domingo, 20 de novembro de 2022

Arquitetos Soviéticos e o "Concurso de Camaradagem" em 1926

Capa do álbum publicado pelo Stroykom em 1929, Tipos de Projetos e Normas para Construção de Habitação, Recomendado para o ano de 1930


Recentemente uma exposição montada no casarão da Escola de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal Fluminense (EAU-UFF), na cidade de Niterói no bairro de São Domingos mostrou nos um concurso de arquitetura em torno do tema do Conjunto Habitacional, que reuniu oito trabalhos notáveis, na URSS no ano de 1926. Montada com o apoio das professoras Cristina Nacif e Adriana Caúla, a exposição é uma notável oportunidade para refletir sobre a forma com que o Brasil e a nossa contemporaneidade vêm produzindo Habitação de Interesse Social (HIS) de uma maneira meramente quantitativa, sem qualquer consideração pela qualidade e pela diversidade das demandas dos diversos perfis familiares existentes. Além disto, a política habitacional é potencialmente conformadora da política urbana, uma vez que a demanda por moradia chega a 80% dentre os diferentes usos que estão na cidade, construir moradia é conformar o território urbano. Em 1926, nove anos apenas depois da tomada do poder pelos bolcheviques (Outubro de 1917), o "Concurso da Camaradagem", foi lançado pela Associação de Arquitetos Contemporâneos (OSA), onde constava a demanda aos concorrentes, tanto na escala íntima da família quanto na vida condominial, de que fosse incentivado novas relações de cooperação e incentiva-se a libertação das mulheres dos serviços de reprodução da vida, como alimentação e cuidados com a prole e os mais idosos. A compreensão do ambiente construído como um condensador social era compartilhada por grande parte da OSA, e havia sensibilizado grande parte do aparato estatal soviético. Além disto, a denominação do concurso é emblemática e deve ser destacada, apontando claramente para a instituição de novas práticas entre os arquitetos, que não deveriam se restringir a competição, mas incentivar e celebrar a cooperação e a camaradagem, uma vez que inerentemente, os concursos além do embate, envolvem também o intercâmbio e a divulgação de soluções variadas. No edital do Concurso de Camaradagem havia também claramente a demanda por um experimentalismo, de fomento a novas articulações da vida cotidiana, incentivando o associativismo cooperativo entre os moradores e usuários, como forma de transformação do cotidiano.

“Em 1926, os principais teóricos da Associação de Arquitetos Contemporâneos (OSA) anunciaram um “Comradely Competition for Preliminary Design of Housing for Workers”. O resumo do concurso, publicado na terceira edição do jornal da associação Sovremennaya Arkhitektura (SA), pedia o desenvolvimento de novas tipologias residenciais. O objetivo declarado não era meramente resolver a escassez de moradias para trabalhadores na União Soviética, mas, mais importante, facilitar “novas relações que caiam sob a noção de comunidade” (Ginzburg et al. 1926a; tradução do autor). É claro que houve esforços anteriores para abordar a questão premente da habitação. Mas o Comradely Competition (a Competição da Camaradagem) foi o primeiro a desenvolver sistematicamente soluções inovadoras tanto na escala da unidade habitacional individual quanto na escala da construção residencial, em uma tentativa deliberada de ajudar na emancipação das mulheres. Sua intenção era redefinir não apenas a natureza da “família socialista”, mas também a relação entre individual e coletivo, de forma mais ampla. Apenas alguns dos projetos de vanguarda que procuravam abordar a migração de populações rurais para as cidades em rápida expansão durante os anos da Nova Política Econômica NEP (1921-28) foram realmente implementados. logo após a Primeira Guerra Mundial e a revolução de 1917, os trabalhadores e suas famílias foram inicialmente realojados em habitações existentes que, até então, eram casas burguesas unifamiliares. apartamentos - resultado da nacionalização da terra e da abolição da propriedade - poderiam, na melhor das hipóteses, fornecer uma solução temporária para as precárias condições de vida dos trabalhadores em cidades como Moscou ou São Petersburgo, onde as empresas industriais eram tipicamente concentradas.” MOVIDA 2020, tradução minha do inglês 

A utilização do parque imobiliário existente em Moscou e São Petersburgo, obtido pela nacionalização da propriedade privada acomodou parcela expressiva da população operária, mas demandava inevitavelmente pequenas reformas e transformações nas habitações unifamiliares que se transformavam em condomínios de apartamentos. As soluções do Concurso de Camaradagem trazem uma grande variedade de plantas e arranjos de unidades, apesar de ter como premissa básica a celebração da padronização típica do industrialismo, então uma ideologia hegemônica no mundo nos anos 1920s e na URSS de então. O conceito que considerava a arquitetura e o urbanismo como "Condensadores Sociais" envolvia a questão do fomento e direcionamento a formas de vida no cotidiano pautadas pela cooperação e colaboração, que seriam impulsionadas pela espacialidade está amplamente materializado nas propostas. A questão da espacialidade condicionando a vida cotidiana, ou sendo condicionada por ela é muito antiga no campo da arquitetura e urbanismo, e mobilizou as sensibilidades; suprematistas, construtivistas, formalistas, futuristas da URSS de então. Hoje esta atitude é considerada como decorrente de uma utopia autoritária, que o modernismo engendrou na busca e na formulação do homem novo. O debate transbordava para a gênese da linguagem, impulsionado pelas propostas da Nova Objetividade, que afastava os posicionamentos romântico-decadentes do personalismo isolado e exarcebado da arte burguesa e procurava alcançar ou dar protagonismo ao proletariado ou ao coletivo. Segundo TAFURI 1989 afirma com razão, a utopia regressiva do modernismo baseava-se na específica "ideologia do plano", de um plano de suporte formal e simbólico à máquina produtivista, seja capitalista ou socialista dos anos 20. Num texto, ao mesmo tempo esclarecedor e pessimista, o crítico italiano - El socialismo realizado y la crisis de las vanguardias - localiza as estratégias mercantis para absorver as vicissitudes das vanguardas históricas, na conceituação da "destruição criativa" (1). Note-se, que o rigor da categorização tafuriana já está emblematicamente expressa no título, que caracteriza corretamente como "socialismo realizado" a experiência da URSS, que nem por isto deixa de ser ajuizada como um experimentalismo valoroso, ao propor o enfrentamento da "questão da habitação" (2). 

“Na URSS, tendo como pano de fundo a mudança política e a instabilidade social na década de 1920, a questão da habitação para as massas foi abordada pela Associação de Arquitetos Contemporâneos (OSA), sob a liderança de Moisey Ginzburg. A sua missão não era apenas dar uma solução à falta de alojamento nas grandes cidades do país, mas redefinir a habitação como um enquadramento adequado a uma sociedade em transição para uma vida plenamente socializada. A resposta foi desenvolvida em três etapas de pesquisa em design, durante um período de cinco anos. A fase conceitual inicial foi formalmente apresentada pelos membros da OSA no Concurso de Camaradagens de 1926, e se concentrou na questão habitacional, com projetos específicos para casas comunais. A segunda etapa girou em torno da pesquisa científica e metodológica do Stroykom, desenvolvida em paralelo com os projetos para as novas unidades de vida comunitária. A etapa final tomou forma material em oito edifícios específicos, conhecidos como casas experimentais do tipo transicional. Um deles, o Narkomfin, ganhou reconhecimento mundial como um protótipo moderno de habitação de vanguarda soviética e tem sido amplamente pesquisado como resultado. No entanto, até o momento nenhum estudo abordou todas as três fases com igual escrutínio e metodologia.” MOVILLA 2020 tradução minha do inglês

O texto de MOVILLA 2022 destaca, além do nome já sublinhado aqui, Concurso de Camaradagem, o acompanhamento das experiências como "casas experimentais do tipo transicional", o que denota que o certame monitoraria os resultados em seus fracassos e sucessos vigiando o processo pós ocupação. O conjunto do Narkomfin (1928-32), dos arquitetos Mosey Guinsburg (1896-1942) e Ignatti Millinis (1899-1974), mencionado pela mesma autora é um representante destacado do esforço da arquitetura modernista, dentro da questão da habitação. Todos tinham consciência, de que se testava uma vida plenamente socializada, e que, as experiências dependiam da gestão e da auto-organização das estruturas condominiais no longo prazo. A partir do Narkomfin, os conjuntos habitacionais testaram estruturas comuns em diferentes partes do mundo, tais como; Carl Liegen Stadt em Berlim (1928-30), arquiteto Bruno Taut (3), Conjunto do Pedregulho, Rio de Janeiro (1946) arquiteto Afonso Eduardo Reidy, Unidade de habitação de Marselha (1951), arquiteto Le Corbusier, dentre outros. O fato destes equipamentos não terem sido aceitos em muitas destas estruturas passou a ser interpretado, como a comprovação da vertente autoritária da ideologia moderna, notadamente pela geração dos anos 60s. Mas, o que deve ser pensado é que a política habitacional, de qualquer tempo, deve ser pensada como uma continuidade, onde deve-se monitorar a superação das fragilidades econômicas das famílias envolvidas, impulsionando sua auto sustentação. Neste sentido, as proposições do Concurso de Camaradagem da OSA de 1926 são um exemplo para os impasses e dificuldades do nosso tempo contemporâneo, na construção de uma política habitacional consistente e estruturada. Abaixo apresenta-se os oito projetos, que foram selecionados pelo concurso, e que fazem parte da exposição da Arquitetura Soviética na EAU-UFF, com os arquitetos responsáveis.


É notável nos oito projetos a construção da legibilidade da estrutura condominial na sua inserção na cidade, as articulações entre os núcleos de circulação vertical (escadas comuns) e a estrutura urbana é claramente pensada a partir da premissa de oferecer aos futuros usuários uma compreensão socialmente clara e legível, não só para os moradores, mas também para os eventuais visitantes. Há uma importante reflexão sobre a escala de vizinhança imediata das estruturas, figurando uma clara predominância pelo tipo de duas unidades por andar, o que determina uma boa ventilação cruzada para todas as unidades, além de uma dimensão desmassificada. Paradoxalmente, estas características não eliminam a premissa genérica que todos os projetos parecem seguir, uma filiação incondicional a uma capacidade de reprodutibilidade técnica das soluções.  Vários autores destacam a sintonia entre estas experiências da jovem URSS e uma série de administrações social-democratas da Europa Central, do entre guerras que também buscavam soluções para os graves problemas do déficit habitacional, em cidades que explodiam de tamanho. Tanto FRAMPTON 1997, quanto TAFURI 1979 denominam o conjunto destes arquitetos, como as "vanguardas centro-europeias", identificando aí o embrião do movimento moderno, e na aglutinação teórica da questão da habitação operária ou do exôdo rural o objetivo maior da sinergia dos seus pensamentos. Posicionamentos reformistas e revolucionários se digladiam em diferentes localidades, gerando um patrimônio construído notável na história da arquitetura, que pela primeira vez rompe as esferas das demandas burguesas, e de certa forma a particular condição pequeno burguesa dos arquitetos. 

O emblemático conjunto de apartamentos do Narconfim dos arquitetos Guinsburg e Milinis se insere neste contexto experimental, que interpreta a arquitetura e a cidade como "condensadores sociais" em direção a uma vida cotidiana menos competitiva e mais colaborativa. O engendramento do programa do Narconfim nos mostra os investimentos nas formas de vida comunitárias associativas e colaborativas, que claramente pretendiam induzir uma vida plena, quebrando costumes arraigados. A cozinha comunitária, a creche, a biblioteca, a academia de ginástica articuladas a diferentes arranjos de unidades habitacionais pretendem pensar a vida em seu cotidiano reequilibrando o íntimo e o social. O pensamento conservador alega sempre, que estas experiências fracassaram que grande parte dos espaços comunitários foram subutilizados; seja no Narconfim (1928-32) de Guinzburg e Millinis, ou no Carl Liegen Stadt em Berlim (1928-30), do arquiteto Bruno Taut, ou no Conjunto do Pedregulho, Rio de Janeiro (1946) arquiteto Afonso Eduardo Reidy, ou ainda na Unidade de Habitação de Marselha (1951), arquiteto Le Corbusier. Este pensamento está sempre procurando celebrar a dimensão competitiva da ação humana, buscando naturalizar o modo de produção capitalista, no entanto, a crise sanitária e ambiental que vivemos na contemporaneidade nos leva a pensar e clamar por mudanças de comportamentos cotidianos, que sejam mais solidários, colaborativos e comuns.

NOTAS:

(1) A categoria da "destruição criativa" não é de TAFURI 1981, mas me parece ser de SCHUMPETER 2017, para caracterizar uma ansiosa destruição superficial, mantendo-se os fundamentos do sistema intocados. 
(2) A questão da habitação será abordada por ENGELS já em 1873, num texto Sobre a questão da moradia publicado originalmente no jornal Der Volksstaat, órgão do Partido Social Democrata Alemão, em resposta a um texto do médico alemão Arthur Mülberger, que era influenciado pelas ideias do socialismo pequeno-burguês de Pierre Joseph Prodhon. Segundo ENGELS 2015 página8, "Seduzir os trabalhadores com a utopia burguesa de que todos eles merecem uma casinha e uma hortinha para chamar de suas é uma maneira ardilosa de prendê-los a terra, ao método antiquado da produção individual e do trabalho manual."
(3) O Conjunto Carl Liegen Stadt, do arquiteto Bruno Taut está localizado em Prenzlauer Berg na Berlim Oriental, e teve alguns de seus equipamentos comuns, como suas lavanderias transformados em pequenos locais de exposição sobre a Arquitetura Moderna, num didatismo que explicita a conceituação de "condensador social" dos arquitetos soviéticos. 

BIBLIOGRAFIA:

ENGELS, Friedrich - Sobre a questão da moradia - Editôra Boitempo São Paulo 2015

FRAMPTON, Kenneth - História crítica da arquitetura moderna - Editôra Martins Fontes São Paulo 1997

MOVILLA, Vega -  Housing and Revolution: From the Dom-Kommuna to the Transitional Type of Experimental House (1926–30) - Edition Architectural Histories, 8(1), p.2. DOI: http://doi.org/10.5334/ah.264 acesso em outubro de 2022

SCHUMPETER, Joseph A. - Capitalismo, socialismo e democracia - Editora da UNESP São Paulo 2017

TAFURI, Manfredo - Teorias e História da Arquitetura - Editorial Presença Lisboa 1979

TAFURI, Manfredo - El socialismo realizado y la crisis de las vanguardias - Visor Libros Madrid 1973