sexta-feira, 6 de março de 2020

América Latina, resistência e aceitação do neo liberalismo

América Latina, resistência e aceitação do neo liberalis
Um dos maiores problemas da América Latina é uma arraigada concepção da sua mídia, dos seus intelectuais e de seus ideólogos de uma certa subalternidade, que está espelhada na ausência de destaque nos seus momentos mais criativos, legítimos de superação e construção autônoma. Em nossa história recente, a conformação de um grupo de governos democraticamente eleitos, alinhados num posicionamento contrário ao neo liberalismo, que desde o início do século XXI parece ter passado despercebido, pelos mesmos; da mídia, dos intelectuais e dos ideólogos.  Apesar de me parecer um momento particular da história, no qual os Estados Latino Americanos demonstraram uma capacidade criativa, frente a uma hegemonia de comportamento neo liberal, que solapava o mundo inteiro. Um acontecimento, que nos mostrava uma sinergia inusitada, uma confluência de objetivos, que talvez só tenha se manifestado no início do século XIX, com a emergência dos processos de independência no continente (1).  Agora, que Lula já recebeu o título de cidadão honorário de Paris, talvez os latinos americanos passem a considerar a especificidade desse momento histórico. Na verdade, a supremacia do neo liberalismo em todas as partes do mundo pode ser também entendida como a Pax Americana, uma forma de dominação e coerção, que não se manifesta apenas no econômico, mas também no social e cultural, e que se diferencia muito da forma precedente da hegemonia britânica.


"O chamado "modo de vida americano" se globalizou, com seus estilos de consumo, suas marcas e, principalmente, sua concepção central: a mercantilização da vida em todos os seus rincões, uma sociedade em que tudo é mercadoria, em que tudo tem preço, em que tudo se vende e tudo se compra." SADER 2019 página60

Ao simplesmente listarmos datas percebemos como houve uma onda de governos com posturas além do neo liberalismo, que começam com o final do século XX e início do XXI. Afinal em; 1999 Hugo Chavez foi eleito na Venezuela, em 2002 Lula no Brasil, em 2003 Nestor Kirchney na Argentina, em 2005 Tabaré Vazques no Uruguai, em 2005 Evo Morales na Bolívia e em 2006 Rafael Correa no Equador. Todos frutos de eleições majoritárias legítimas, que foram ganhas por propostas mais próximas dos posicionamentos de esquerda. É verdade, que esses governos não chegam a forjar uma identidade anti neo-liberal explícita, mas se contrapõe às posições hegemônicas das administrações que os antecederam, a partir dos duros acontecimentos determinados pelas  crises; do México, 1994, Brasil 1999 e Argentina 2001-02. Na verdade, esses governos podem ser qualificados como reformistas conservadores, uma vez que não se declaram explicitamente e principalmente no campo da macro economia, como anti neo liberais.

Segundo a concepção gramsciana, que combina fatores objetivos da história, com a capacidade de criação de narrativas aglutinadoras de consensos, contrários a mercantilização geral, parecia então estar se manifestando na América do Sul uma resistência ao neo liberalismo hegemônico no resto do mundo. É interessante assinalar a identificação de uma ruptura, sem a sua expressa explicitação, que está demonstrada pelo uso do termo por Emir Sader, no seu livro Lula e a esquerda do século XXI, com a expressão do pós-neoliberalismo. Era uma frágil renuncia do neo liberalismo, uma vez que muitos desses governos tiveram recaídas neo liberais, tais como, após a apertada vitória de Dilma Roussef sobre Aécio Neves em 2014, quando é chamado Joaquim Levy para comandar a economia do Brasil. Um ministro da economia muito mais alinhado a uma imposição única das diretrizes do governo federal; o combate ao déficit público. Segundo, o filósofo alemão Jürgen Habermas, a utilização do prefixo "pós" que de certa forma se generaliza na contemporaneidade determinando uma certa continuidade, com aquilo com que se rompe, como com o que acontece, nos termos; pós moderno, pós comunismo, pós capitalismo, etc.. Na verdade, a identidade entre esses governos pode ser expressa em alguns pontos claros, que foram defendidos e compartilhados por esses diferentes presidentes, nas suas falas, ações e políticas, tais como;

1. declínio do poder único estadounidense, com a contraposição da defesa de um mundo multipolar, combatendo os alinhamentos automáticos;
2.  prioridade a políticas redistributivas e de cunho social que combatam a desigualdade fortemente presente nessas sociedades;
3. uma certa recuperação do Estado e da sua estrutura burocrático administrativa e sua capacidade de planejar e desenhar políticas sociais;
4. relativização da questão do ajuste fiscal do Estado, que passa a admitir a possibilidade de políticas econômicas anti cíclicas para incentivo ao desenvolvimento.

As origens dessas sinergias governamentais aparecem hoje de forma mais clara pela falência, principalmente nas três economias mais importantes - México, Brasil e Argentina - na década de 90 da implantação do modelo do Consenso de Washington, no qual o controle dos gastos públicos e da inflação aparecia ser a única política a ser implementada. Era então o pensamento único, que fez com que governos de FHC no Brasil, Carlos Menem na Argentina, Rafael Caldeira na Venezuela, e outros tentassem implantar um modelo de privatizações, declínio do tamanho do Estado e ajuste fiscal severo, muitas vezes retirando recursos das políticas sociais, sem ter muito sucesso. A resistência popular mais forte a essas políticas se manifestou na Venezuela em 1989, com uma explosão ensandecida contra o aumento da tarifa de transportes públicos, exatamente no primeiro governo de Carlos Andrés Pérez, naquilo que ficou conhecido como Bogotazo. Um pouco antes dessa época (1982) houve a fundação por um ainda desconhecido oficial de esquerda do exército venezuelano, Hugo Chavez de um  movimento militar, que comemorava os 200 anos do nascimento de Símon Bolivar denominado Movimento Bolivariano Revolucionário. Além disso, sempre houve resistências variadas na América Latina a ampliação generalizada da sociedade concorrencial, como no Chile em 1970 com a eleição democrática de Allende pelo partido socialista, ou em 1979 com a Revolução Sandinista. Mas particularmente no Brasil ocorrem no declínio da Ditadura Militar; a fundação do Partido dos Trabalhadores PT (1980), a Central Única dos Trabalhadores CUT (1983) e o Movimento dos Sem Terra MST (1984).

O neoliberalismo vem se demonstrando uma política mais eficiente exatamente nas economias centrais do sistema capitalista, penalizando de forma clara as economias periféricas, como a Grécia, Portugal e outros, assim como a América Latina. Segundo Giovanni Arrighi, no seu livro O Longo Século XX, dinheiro, poder e as origens do nosso tempo, o sistema capitalista sempre teve um centro irradiador, que representava além da supremacia econômica, também um domínio social e cultural.  Na história do capitalismo, sempre a troca da base central do sistema representou um momento traumático, envolvendo guerras e conflitos variados. Particularmente a troca da Inglaterra pelos EUA foi o advento das duas grandes guerras do século XX. Foram essas duas grandes guerras, que marcaram também a grande crise de confiança no liberalismo, também hegemônico no começo do século XX, pelo menos até o crack da bolsa de Nova York. As respostas a essa grande crise podem ser classificadas em três correntes muito claras; a primeira o Estado de bem estar social promovido por Franklin Delano Roosevelt nos EUA, a segunda o fascismo europeu, que propunha a unificação da nação e do Estado, criticava o mercado e propunha um capitalismo de Estado, e a terceira o modelo soviético de forte centralidade também do Estado como planejador da economia. Ao final da segunda guerra, com a derrota da segunda opção, o fascismo europeu, o mundo emergirá com um forte protagonismo do Estado, determinado pela presença do keynesianismo. Segundo ARRIGHI 1996 foi o único momento em que o capitalismo distribui renda, determinado por seu mais longo período de desenvolvimento, sem crises na sua história. De 1945 a meados de 1970, o sistema teve um crescimento continuado, fazendo inclusive com que Nixon, um presidente republicano e conservador, na mesma década de 70 declara-se; "somos todos keynesianos." SADER 2019 página 64


"A imposição do neoliberalismo no âmbito da economia mundial é resultado de uma crise profunda que atingiu o conjunto do que se vai chamar aqui de modo de regulação keynesiana de Bem-estar-social, ou ainda consenso Keynesiano, que, dominante a partir de 1945, foi responsável por um longo período, quase 25 anos, de crescimento econômico com pleno emprego. Esses anos dourados, como foram denominados, pareceram confirmar as teses mais otimistas, que, a partir da crise de 1929, acreditaram que o capitalismo havia aprendido com aquela dramática situação e se preparado para, com base no Estado e em um novo arsenal de políticas públicas, administrar a macroeconomia, bem como garantir certos direitos sociais, trabalhistas e previdenciários." PAULA org. 2005 página 30

A partir de Thatcher (1979) e Reagan (1980) essa lógica da forte presença do Estado começa a ser erodida, desmontando o Welfare State celebrando-se a regulação do mercado para tudo e, promovendo forte arrocho das contas públicas. Segundo alguns autores a Ditadura de Pinochet (1973) no Chile (2) foi a primeira experiência de gestão neo liberal, algo ainda fora de qualquer padrão generalizante, pois profundamente articulada com um autoritarismo criminoso. Mas ao final da segunda crise do petróleo, no final da década de setenta, com as eleições nos dois países propagadores do capitalismo de forma hegemônica no mundo, começa a emergir o declínio da forma de regulação pautada pelo fordismo e pelo keynesianismo. Foi impressionante a perda de postos na indústria fordista na Inglaterra e nos EUA, com uma compensação sempre precarizada pelo setor dos serviços, principalmente financeiros. Essa perda representou, segundo ARRIGHI 1996, o declínio de uma regulação importante do capitalismo do segundo pós guerra, o sindicalismo industrial, que foi fortemente atacado pelas gestões neo liberais. Além dele, um outro importante contrapeso do segundo pós guerra começa a demonstrar suas fragilidades, frente a imensa capacidade produtiva do capitalismo, o sistema soviético, que representava uma forte ameaça para as políticas anti sociais do neo liberalismo, que retornava. Mas, é exatamente essa imensa capacidade de ampliação do consumo, a produtividade do sistema capitalista frente ao socialismo, que a partir da década de 90 começará a ser reduzida, pois constantemente submetida a crises cíclicas capitaneadas por um sistema financeiro desregulamentado e autonomizado frente a produção, num retorno às condições pré 1929.

A partir de 1989, com a Queda do Muro de Berlim e dois anos após com o desmonte do sistema soviético, o capitalismo aparecia como o único vencedor, fazendo com que Francis Fukuyama, um neo hegeliano de direita decretasse o Fim da História. O Fim da História não era a supressão da sucessão de acontecimentos, mas a vitória das democracias liberais, que emergiram como vitoriosas frente ao socialismo, naquilo que havia sido para Fukuyama a disputa ideológica do século, como uma superação sintética da contradição entre dois sistemas. Mas junto a essa condição, com o fim das regulamentações sobre o sistema financeiro o capitalismo começa a apresentar uma recorrente presença de crises especulativas, que solapam o desenvolvimento e reduzem a produtividade do sistema. A ausência das formas de regulação, o sindicalismo fortalecido e o Estado planejador, acabam por determinar a presença recorrente de crises cíclicas, que se sucedem com gravidade cada vez maior até a grande crise de 2008, quando EUA e a Europa são fortemente atingidos, acabando por representar um forte declínio do crescimento da economia global. Mesmo a excessão da China, que continua apresentando números de crescimento invejáveis pode ser explicada por sua imensa capacidade de controle dos sistemas financeiros do país. A economia de mercado socialista inventada por Deng Xiaoping (1979) não se importava "com a cor do gato, desde que comesse os ratos"(3), mas na verdade, até agora não abriu mão do seu sistema financeiro. Sem dúvida, o sistema financeiro chinês, apesar de admitir participação privada de diversos grupos permanece majoritariamente estatal, e volta e meia banca políticas públicas anti cíclicas. 


Enfim, a resistência da América Latina ao neo liberalismo apesar de frágil me parece um movimento digno de reflexão e a espera de um aprofundamento do debate sobre as opções que se apresentam ao nosso futuro. A história e os seus ensinamentos são fundamentais para não repetirmos os erros de anos mais distantes e mais próximos, os contra pesos e regulações de sistemas competitivos me parecem fundamentais, pois a reflexão dialética ainda não foi suprimida. A contraposição de uma lógica mais solidária a um raciocínio concorrencial ainda hegemônico e majoritário, me parece fundamental.


NOTAS:

(1) Ver nesse mesmo blog, o texto Ciclos históricos na América Latina, a partir do século XX,  um projeto de continente e a questão indígena. Na verdade no texto enfatizo a ideia de uma identidade latino amedricana e mesmo americana, que está precisando sere melhor estudada e pensada. No link; https://arquiteturacidadeprojeto.blogspot.com/

(2) Autores como HARVEY (2008), DARDOT e LACVAL (2016)

(3) Expressão imputada a Deng Xiaoping ; "Não importa a cor do gato, o importante que ele coma os ratos." justificando a implantação da economia de mercado socialista na China, a partir de algumas cidades e depois generalizando-a por todo o país.

BIBLIOGRAFIA:

ANDERSON, Perry - O Fim da História, de Hegel a Fukuyama - Jorge Zahar Editora Rio de Janeiro 1992

ARRIGHI, Giovanni - O Longo Século XX, dinheiro, poder e as origens do nosso tempo - Editora UNESP São Paulo 1996

DARDOT, Pierre e LAVAL, Christian - A nova razão do mundo, ensaio sobre a sociedade neo liberal - Editora Boitempo São Paulo 2016

HARVEY, David - O neoliberalismo, história e implicações - Edições Loyola São Paulo 2008

LÖWE, Michael (org.) - O marxismo na América Latina, uma antologia de 1909 aos dias atuais - Expressão Popular Perseu Abramo São Paulo 2016

PAULA, João Antonio de - Adeus Desenvolvimento: a opção do governo Lula - Autêntica Editora Belo Horizonte 2005

SADER, Emir - Lula e a esquerda do século XXI, neoliberalismo e pós-neoliberalismo no Brasil e na América Latina - Editora LPP UERJ Rio de Janeiro 2019