terça-feira, 19 de fevereiro de 2019

Verdade, pós verdade e fatos

No dia 16 de janeiro de 2019, na sala do Conselho de Informações da Cidade do Rio de Janeiro, no Instituto Pereira Passos (IPP) foi apresentada a palestra do professor Paulo de Martino Jannuzzi, com o tema Política e Produção de Estatísticas. O professor Paulo Jannuzzi leciona no Programa de Pós Graduação em População, Território e Estatísticas Públicas da Escola Nacional de Ciências Estatísticas (ENCE/IBGE), e trouxe um panorama da ciência da estatística, como construtora de uma política sistemática de promoção da equidade em nossa sociedade. A partir de argumentos justificadores da estatística como construtora e balizadora dos parâmetros de equidade do Estado de Bem Estar Social, de longa construção nos países desenvolvidos, e, de mais tardia adoção entre nós é formulado a tese de combate ao relativismo do mundo da versão, ou da pós verdade. As redes sociais e uma quantidade imensa de informações, sem parâmetro anterior na história, lançaram a humanidade num mundo que muitos caracterizam como, a pós-verdade. É claro, que a compreensão do perfil demográfico da população do Brasil tem na ciência estatística um poderoso instrumento para seu auto mapeamento fatual. No entanto, uma crescente influência da "versão" ou "opinião", não baseada em estudos aprofundados em fatos permeia o nosso mundo das mídias sociais, e consegue atingir a mídia institucionalizada, generalizando-se numa desinformação perigosa. Aquilo, que o professor Jannuzzi chamou de uma certa "midiotização" da sociedade contemporânea, que impacta fortemente a construção do senso comum, direcionando-o de forma perversa para interesses oligopolizados.

"O Brasil seria diferente do que é hoje se não fossem as informações produzidas pelo IBGE e por outras instituições do Sistema Estatístico Nacional. Com todas as iniquidades sociais que ainda persistem no país, o quadro seria seguramente pior caso não houvesse informações estatísticas levantadas há mais de 80 anos ou quase 150 anos, se forem considerados os esforços de realização do primeiro Censo Demográfico em 1872, no final do Império, quase 20 anos depois do planejado, pelas resistências da elite latifundiária e escravocrata da época." JANNUZZI, Palestra no IPP janeiro de 2019

Coeficiente do Indice de Gini de Rendimento Domiciliar 
Per Capita da População
Os exemplos selecionados por Jannuzzi envolvem manchetes concretas dos mais importantes jornais brasileiros, como O Estado de São Paulo, O Globo, e Folha de São Paulo, aonde são destacadas; no primeiro jornal em 15 de setembro de 2018 "Mais Educação do MEC não melhora notas dos alunos", ou no segundo em 25 de setembro de 2015, "Pronatec é irrelevante para o mercado", ou ainda na Folha em 16 de abril de 2018, "Filosofia e Sociologia obrigatórias derrubam notas de matemática". Nenhuma dessas manchetes podem ser comprovadas pela evolução das estatísticas brasileiras, ou nos fatos, que na verdade mostram o contrário, um declínio tímido de alguns parâmetros de medição da desigualdade, e uma melhora tímida na educação. Como por exemplo, o Coeficiente do Indice de Gini de Rendimento Domiciliar Per Capita da População (gráfico acima), que mede a desigualdade no país, e espelha uma melhor distribuição na medida que se aproxima de zero. Em 1982  esse Coeficiente era de 0,582, piorando em 1983 passando a ser de 0,606, a partir desse momento decresce, primeiro de forma mais tímida até 2001, quando alcança 0,591. A partir de 2002 decresce de forma mais forte, partindo de 0,588 e chegando em 2014 a 0,514. Mas apesar desses números permanecem pipocando "versões"  e "opiniões", que repetem que os governos PTistas não distribuíram renda. Na verdade, as políticas de esquerda foram tímidas, mas efetivas distribuidoras de renda. Apesar disso, os delírios e arbitrariedades estampados chegam a índices mais aviltantes, quando se olha para a mídia como um todo, afinal a manchete do jornal O Povo on line, de 13 de março de 2017 estampava a seguinte fala do candidato a Deputado Federal Victório Galli (não eleito) do PSL do Mato Grosso do Sul; "Deputado Federal chama Mickey de homossexual, e acusa Disney de promover o gayismo". Talvez, no campo da liberação dos costumes, as proclamações definitivas desvinculadas dos fatos medidos pelas estatísticas é então mais contundente, pois a aceitação passa a permitir uma maior auto declaração, assustando as ideologias conservadoras. Há clara presença de alguns fatores perversos no Brasil, que impulsionam tendências da midiotização das mensagens, tais como; oligopolização das empresas de comunicação do país, falta de regulação sobre a responsabilidade de conteúdos ofensivos e falsos.

"Midiotização das Políticas Públicas: cobertura pouco profissional e cuidadosa das Políticas Públicas, de sua relevância, dificuldades de implementação e efeitos pelos veículos de comunicação, influenciando sua legitimidade social e sustentação política." JANNUZZI, Palestra no IPP janeiro de 2019

Carga tributária histórica nos países da OCDE
Na verdade, a construção do conceito de Estado de Bem Estar Social é muito recente, emergindo a partir do segundo pós guerra no mundo, que passou a operar com uma carga tributária maior para sustentar políticas sociais de inclusão da pobreza. Os gráficos, apresentados por Jannuzzi mostram de forma clara, o aumento da carga tributária em diferentes países do mundo, que impulsionaram a promoção de políticas sociais de inclusão e de combate a pobreza. No Brasil, diferentes pesquisas apontam que uma mudança social tímida decorreu de uma série de fatores, que aconteceram em nossa história recente, tais como; um pacto progressista instituído pela Constituição de 1988, democratização e estabilidade política após a queda da Ditadura Civil e Militar, boom das commodities, decisões econômicas em favor do mercado interno, fortalecimento de políticas sociais universais voltadas à equidade e a públicos vulneráveis, informação e avaliação da efetividade dos programas.

Com a ascensão do modelo neoliberal no mundo, primeiro com a ascensão de Thatcher e Reagan, no âmbito anglo-saxão, no final dos anos setenta e inicio dos oitenta, e depois no restante do mundo emerge então uma estabilização da ampliação da carga tributária em vários países. A alegação é sempre a mesma, que a carga tributária se ampliou de tal maneira, dificultando o livre movimento das empresas e dos investimentos, dificultando a promoção do desenvolvimento. Mas na verdade, a desregulamentação que estabilizou a ampliação da carga tributária vem dando demonstrações repetidas de concentração de renda e aumento das desigualdades. No Brasil, as perspectivas apresentadas por Jannuzzi apontam uma clara tendência de queda da carga tributária, sem que os benefícios de políticas estatais tenham sido universalizados. O discurso de que temos uma carga tributária alta, sem termos um nível de excelência de serviços públicos parece que saiu vencedor na última eleição majoritária no país, sem que tenha sido oferecido uma alternativa fatual para o alcance desse grau. Na verdade, a escolha parece desconsiderar que o país precisa melhorar sua divisão de renda, e, que a maneira construída pelos países ocidentais centrais do capitalismo de ampliação da carga tributária, me parece ainda não foi refutada. Nesse sentido, o gráfico acima, mostrado por Jannuzzi é esclarecedor, comparando as cargas tributárias de países europeus como Espanha e Portugal, com latino americanos como Argentina, Chile, Méxiso e Brasil.

Toda a ascensão de governos alinhados à direita, nos últimos anos pelo mundo parece apontar uma tendência de retrocessos numa série de campos, tais como; o cosmopolitismo global, o Estado laico, a aceitação da diversidade de costumes e opções sexuais, e a carga tributária dos Estados. Um ponto, que esse blog vem repetindo de forma recorrente em suas publicações é o da presença de uma certa hegemonia do Capital Financeiro, que me parece se articula de forma interessada com o mundo da pós-verdade. Uma vez, que os costumes cotidianos especulativos das bolsas e do rentismo, me parece, se articulam muito mais com as "versões", do que com os "fatos".

BIBLIOGRAFIA:

JANNUZZI, P. M. - Apresentação ao Conselho do IPP em 16 de janeiro de 2019 - apresentação disponibilizada pelo IPP

JANNUZZI, P. M. -  Monitoramento e avaliação de programas sociais: uma introdução aos conceitos e técnicas.- Editora Alínea, Campinas 2016.

JANNUZZI, P. M. - Indicadores sociais no Brasil: conceitos, fontes de dados e aplicações. - 6. ed. rev. e ampl. Editora Alínea, Campinas 2017.