domingo, 4 de dezembro de 2016

O judiciário no Brasil e a questão central do acesso diferenciado à oportunidades nas sociedades contemporâneas

Gastos do Poder Judiciário em comparação a outros países. Gráfico retirado
de SOUZA 2016 página15
Um dos desafios das sociedades modernas contemporâneas é garantir uma certa aparência na equidade da distribuição das oportunidades entre os diferentes extratos sociais, isso é um fato tanto nas sociedades centrais, assim como nas periféricas, do desenvolvimento capitalista. Uma certa equidade na distribuição daquilo que Pierre Bordieau conceituou como Distinção socialmente reconhecida, que envolve a posse de capitais, tais como; econômico, cultural e social. Aqui capital não se restringe a ser uma categoria econômica, mas inclui tudo que garante o acesso aos bens e recursos em disputa na competição social. O sociólogo francês se afasta do economicismo simplificador, caracterizando Distinção como um condicionamento socialmente instalado, que diferencia os seres humanos em função do incremento ou declínio do capital herdado. Bourdieu trabalha com os conceitos de capital herdado e capital desenvolvido, a partir de pré-condições simbólicas que estão mais disponíveis para as classes mais privilegiadas e para a classe média, e muitas vezes ausentes nas classes precarizadas do capitalismo contemporâneo. O capital simbólico de um indivíduo seria; o acesso a cultura, o bom gosto, uma certa sensibilidade no trato social, um refinamento nas maneiras de agir.

Por outro lado, há uma construção simbólica hegemônica no mundo contemporâneo, que identifica num indivíduo anglo-saxão e protestante genérico o paradigma da eficiência e do máximo de utilitarismo do sistema capitalista. Segundo Jessé Souza, tal visão deve a sua construção a Max Weber, que já teve dois textos comentados aqui no blog, exatamente sobre o seu livro "A ética protestante e o "espírito" do capitalismo", que desenvolve exatamente esse aspecto;.

"A grande maioria das versões apologéticas do sujeito liberal nutre-se com fundamento empírico na história da pujança econômica e política norte-americana, em maior ou menor grau, na figura do pioneiro protestante weberiano." SOUZA, 2015 página19

No entanto, é preciso também relembrar que Weber não apenas celebra mas também critica esse homem moderno, que emerge da colonização capitalista dos mundos da vida, apontando sua fragmentação, e sua incapacidade de abordar a totalidade. Para Max Weber, o indivíduo típico moderno é o especialista sem espírito, que tudo sabe a cerca de seu mundo restrito, e nada sabe sobre contextos mais amplos, que na verdade determinam seu pequeno mundo. Para se proteger dessa condição inescapável do mundo moderno, desenvolve uma atitude blasé e distante com uma busca incessante por prazeres rápidos e sem consequências. E mais, Weber não enxergava qualquer divisão entre Estado e Mercado, como grande parte dos cronistas brasileiros apontam, mas identificava a atuação decisiva do primeiro para dinamizar o segundo. E, reconhecia que a construção do aparato burocrático do Estado era fundamental para estruturar os ganhos do mercado, e pacificar entre as classes sociais a disputa pela riqueza socialmente realizada.

Há ainda no senso comum brasileiro, uma ideia equivocada, de que as sociedades mais avançadas desfrutam da efetiva possibilidade de superação dos privilégios permanentes instalados, distribuindo oportunidades de forma mais equilibrada, enquanto os países emergentes ou periféricos são dominados pela lógica do acesso restritivo e seletivo ás oportunidades, fomentando a corrupção recorrente, o compadrio, e o nepotismo. É a ideologia violenta da falsa meritocracia, que não se está descartando, mas que só é possível de ser instalada no Brasil e em outras partes do mundo, a partir do desenvolvimento de mecanismos de ampliação da transparência pública, do controle cruzado entre poderes, e claro com uma melhor distribuição de renda. Portanto, a meritocracia pressupõe uma busca constante de maior inclusão social, de forma a estabelecer uma diversidade de origens sociais, que combata a unicidade do capital herdado, e permita a presença do capital desenvolvido. Portanto, não há possibilidade de desenvolvimento da meritocracia em sociedades onde a concentração de renda assume grandes dimensões.

O genial Nelson Rodrigues, apontava um traço da psicologia nacional, no complexo de vira-lata do brasileiro, que determinava uma constante minoridade na auto-avaliação própria frente a outras nacionalidades. O juiz Sérgio Moro cultua e celebra o american way of life, principalmente no que concerne a operação judicial. Realmente o aparato judicial americano pode ser considerado um dos fundamentos da democracia nos EUA, mais até do que seu sistema eleitoral, que me parece antiquado e conservador, com relação ao brasileiro. Mas será que a corrupção lá é menor do que aqui, por conta da forma de atuação do judiciário? A turma dos procuradores da Lava Jato ameaça renunciar, se as propostas de maior controle dos abusos de procuradores e de juízes for aprovada no Legislativo. Mas não é exatamente esse controle cruzado que garantiria a presença da ética no complexo jurídico-policial do Brasil?

O gráfico apresentado no início desse artigo explicita muito do que está ocorrendo no Brasil, afinal a corrupção de agentes públicos não se manifesta apenas pela cooptação do mercado, mas também pelo desenvolvimento autônomo de estamentos sociais, que definem sua própria remuneração muito acima de qualquer teto do razoável. Pelo mesmo gráfico, o Brasil gasta seis vezes mais com Justiça do que os EUA, e no entanto nossa justiça não é mais eficiente do que a americana em seis vezes.

Há no Brasil duas castas sociais, o legislativo e o judiciário, que recebem recursos do Estado muito acima do praticado em outros países. Isso também é corrupção, mesmo quando representa para parcelas significativas de nossa população, uma certa Distinção, no sentido conferido por BOURDIER, 2007. Afinal, o aparato jurídico policial no Brasil conquistou essas benesses a partir da organização corporativa de seus interesses e da pressão por melhores rendimentos, frente a outros funcionários públicos, como professores, médicos, arquitetos, etc...

No mesmo sentido, a veneração do pioneiro americano protestante como a figura emblemática de eficiência capitalista, culto declarado da República de Curitiba, também envolve uma alienação; de um ser cioso de sua especialidade, mas que não enxerga um palmo para além dela. Enfim, um alienado das consequências reais de seus atos e de suas práticas, um tarefeiro cego, sem plano ou projeto para o país que habita.

Ainda nesse mesmo aspecto, é importante entender que o discurso de endemonização do Estado, e de celebração das virtudes do Mercado, como entidades ou atitudes mutuamente excludentes, não nos ajuda a entender a real dimensão da corrupção, que opera nas duas esferas. Afinal, a impunidade de altos funcionários do sistema financeiro privado-internacional, nas sucessivas crises rentistas por que passou o sistema do capital, a partir de 2008, comprovam como variados Estados tem sido condescendentes com esses agentes, que privatizaram recursos públicos de forma indecente.(1)

E, por último, a questão da meritocracia, uma qualidade tão associada em nossa recente história ao judiciário, mas que num país com a nossa clivagem social violenta representa um potencial perigo a ampliação das oportunidades. O desenvolvimento de uma maior equidade entre nós é fundamental, e só poderá ser atingido com políticas públicas, que incentivem a educação, a saúde e o bem estar espacial e social, que foram timidamente promovidas pelos últimos governos de esquerda.

Afinal, não se deve jogar a criança fora, junto com a água suja de seu banho...

Notas:

(1) Para uma compreensão apurada de como recursos de tributos públicos fora transferidos para bancos privados nas recentes crises hipotecárias nos EUA, na Espanha e no Reino Unido ver ROLNIK, Raquel - Guerra dos Lugares, a colonização da terra e da moradia na era das finanças - editora Boitempo São Paulo 2015

Bibliografia:

BOURDIEU, Pierre - Distinção, crítica social do julgamento - Edusp São Paulo 2007
SOUZA, Jessé - A tolice da inteligência brasileira: ou como o país se deixa manipular pela elite - editora Leya São Paulo 2015
SOUZA, Jessé - A radiografia do golpe - editora Leya Rio de Janeiro 2016
WEBER, Max - A ética protestante e o 'espírito' do capitalismo - Editora Companhia das Letras São Paulo 2004