terem sido concebidas à margem do capital, mas que ao serem monetizadas passam a servir e a alavancar mais concentração e mais desigualdade. Interessante assinalar, que Karl Marx (1818-1883) já referia-se ao caráter social, a que o capital poderia ser alçado, através de seus meios, principalmente pelo seu sistema de valoração das moedas, ou sistema de crédito, ou o sistema financeiro;

"...só se consuma e se realiza integralmente mediante o desenvolvimento pleno dos sistemas de crédito e bancário. Por outro lado, esse sistema segue seu próprio desenvolvimento. Oferece aos capitalistas industriais e comerciais todo o capital disponível da sociedade, inclusive o capital potencial, ainda não ativamente comprometido, de modo que nem o prestamista nem quem emprega esse capital é seu proprietário ou seu produtor. Com isso, ele suprime o caráter privado do capital e, assim, contém em si, somente em si, a supressão do próprio capital. Por meio do sistema bancário, a distribuição do capital é retirada das mãos dos capitalistas particulares e dos usuários como um negócio especial, como função social. Ao mesmo tempo, porém, o banco e o crédito se convertem no meio mais poderoso de impulsionar a produção capitalista para além dos seus próprios limites e um dos mais eficazes promotores das crises e da fraude.[...]

Finalmente, não resta a menor dúvida de que o sistema de crédito servirá como uma poderosa alavanca durante a transição do modo de produção capitalista para o modo de produção do trabalho associado; mas somente em conexão com outras revoluções orgânicas do próprio modo de produção... Assim que os meios de produção deixarem de se transformar em capital [...], o crédito como tal perderá todo sentido [...]. Em contrapartida, enquanto o modo de produção capitalista continuar a existir, perdurará também, como uma de suas formas, o capital portador de juros." NETTO 2020 páginas 383 e 384, citando Karl Marx

Interessante destacar, no pensamento marxista a identificação de crises cíclicas destrutivas, que promovem um rearranjo das forças produtivas que calibravam tendências sempre presentes de declínio das taxas de lucros, superconsumo ou de superprodução. Como a economia capitalista não é planejada por demandas distributivas ou sociais, mas a partir da lógica da competição e da concentração de recursos nas mãos de poucos agentes. Sempre, há em toda crise do sistema econômico em geral um deliberado interesse claramente vinculado aos proprietários do dinheiro ou dos meios de produção para buscar o saneamento das amarras do lucro. Penso, que foi BRAUDEL, que percebeu a partir de seus estudos da longa transição entre o feudalismo e o capitalismo, que o último estágio das crises cíclicas era uma crise especulativa, aonde a forma monetária ou financeira se autonomizava com relação a produção. Essa autonomia retirava do sistema de Bolsa de Valores e do sistema de crédito qualquer racionalidade produtiva, capturando-o num processo especulativo, que não se vincula mais a produção em si, mas a mera possibilidade de auto reprodução das moedas. O dinheiro, perde sua função de facilitador da troca para se metamorfosear numa mercadoria regulada por sua capacidade de ser procurada (valorizada), ou descartada (subvalorizada). Mas, não há como negar, que já em MARX, quando ainda jovem em meados do século XIX já identificava-se essa tendência no sistema capitalista de retorno a constante crise de forma quase otimista;

"A universalidade para a qual o capital tende irresistivelmente encontra barreiras em sua própria natureza, barreiras que, em um determinado nível de seu desenvolvimento, permitirão reconhecer o próprio capital como a maior barreira a essa tendência e, por isso, tenderão a sua superação por ele mesmo." NETTO 2020 página 378, citando Marx nos Grundisse 

Havia no raciocínio do manchesteriano de Karl Marx, aquilo que Marshal Bermann muito bem captou no livro Tudo que é sólido desmancha no ar, que era uma crença na capacidade intrínseca do capital para o desenvolvimento das forças produtivas do trabalho de maneira inusitada. Dentro de um otimismo típico do século XIX, notava-se o germe da teleologia de Hegel, despida agora de seu idealismo e centrada na experiência material e concreta dos despossuídos, mas ainda assim, crente num aprimoramento positivo da humanidade. Sempre, a partir da experiência acumulativa da história em direção a um futuro grandioso e redimido, centrado no fenômeno da produção do trabalho e na conscientização dos desapropriados, que acabariam impondo a cooperação e a solidariedade no seio da humanidade. Mas apesar desse otimismo, Marx nunca afirmou a inevitabilidade da revolução, que em seu pensamento dependia fortemente da intervenção política organizada dos prejudicados/despossuídos da humanidade. O tema do confronto definitivo entre as classes sociais mostrou-se ao longo da história do século XX, particularmente a partir de 1917, com a Revolução Russa, perpassado por nuances e gradientes, que na verdade significaram um período de grande desenvolvimento e de ascensão das massas a padrões melhores de consumo. Aparecia para a geração de meados do século XX (1950), a geração pós segunda guerra, que o incremento produtivo e o desenvolvimento das forças produtivas eram fator de um progresso e desenvolvimento contínuos e inabaláveis. No entanto, na década de setenta nos confrontamos com a primeira crise do petróleo, o sistema que parecia haver se regenerado a partir da regulação fordista e keynesiana (3), e da ameaça da revolução socialista enfrenta uma crise sem precedentes, que desemboca nas eleições de Thatcher 1979 e Reagan 1981. Os discursos por trás dessas eleições seduziam pelo apelo a uma desregulamentação generalizada, que condenava a estabilidade do fordismo e a regulamentação financeira do Estado, como bloqueadores do legítimo desenvolvimento, num esforço de esquecimento do que havia sido a grave crise de 1929 da Bolsa de Valores de Nova York. Essa crise havia interrompido a confiança no liberalismo, desenfreado do século XIX e começo do século XX, e sinalizado para necessidade de regulação estatal da economia, face as suas tendências monopolistas e concentradoras, que determinaram movimentos sociais explosivos, como os de Paris em 1871 e o de Moscou de 1917, dentre outros.

"'Globalização' é uma forma de nomear as forças que exauriram a velha ordem - é uma palavra que pode significar tudo, mas relaciona-se de várias maneiras com a transformação social das instituições. No início da década de 1980, uma enorme demanda reprimida por produtos e serviços tornou-se aparente em todo o mundo. Havia uma grande quantidade de capital em busca de alvos de oportunidade depois da quebra, em 1973, dos controles de Bretton Woods sobre a movimentação monetária... As inovações tecnológicas, através do computador, possibilitaram o 'tempo real global', a sincronia das comunicações e das transações financeiras em todo o mundo... Por fim, e talvez mais importante, houve uma mudança no poder: os acionistas começaram a reafirmar as exigências por retornos de curto prazo sobre o investimento, desafiando burocratas gerenciais que se contentavam com que as coisas simplesmente se arrastassem como antes.(4)" SENNETT 2004 páginas 208 e 209

Enfim, o que me parece importante destacar aqui nesse texto é que mais uma vez o sistema se trasveste de novidade para continuar repetindo o mesmo, a acumulação do capital retrocede as suas condições primitivas, maravilhando a sociedade que se lança no precipício. Particularmente, as cidades e suas arquiteturas passam a ser pressionadas para a realização de lucros rápidos e quase imediatos, que confrontam a construção do patrimônio comum construído pela humanidade. Essa mesma, humanidade se confronta com a questão ambiental, que demanda dela atitudes de efetiva mudança do poder político, no qual é preciso declarar não mais a exclusão de parcelas significativas de nossa população, mas sua inclusão massiva e extensiva. Sob pena, de nos orientarmos para nossa auto extinção. A citação no início desse artigo, mostra-nos a fala de um homem do século XIX, Karl Marx, sobre a atuação das mulheres no impulso da transformação humana, talvez um pouco paternalista, ou até mesmo culinária, mas ela nos lembra apenas, que a novidade não deve ser absolutizada, mas confrontada com o contexto geral contemporâneo, que permanece o mesmo.

Notas:

(1) ZUBOFF 2020 página83, menciona; "Com tanta verborragia, esses desenvolvimentos são ao mesmo tempo superdescritivos e subteorizados... Qualquer confrontação com a situação sem precedentes requer um léxico novo, e introduzo novos termos quando a linguagem existente falha em capturar um fenômeno inédito."

(2) STANDING 2013, emerge na página164, CAVALCANTE e FILGUEIRAS in ANTUNES (org.) 2020; "As características desse 'novo mundo do trabalho', ainda que tomadas de maneira crítica, também informam a análise de Guy Standing. Segundo o autor, o mundo está passando por uma 'transformação global', análoga à 'grande transformação' identificada por Karl Polanyi.'

(3) O argumento está em ARRIGHI 1996 e também em SENNETT 2003 de declínio do Welfare State e do mundo regulado pelo fordismo e keynesianismo.

(4) Nesse ponto do texto SENNETT 2004 página 209 puxa uma chamada para o livro da Cidade Global de Saskia Sachen, mostrando-nos como a ansiosa pressão dos acionistas pela materialização de lucros rápidos impactam o desenvolvimento das cidades contemporâneas.

Bibliografia:

ANTUNES, Ricardo (org.), CAVALCANTE, Sávio e FILGUEIRAS, Vitor - Um novo adeus a classe operária? - Editôra Boitempo São Paulo 2020

ARRIGHI, Giovanni - O longo século XX, dinheiro, poder e as origens do nosso tempo - editora Unesp São Paulo 1996

BERMAN, Marshal - Tudo que é sólido desmancha no ar, a aventura da modernidade - Editora Companhia das Letras São Paulo 1994

NETTO, José Paulo - Karl Marx: uma biografia - Editora Boitempo São Paulo 2020

SENNETT, Richard - Respeito a formação do caráter em mundo desigual - Editora Record Rio de Janeiro 2004

ZUBOFF, Shoshana - A era do capitalismo de vigilância; a luta por um futuro humano na nova fronteira do poder - Editôra Intrínseca Rio de Janeiro 2020