terça-feira, 15 de novembro de 2016

A história, memória e esquecimento rápido

Recentemente uma matéria na televisão brasileira, mostrou a remontagem em Berlim do bunker subterrâneo onde Adolf Hitler se suicidou, com a chegada das tropas soviéticas à cidade. A matéria mencionava a reação de uma parte da imprensa alemã, que rechaçava a reconstrução de passado tão doloroso para o país. Mas também mostrava, o guia responsável por levar os visitantes aos cenários reconstruídos, defendendo a iniciativa, como uma memorização necessária, principalmente agora que a Europa novamente se confronta com a xenofobia e variados movimentos neo-nazistas. Imediatamente, pensei na forma como temos tratado nossa própria história recente e de mais longo prazo,e me recordei da minha visita a Berlim e Hamburgo em 2012.

Há uns cinco anos visitei a Alemanha, e particularmente a cidade de Berlim, onde percebi entre a sua população, seja idosa ou mais jovem, uma clara patrulha anti-nacionalista, que rechaçava claramente manifestações de símbolos patrióticos, como; bandeiras, hinos,e outros. Ainda me lembro num final de tarde de assistir pela televisão, num tradicional bar e restaurante de culinária bávara, na praça das duas catedrais, no centro de Berlim, a uma partida de futebol entre Alemanha e França, na cidade de Paris. E, apesar do engajamento da torcida pró time alemão, os idosos e jovens berlinenses não viam com simpatia a execução do hino do país antes da partida, assim como torcedores que carregavam a bandeira do país, seja no distante Estádio de France, ou ali naquele bar. Me lembro de ter perguntado a uma jovem alemã sobre as manifestações de nacionalismo numa partida de futebol, e ela ter me alertado que naquele país havia um claro pudor anti-nacionalista, e, que para ela quem estava em campo era a Federação Alemã de Futebol, e não o país. Certamente aquelas eram marcas deixadas pela aventura terrível do nacional-socialismo no solo alemão, nas décadas de trinta e quarenta do século XX, que certamente não eram celebradas, mas que deveriam ser constantemente rememoradas.

A partir desses relatos é quase inevitável, um paralelo com a forma de agir de nós brasileiros, tanto com relação a nossa história, como também com relação ao futebol, que veio na Copa do Mundo de 2014 a ser tão maltratado pela mesma seleção alemã. Adianto, que não se trata da expressão do velho complexo de vira-lata, sinteticamente imposto como uma nossa identidade pelo genial dramaturgo Nelson Rodrigues. Particularmente, já compartilhava, como ainda compartilho a convicção algo auto-celebratória, de que uma figura como Hitler, jamais seria eleita no Brasil. Não é claro, por uma maior consciência do nosso povo, mas por uma desconfiança atávica aos discursos heróicos dos nossos políticos. Talvez, uma falta de caráter, ancorada em Macunaíma. E, aqui é preciso afirmar de forma clara, que não há na constatação, qualquer pretensão a precisão teórica, apenas a necessidade de se remeter ao afetivo e emocional de forma intuitiva, que invariavelmente possibilita apenas tornar o mundo aceitável e compreensível.

Mas voltemos a nossa relação com a história e nosso passado remoto e mais recente; a Escravidão, a Repressão do Estado Novo, ou do Golpe Civil-Militar de 1964, momentos repetidos de baixa auto-estima na história do Brasil, assim como o Nazismo na Alemanha. Me parece, que a sociedade brasileira moderna traz em seu bojo uma série de hierarquias inarticuladas ou irrefletidas, que decorrem da ausência de crítica sistemática de nosso passado escravocrata, de última nação do ocidente a se livrar dessa terrível estrutura social, ou de inevitável tendência autoritária, pela recorrência dos Golpes de Estado. Histórias, relatos e narrativas, que precisam ser recalcados ou superados de forma ligeira, e sem muito aprofundamento reflexivo, porque são feridas, ainda não cicatrizadas. Mas, que na verdade precisam estar sendo constantemente relembradas para que possamos superá-las, como heranças malditas que ainda nos assolam, e portanto precisam ser enfrentadas. Uma didática, a partir de nossos erros e equívocos encarados como potenciais trampolins transformadores, como narrativas que nos possibilitam abandonar nossas mazelas, mais que nossos acertos. Um impulsionador de um outro projeto societário, mais inclusivo.

Assim, se considerarmos apenas a escravidão dos negros, a mais remota causa de nossa baixa estima chegamos a conclusão, que herdamos uma massa imensa de pessoas tratadas como sub-humanas nas interações concretas do nosso dia a dia. Herdamos também uma certa ansiedade ligeira por se livrar de passados indesejáveis, ou pouco celebratórios de forma irrefletida. Uma classe dominante precocemente internacionalizada, que não se identifica com os outros extratos de nossa sociedade, mantendo uma indiferença e cinismo com relação ao desenvolvimento da nação. Uma ausência de um projeto de mais longo prazo, capaz de articular uma ideia de nação, que se desenvolve conjuntamente. Uma mentalidade predatória e imediatista de curta duração. Uma singular classe média, que lida diretamente com essa massa sub-humana, que lhe fornece tempo e energia nos trabalhos desqualificados, permitindo que ela se dedique as atividades dignas e úteis. Um relacionamento afetuoso e exploratório dessa classe média com esses extratos sub-humanos, que paternaliza e ao mesmo tempo explora com baixos salários. Essa mesma classe média volta e meia se sente ameaçada por qualquer conquista de ascensão social desses mesmos extratos populares, expressando um asco, que não tolera a transformação dos aeroportos em rodoviárias, ou os recentes benefícios previdenciários ás empregadas domésticas.

Enfim, a história e nossa memória não devem ser relembradas apenas em seus acertos e virtudes, mas principalmente seus erros e infortúnios devem nos acompanhar de forma constante, para que nos auto imponham mudanças. O esquecimento e o recalque dos nossos momentos de baixa auto-estima, só nos levam a repetição infindável de nossa história.