terça-feira, 21 de abril de 2020

Reflexões sobre o projeto urbano e arquitetônico em favelas, a partir de uma tese de doutorado

Planta do Projeto de urbanização implantado na favela de Parque Royal
Ilha do Governador Rio de Janeiro merece um destaque na tese de
Solange Carvalho
No dia 15 de abril de 2020 participei da banca de doutorado da aluna do PROURB FAU-UFRJ, a arquiteta Solange Carvalho, realizada de forma remota devido a pandemia do Covid-19, junto com outros professores; Pablo Benetti (FAU-UFRJ), Ana Brito (FAU-UFRJ), Guilherme Lassance (FAU-UFRJ) Rosana Denaldi (UFABC-SP), e a antropóloga francesa Alessia di Biase. O título da tese é Entre a Ideia e o Resultado: o papel do projeto no processo de urbanização de uma favela, uma reflexão que parte de meados dos anos noventa e chega até nossa contemporaneidade, problematizando as formas de atuação de arquitetos nas favelas. A Favela de Parque Royal na Ilha do Governador, na cidade do Rio de Janeiro, projeto da Archi5 arquitetos associados é uma personagem importante nessa reflexão, assim como tem sido em outros eventos acadêmicos, como dissertações de mestrado, dentre as quais destaco a de Carolina  Kroff defendida no PPGAU da EAU-UFF em 2018. Na ocasião, fiz uma série de anotações a partir da leitura e da apresentação de Solange Carvalho, que na verdade são apenas manuscritos inacabados, com algumas considerações críticas, que me parecem importante estarem disponíveis para um público mais amplo. As eventuais divergências, que apresento são apenas um registro, que nasce da alta consideração sobre um esforço notável e importante da reflexão de Solange Carvalho para nosso campo, da arquitetura e do urbanismo, na abordagem das favelas. De certa forma, as provocações feitas de forma particular á Solange, aqui se desdobraram em reflexões que foram aprofundadas pelos meus interesses particulares. Principalmente, em suas ações de plano e projeto para a transformação de realidades urbanas precárias, na tentativa de promover sua integração com o restante do tecido urbano e social, temas recorrentes nas cidades do mundo contemporâneo. 

1. A primeira questão é relativa ao campo, da Arquitetura e do Urbanismo, que me parece mau limitado e impreciso particularmente no contexto da Academia, de uma maneira geral, por uma dificuldade inerente ao meio universitário de se aproximar de um reflexão sobre o plano e projeto. Duas operações ou ações conformadoras do campo, que são menos objetivas e mais subjetivas, envolvendo componentes auto biográficos de expressão, que se aproximam do fazer artístico, tanto é assim, que as Escolas de Arquitetura estão estruturadas em torno do fazer empírico do plano e do projeto. E, que são ao meu ver fundamentais para a sua compreensão integral. Há uma dimensão auto biográfica nessas ações, que no meu entender se afastam de uma visão demiúrgica do arquiteto como portador de um traço genial, sintetizador do problema, mas que envolvem a coordenação e a instigação do processo por vários agentes. Como assinalei na minha fala, "o plano e o projeto não são produtos prontos na prateleira", mas são processos de auto esclarecimento, pois qualquer cliente ou arquiteto não sabem exatamente aonde o processo os levará. Invariavelmente, todos os agentes ao iniciar o processo de projeto não sabem definir aonde chegarão, apesar da formulação do programa, dos objetivos, das limitações de orçamento, não sabem aonde serão levados, mas no processo aperfeiçoam suas demandas e suas definições num processo de auto esclarecimento conjunto. Esse tipo de desenvolvimento demanda que todos os agentes estejam horizontalmente habilitados a participar , nas suas diversas responsabilidades e expertises, para poder expressar seus desejos e vontades. Habermas fala na construção da vontade, a partir de uma "racionalidade intersubjetiva", que seria um discurso além da pessoalidade e do personalismo, como se os agentes acessassem uma maioridade cidadã plena, a partir da discussão do seu vir-a-ser, reconhecendo em cada agente a possibilidade de expressão do interesse. Repare, que há uma especial preocupação com as responsabilidades, que precisam ser claramente distribuídas, e que me parece o verdadeiro descuido da Academia, que não consegue definir a atribuição do arquiteto frente o cliente, a favela, o Estado, o governo, a empreiteira, os peões, os grupos de interesse, etc... Habermas também fala da impossibilidade de alcance da "neutralidade axiológica" tão cara a Academia pois diz literalmente que não há conhecimento sem interesse. A neutralidade axiológica significa a dissociação entre fatos e valores, combatendo a ideia enfática do ente interpretativo que sintetiza interesses, desejos e valores, que não só lhe pertencem; 


"Entretanto, se compreendermos sob esse ponto de vista os impulsos e afetos com os quais os homens se envolvem na conexão de interesses através de uma práxis incerta e contingente, então a teoria pura recebe também um novo sentido, que promete precisamente a purificação desses afetos: a contemplação desinteressada assume assim manifestamente o sentido da emancipação. A desvinculação entre conhecimento e interesse não deveria purificar a teoria das perturbações da subjetividade, mas inversamente, submeter o sujeito a uma purificação extática das paixões." HABERMAS 2014 página 185. 

Importante salientar, que teoria para Jürgen Habermas, um membro da Escola de Frankfurt de filosofia é a teoria crítica da cultura, da sociedade, do Estado, do governo, da comunidade, da favela, entendidas como construções humanas, perpassadas por desejos e interesses. De certa forma, é a manutenção daquela ligação platônica entre a pura teoria e a práxis, que o mundo contemporâneo foi separando, impedindo a ligação entre conhecimento e esclarecimento, gerando ao mesmo tempo; um conhecer alienado e uma teoria empostada. Seria como a religação entre a metodologia e a ontologia, que se reconecta pelo sujeito cognoscente, que é disciplinado pela expressão dos interesses, desejos e aspirações de todos, conformando um novo vir-a-ser da comunidade ou da favela. O plano e o projeto são essa prática incerta e contingente, que conecta interesses e desejos, purificando subjetividades pela empatia que se generaliza. Na verdade, há nas ações de plano e projeto, quando comandadas como práxis incertas e contingentes, exatamente o potencial de efetiva realização de um aprofundamento da democracia e alcance da maioridade por parte das favelas e de seus agentes.

2. A segunda provocação que fiz a partir da tese foi sobre a concepção do Estado, que está implícita nela própria, que na minha visão; não pode ser compreendida como a representação da vontade do coletivo, dos interesses gerais e do público, algo que me parece ingênuo. O Estado é sempre a representação dos interesses de grupos sociais concretos, que disputam as narrativas, os discursos e as ideologias, e, que possuem uma visão da favela, da cidade, dos arquitetos, dos empreiteiros, dos servidores públicos, etc...No Programa Favela Bairro, concebido por um grupo, que se articulou no entorno do arquiteto Luiz Paulo Conde havia uma narrativa/ ideologia clara que conferia protagonismo ao projeto e não ao plano, quase como se fossem atitudes discordantes, um mais concreto e palpável, e outro, mais abstrato. Tal atitude, refletia uma certa ansiedade apressada para se atingir uma outra urbanidade para a cidade brasileira, que envolvia um compromisso maior com o tempo de curto prazo, assumindo uma certa incerteza com relação ao longo prazo. A celebração do novo planejamento estratégico envolvia o declínio do plano moderno totalizante, comandado pelo Estado, transferindo essa responsabilidade para setores de pressão organizada da sociedade. Tal atitude estava também profundamente articulada com a emergência do neo liberalismo nos anos noventa, que está abordado mais na frente, e que também reafirmava de forma celebratória a autonomia da cidade, frente a políticas mais sistêmicas dos Estados Nacionais. 

"Mas desde o início, como Theodor W. Adorno e Max Horkheimer(1) também teorizaram que o racionalismo, era uma mentalidade imediatamente apropriada e transmitida pelo alcance crescente e totalizador do capitalismo. De fato, o capitalismo não era simplesmente um processo de acumulação, mas um entendimento científico da inovação contínua desse sistema, sua revolução incessante de produção, consumo e finanças ...Para Hardt e Negri (2), o capitalismo atingiu um pico de desenvolvimento tal que não precisa mais de legitimidade nacional e se afirma como uma entidade imperial supranacional. No entanto, os mesmos meios que levaram a sua expansão precipitada - desenvolvimento tecnológico, trabalho "imaterial" ou pós-fordista e as técnicas subjugadoras do "biopoder" - também são as características de uma multidão dispersa que oferece uma forma de resistência política a essas entidades." AURELI 2008 página07

Mas, a conquista do governo municipal, no primeiro governo César Maia e no governo que o sucedeu de Luiz Paulo Conde significou a operacionalização de um certo protagonismo do projeto nas políticas públicas. Essa prática, no entanto não conseguiram convencer o conjunto da sociedade de sua relevância e importância para a ampliação da participação democrática na construção da cidade no seu vir-a-ser. Na verdade, o que cabe aqui destacar é a centralidade da importância do convencimento e da persuasão de práticas antecipadoras como o plano e o projeto são fundamentais em nossa contemporaneidade, para a radicalização da nossa democracia. Afinal, recuamos muito após esse momento, retrocedendo a uma luta corporativa redutora e simplista entre Sociologia e Projeto, que me parece uma perversão muito grande, como um anti-esclarecimento. O "componente social" (3) e de certa forma o orçamento passaram a protagonistas por absoluta incapacidade nossa, de arquitetos e urbanistas, de delimitar nosso campo de forma mais precisa. Pois, me parece fundamental reafirmar, que a partir das ações de plano e projeto é que será possível a ampliação e radicalização da democracia no que se refere a construção do nosso vir-a-ser, seja da cidade ou da comunidade.

3. A terceira questão é a espacial, que na tese me parece muitas vezes sub valorada, ou diminuída frente a posições de cunho sociológico reducionistas, como; "estética da pobreza" ou "projeto como registro de um momento" pg61, ou ainda "críticas à ênfase dada por estas políticas às melhorias físicas em detrimento do desenvolvimento econômico e social". Me parecem completamente equivocadas, como se houvesse uma competição entre a morfologia urbana e a social, aonde a espetacularização da primeira significaria um desdém pela segunda. A citação da postura do arquiteto Hector Viglieca com relação ao sistema viário, que segundo ele "deveria ser legível" rompendo com as pré existências me parece segue essa mesma linha. Aliás, Solange Carvalho foi responsável pelo Caderno do Sistema Viário, produzido pelo Programa Morar Carioca, que foi assinado pelas arquitetas, Tatiana Terry, Daniela Engels e a própria, e salvo algum engano meu, não registra uma celebração tão veemente das pré existências da favela, como elementos de celebração identitária a ser mantidos. Embora reconheça, que algumas identitades pré existentes possam ter sido violadas por alguns projetos insensíveis, e essa elegibilidade seja das mais importantes, e um critério para reconhecimento da qualidade da intervenção. No meu entender. o conceito desenvolvido por Kevin Lynch, no livro A Imagem da Cidade, que se refere a "legibilidade" é um valor universal, muito além das políticas atuais de reforço das identidades, do tipo; comunidade, favelas, e etc... 


"a hierarquização do tecido urbano, a circulação coerente com o transporte público, a localização das centralidades e a geografia, sempre subjacente ao solo urbanizado, formam um quarteto de reflexão, conjunto chave para estabelecer uma condição básica de inclusão física. Legibilidade significa precisamente a possibilidade de o indivíduo estabelecer mentalmente o mapa de sua localização no território. O reconhecimento dessa leitura contribui na reconstrução da cidadania, favorecendo a apropriação e a incorporação social e estabelecendo o sentido de lugar. (VIGLIECCA, 2012, p. 94).

Mas qual a largura ideal do sistema viário nas favelas para que se estabeleçam estas relações? Estariam os escopos dos programas de urbanização de favelas imbuídos em orientar projetos desta natureza? As orientações contidas nos escopos parecem indicar, como veremos no capítulo 2, ao contrário da ideia defendida por Vigliecca acima, o equilíbrio entre a preservação da morfologia típica das favelas, que trouxe identidade a estes territórios, e a dotação de melhorias urbanas que não pressupõem a reestruturação do tecido urbano da favela...Projeto é ainda o registro de um momento, um documento que marca um tempo específico, como se congelasse o contexto estudado para a representação de um futuro desejado." CARVALHO 2020 página44 e página61

Enfim, me parece que a questão espacial da cidade no Brasil é a dimensão mais concreta da lógica da super exploração e exclusão existente na sociedade brasileira, enquanto conceitos como classe, estamento ou até grupos sociais são abstratos e difíceis de serem compreendidos pelo conjunto de nossa população. A constituição física de nossa urbanidade é concreta e palpável. A espacialidade das cidades brasileiras é a dimensão mais concreta do plano e projeto de nossas elites para segregar e não incluir parcelas significativas da nossa população. Daí a importância da elaboração de projetos contra hegemônicos, como os de urbanização de favelas, que pretendem mudar a inércia de desenvolvimento da cidade brasileira. Se nos restringirmos ao exemplo do mercado imobiliário percebemos que 30% de nossa população não acessa a produção habitacional, tendo que auto construir sua própria habitação. Se cotejamos os investimentos em infra estrutura percebemos por exemplo o desnível existente entre áreas como São Gonçalo na cidade metropolitana do Rio de Janeiro e os bairros de Copacabana, Ipanema e Leblon, aonde o acabamento da cidade é visível. Se abordamos, os sistemas de mobilidade urbana percebe-se o mesmo projeto perverso de exclusão da imensa maioria de nossa população, condenada a perder seu tempo de vida em deslocamentos pendulares intermináveis. A espetacularização das intervenções urbanísticas e arquitetônicas, que nortearam projetos de requalificação ao longo do mundo, nos anos noventa e na primeira década do século XXI, comandadas pelo capital especulativo financeiro não são análogas as integrações do Favela Bairro, ou dos projetos de urbanização de favelas no terceiro mundo. A exposição na Bienal de Veneza no Pavilhão do Brasil em 2002 das diversas experiências no país, que incluíram Parque Royal e o Complexo do Sapê, e que ganharam o nome pomposo de Favelas up grading (4) são simbolicamente importantes e desmontam anos de indiferença do nosso campo a essas atuações. Não podendo ser qualificadas como estetização da pobreza.

4. Uma quarta questão emerge do debate da tese de Solange Carvalho, a precariedade e subalternidade celebradas como valores de especificidade cultural e impossibilidade de integração ao controle do nosso Estado ou da nossa Constituição Federal. Relegando imensas parcelas da nossa população a uma celebração da marginalidade, num conceito denominado "lógica da favela". Sem dúvida, o projeto de país e nação hegemônico envolve esse represamento a essa acessibilidade de amplas parcelas da nossa população à urbanidade. Sem dúvida, isso não será alcançado apenas com os projetos de urbanização de favelas, que apesar de realizados, não removem o estigma presentes nas concessionárias, na manutenção da urbanidade, na atitude geral e no dia a dia. Mas acho que a proposta não deve reforçar a identidade comunitária, frente a uma identidade societária mais geral, como duas dimensões que não se aproximam. Os termos sociedade e comunidade expressam de maneira emblemática essa contradição em nossa língua, apontando como o discurso sistêmico da macro escala, do conjunto totalizante vem sendo enfraquecido frente a lógica local, da identidade específica da micro escala e do localismo. A crise da modernidade identificada por vários autores é certamente a força motriz dessa tendência, que claramente privilegia o local, frente a lógicas globais estruturantes, que no entanto seguem operando e determinando perversões e dominações. Uma proposição de uma identidade planetária, como o conceito de Multidão de Hardt e Negri, ou a reconstrução do Comum de Dardot e Lacval aparecem aqui como antídoto;

"A privatização e a mercantilização dos elementos vitais para a humanidade e para o planeta estão mais fortes do que nunca. Depois da exploração dos recursos naturais e do trabalho humano, esse processo se acelera e se estende ao conhecimento, à cultura, à saúde, à educação, às comunicações, ao patrimônio genético, aos seres vivos e a suas modificações. O bem estar de todos e a preservação da Terra são sacrificados pelo lucro financeiro de uns poucos. As consequências desse processo são nefastas. Elas são visíveis e notórias: sofrimento e morte dos que não têm acesso a tratamentos patenteados e são negligenciados pelas pesquisas voltadas para o lucro comercial, destruição do meio ambiente e da biodiversidade, aquecimento climático, dependência alimentar dos habitantes dos países pobres, empobrecimento da diversidade cultural, redução do acesso ao conhecimento e à educação em razão do estabelecimento do sistema de propriedade intelectual sobre o conhecimento, impacto nefasto da cultura consumista." FSM Belém, citado em DARDOT e LAVAL 2017 página117

Além disso, o cosmopolitismo kantiano segue sendo um verdadeiro antídoto a essa posição, que me parece excessivamente contaminada pelas políticas identitárias, que são hegemônicas em nossa contemporaneidade. É interessante notar que o filósofo Imanuel Kant nunca saiu de sua cidade natal Konigsberg, na antiga Prussia, atual Russia, mas ele declarava a importância da construção de laços de identidade entre os diferentes povos, culturas e civilizações. E, via essa identidade cosmopolita como didática, na domesticação das dominações, fazendo nos se aperfeiçoar pelo convívio da diferença. È claro que a conceituação compartilhada pela tese de Solange Carvalho que envolve a ideia de "Sul Global", que também abarca essa questão, e com a qual também concordo, principalmente frente a um euro centrismo dominante. A questão me parece muito mais vinculada a um gradiente correto, aonde identidade local e global precisam e devem ser dosadas, para romper a dominação. Sem dúvida, há uma potência nas favelas, na sua resposta a ausência de uma política habitacional estruturada, por parte de nosso Estado. Mas acho que a precariedade e subalternidade não deve ser considerada como independente da lógica do desenvolvimento perverso brasileiro, mas colocado diante da absoluta necessidade de construção de um projeto contra hegemônico para o país, mais inclusivo. Enfim, uma construção de uma identidade mais geral e planetária, que reúna os despossuídos urbanos, que permanecem sendo a maioria em nossa contemporaneidade.

5. Uma quinta questão emerge dessa reflexão, a necessidade de um claro posicionamento, ainda que breve, sobre o neo-liberalismo e suas consequências para a estruturação do Estado, da Sociedade Civil, dos escritórios de arquitetura, dos funcionários públicos, do papel do plano e do projeto. Uma vez, que há no período, dos anos noventa a nossa contemporaneidade, que a tese aborda uma absoluta hegemonia dessa forma de estruturar o nosso pensar. A recorrência de um endemonizamento do Estado, em contraposição a uma celebração da Empresa privada estão aí manifestos e seguem operando sem abalos, apesar das constantes crises e solavancos. Nesse sentido, a estranha pandemia, que agora nos assola parece fazer emergir um outro discurso ou narrativa, aonde a estruturação das ações humanas parecem ganhar argumentos que declinam da ordem competitiva, passando a celebrar uma maior solidariedade. Aguardemos os desdobramentos.

"Este é o ponto principal da questão: como é que, apesar das consequências catastróficas a que nos conduziram as políticas neoliberais, essas políticas são cada vez mais ativas, a ponto de afundar os Estados e as sociedades em crises políticas e retrocessos sociais cada vez mais graves? Como é que, há mais de trinta anos, essas mesmas políticas vem se desenvolvendo e se aprofundando, sem encontrar resistências suficientemente substanciais para coloca-las em cheque? DARDOT e LAVAL 2016 página15


"A sociedade neoliberal em que vivemos é fruto de um processo histórico que não foi integralmente programado por seus pioneiros; os elementos que a compõem reuniram-se pouco a pouco, interagindo uns com os outros, fortalecendo uns aos outros... Na concepção marxista o capitalismo é, antes de tudo, um modo de produção econômico que, como tal, é independente do direito e gera a ordem jurídico-política de que necessita a cada estágio de seu autodesenvolvimento... O inconsciente dos economistas, como diz Foucault, que é na verdade o inconsciente de todo economicismo, seja liberal, seja marxista, é precisamente a instituição, e é justamente a instituição que o neoliberalismo, em particular em sua versão ordoliberal (5), quer reconduzir a uma posição determinante." DARDOT e LAVAL 2016 página25

E, não proclamemos vitória de antemão, pois o sistema vem demonstrando uma enorme capacidade de renovação inusitada, justamente a partir das crises mais dramáticas. Afinal, a crise de 2008 que parecia colocar em cheque a hegemonia do capital financeiro e especulativo representou seu fortalecimento, apesar da ampliação sem precedentes da concentração de renda. Aqui me parece, que a abordagem crítica do neo-liberalismo só será possível na medida em que a ordem concorrencial seja questionada pela solidariedade. E, o Comum,(6) que sempre existiu e sempre existirá resistir ao seu cercamento, principalmente no que se refere aos recursos ecológicos e esgotáveis do planeta, que já sinalizam uma crise ambiental sem precedentes.

6. Uma sexta questão, já abordada, mas de suma importância que seja melhor explicitada é aquela relativa ao localismo e ao pensamento sistêmico no Favela Bairro e na urbanização das favelas, sobre uma ótica mais geral das cidades como um todo. Essa questão, como já mencionado deve ser abordada a partir do Cosmopolitismo Kantiano e da menção ao caso de Medellin na Colômbia, que é mencionado na tese. A superação alcançada pela metrópole de Medellin veio da maior articulação entre urbanização de favelas e interesses, operações, planos e projetos gerais da metrópole e da sociedade como um todo. A referência e o suporte aos problemas e fragilidades de nossas mega metrópoles é fundamental para construção de um plano/projeto, que inclua todos dessa escala, que é a mesma do global, ou do sul global. E, aqui me parece fundamental registrar que um dos motivos maiores do sucesso da política do Favela Bairro, também assinalada por Solange Carvalho, tenha sido justamente a escala de sua operação, que na verdade atuou sobre todo o território do município, de maneira a sinalizar que todo assentamento urbanizável deveria ser enfrentado. O que trouxe a mensagem clara e territorialmente expressa de forma transparente, de que o projeto era para todos e incluía seus diferentes espaços e especificidades.


"Toda cidade é resultado do trabalho e da fantasia dos homens ao longo do tempo. Os espaços são construções coletivas: todos participaram, e participam, de algum modo de sua urdidura. Consolidar uma vida urbana orientada pela equidade e pela inclusão das diferenças é, portanto, um empreendimento amplo, que tem de envolver obrigatoriamente os governos, as instituições e a sociedade civil." CONDE e MAGALHÃES 2004 página 38

Enfim, a escala da metrópole é a mesma da escala global, ou do sul global, e na busca da equidade está presente o cosmopolitismo kantiano das diferenças.

7. Por último, a questão de um certo Positivismo filosófico, que se resguarda de fazer Política, pois perderia sua precisão científica, uma constante em nossas bancas acadêmicas. Há um profundo vínculo no Brasil entre Academia e Positivismo, na sua abordagem da ciência como algo independente da compreensão e do conhecimento socialmente compartilhado. Na Banca, a arguição da professora Ana Brito da tese de Solange Carvalho, como uma "tese militante" fala muito dessa questão, pois qualquer engajamento é percebido como um declínio do cientificismo. Minha fala, que talvez não tenha feito o menor sentido foi de que; "A tese não deve excluir o sujeito pensante.", que é uma máxima também de Kant. Além de uma menção a Revolta da Vacina no Rio de Janeiro em 1906, com as Reformas de Pereira Passos, que parecem foram o embrião da geração da primeira de nossas favelas, e que, envolvia um pseudo embate entre ciência e manifestações políticas, que também não deve ter parecido clara. O livro de Jaime Larry  Benchimol, Pereira Passos, um Hausmann Tropical menciona uma série de historiadores que discordam dessa denominação (Revolta da Vacina), que a mim também me parece tratar se de um outro tipo de rebelião, contra a exclusão recorrente de parcelas significativas de nossa população. O já mencionado, plano e projeto de nossas elites, que nunca procuraram incluir o conjunto de nossa população, pois não se apresentava como compreensível para ela mesma.  

"Havia uma clara vertente autoritária baseada na ciência médica e na salubridade, que se hegemonizava frente a outras narrativas, típica do Positivismo de Auguste Conte. É claro também, que não se trata de corroborar com um anti-cientificismo igualmente limitado e redutor, nem com um relativismo paralisante, mas de uma premissa fundamental de inclusão e promoção de coesão social, possíveis pelo projeto e pela política.

"O engenheiro... é o grande sacerdote e intérprete da natureza. O engenheiro, sempre em contato com a natureza, conhecedor de seu caráter, do seu hábito, chegou pela aplicação de sua força intelectual, a vencê-la e dominar sua força bruta, desviando, corrigindo, dominando sua força bruta, desviando, corrigindo, dominando essa força para servi-lo. A engenharia pode fazer tudo isto; dominando a superfície e as entranhas da terra, as ondas e o fundo dos mares e acaba de transpor os domínios da águia e da andorinha veloz." Saturnino de Brito citado em MOREIRA, F. D. 2010 página 47

"O eixo central da avenida foi inaugurado em 7 de setembro de 1904, em meio a grandes festas, já com serviço de bondes e iluminação elétrica. A derrubada de cerca de 640 prédios rasgara, através da parte mais habitada da cidade, um corredor que ia da prainha ao Passeio Público. Parte dos escombros ainda cobria os lados da avenida, facilitando seu uso para as barricadas. A inauguração se dava diante de um cenário de guerra e de terra arrasada, pouco convincente do ponto de vista celebratório, imagético e simbólico... A demolição dos velhos casarões, àquela altura já quase todos transformados em pensões e cortiços, provocou uma crise de habitação que elevou os aluguéis e pressionou as classes populares para os subúrbios e para cima dos morros que circundam a cidade. A implantação da modernidade no Brasil parecia querer excluir parcelas importantes da sua população, que assim como hoje se sustentam por pequenos biscates e não possuem vínculos fixos de trabalho(7). A modernidade assumia um caráter parcial e não era disponibilizada para todos, combinando aquilo que será a face perversa de nossa modernização incompleta e combinada, que sempre manteve o arcaico, para dele se beneficiar e super explorar." MOREIRA 2020 blog https://arquiteturacidadeprojeto.blogspot.com/ coletado em 20 de abril de 2020 

Aqui me parece fundamental compreender, que uma das formas de operar da ciência é atingir e conquistar a linguagem comum, dos mundos da vida fazendo-se presente no cotidiano e na práxis do cotidiano.

8.Para finalizar, não posso deixar de registrar minha discordância com relação a celebração na tese da especificidade do projeto em favela, pois acredito que não haja projeto genérico, cada experiência projetual é única, e precisa ter como premissa a valorização dessa mesma condição. Os termos de referência, editais e escopos seguem tentando nivelar essa experiência, que na verdade precisa ter sua remuneração modulada e regulada. É claro também, que diante da dinâmica da auto construção presente nas favelas, o projeto precisa declinar do rigor da precisão de suas pré definições, operando a partir de tendências, deixando se contaminar pela imprecisão do plano. Mantendo uma etapa privilegiada, que todo projeto deve ter, que seria a de acompanhamento de obra, aonde as adequações e compatibilizações são realmente realizadas. Mas continuo considerando, que o ensino de arquitetura não deve se pautar por suas temáticas, tais como; favelas, restauro, edificações de saúde, etc.., mas sim pela compreensão genérica do que significa o ato de planejar e projetar. Reconhecendo essas especificidades, mas não tergiversando com relação ao que significa planejar e projetar, atividades humanas essenciais de grande complexidade, que podem nos levar a uma maioridade cidadã.

Enfim, considero que essas formulações foram suscitadas pela profunidade do trabalho de Solange Carvalho, que me parece ter capacidade de ser um marco da revisão crítica do projeto nas favelas, apesar de nossas discordâncias.

NOTAS:

(1) Theodor W. Adorno e Max Hokheimer são também autores alinhados com a Escola de Frankfurt, assim como Jürgen Habermas, que o antecederam na construção da crítica cultural, típica dessa linha filosófica. Os dois autores criticaram fortemente a racionalidade sistêmica do capitalismo tardio, o que contrasta com as posições de Habermas, que de certa forma opera recuperando uma outra razão ligada ao debate e a construção inter subjetiva.

(2) Nichael Hardt e Antonio Negri são autores contemporâneos que criticam as novas formas de operar do capitalismo a partir dos conceitos de Império e Multidão.

(3) Componente Social passou a ser a denominação e a regulação da qualidade e intensidade da participação social nos projetos de urbanização de favelas, na terceira fase do PROAP-Rio, mencionado pela autora, que nas duas primeiras fases estavam subordinadas a coordenação dos escritórios de arquitetura.

(4) Favelas Up Grading é o nome dado a Exposição de Arquitetura da Bienal de Arquitetura de Veneza em 2002, que teve como curadora a arquiteta Elizabeth França, na qual uma série de projetos de urbanização de favelas foram mostrados, inclusive Parque Royal e Complexo do Sapê dos escritório Archi 5 arquitetos associados.

(5) Ordoliberais corrente do neoliberalismo nascida na Alemanha, que sempre deu êmfase a ordem constitucional e procedural. Segundo os mesmos autores citados; "Duas grandes correntes vão se esboçar a partir do Colóquio Walter Lippmann, 1938: a corrente do ordoliberalismo alemão, representada por Walter Eucken e Wilhelm Röpke, e a corrente austro-americana representada por Ludwig von Mises e Friedrich A Hayek." DARDOT e LAVAL 2016 página33

(6) O Comum é o conceito utilizado por DARDOT e LACVAL 2017 para denominar os patrimônios compartilhados de forma conjunta que o capitalismo possui uma certa dificuldade de cercar e privatizar, como os oceanos, as reservas naturais, a água, o patrimônio construído, etc...

(7) É conhecido o fato, e de certa forma folclorizado, de que parte desse precariado começou a criar ratos para conseguir prover seu sustento, uma vez que Oswaldo Cruz institui uma remuneração em dinheiro para quem os entregasse aos Serviços Sanitários da Capital Federal, no seu combate a Peste Bulbônica.

BIBLIOGRAFIA:

AURELI, Vittorio - The Project of Autonomy; politics and architecture within and against Capitalism - Pricenton Architectural Press Nova York 2008

BENCHIMOL, Jaime Larry - Pereira Passos: um Hausmann tropical - Biblioteca Carioca, Rio de Janeiro 1992

CONDE, Luiz Paulo e MAGALHÃES, Sérgio - Favela-Bairro: uma outra história da cidade do Rio de Janeiro -  Editora Vivercidades, Rio de Janeiro:  2004.

DARDOT, Pierre e LAVAL, Christian - A nova razão do mundo, ensaio sobre a sociedade neoliberal - Editora Boitempo, São Paulo 2016


DARDOT, Pierre e LAVAL, Christian - Comum, ensaio sobre a revolução do século XXI - Editora Boitempo, São Paulo 2017 

HABERMAS, Jürgen - Técnica e Ciência como "ideologia" - Editora UNESP São Paulo 2014

CARVALHO, Solange - Entre a Ideia e o Resultado: o papel do projeto no processo de urbanização de uma favela - 363 páginas PROURB Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal do Rio de Janeiro.

LYNCH, Kevin - A Imagem da Cidade - Editôra Martins Fontes São Paulo 1997

MOREIRA, Pedro da Luz - Cidade, moradia, salubridade, consciência, narrativas e pandemia do Covid-19https://arquiteturacidadeprojeto.blogspot.com/ 13 de abril de 2020, coletado em 20 de abril de 2020

KROFF, Carolina - Integração Favela-Cidade Oficial: reflexões mais de duas décadas após o programa Favela-Bairro em Parque Royal, na cidade do Rio de Janeiro -  306 páginas Dissertação (Mestrado em Arquitetura e Urbanismo) – Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo, Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2017.