sábado, 5 de janeiro de 2019

O jovem Gramsci, a linguagem e as formas de construir

Capa do livro de Leonardo Rapone
Gramsci chegou a Turim em outubro de 1911, aos vinte anos de idade, havia conseguido em junho o diploma do liceu em Cagliari, capital da Sardenha, e chegara ao Piemonte pretendendo ingressar na Faculdade de Letras. Não era um abastado, se confrontava com uma grande penúria de meios de sustento, sua saúde era precária, e era um imigrante da Sardenha, uma das regiões mais pobres da Itália recém unificada, exatamente pelo Piemonte rico e industrializado. Sua família era bastante precarizada, seu pai em 1898 havia sido preso por peculato, concussão e falsidade ideológica, deixando a família sobreviver com os bens da herança materna, e de seus trabalhos como costureira. Por outro lado, havia sido um excelente estudante, naquele ano de 1911 participara de um concurso do Colégio Carlos Alberto, uma instituição beneficiente que fornecia bolsas de estudos para estudantes em condições desfavoráveis, obtendo a bolsa pelos anos de 1911-12. Naquela sua chegada a uma metrópole como Turim, seu primeiro esforço foi se despir de seu provincianismo paroquial, de um homem da Sardenha do princípio do século, abraçando a modernidade cosmopolita, que rapidamente se industrializava com a instalação de fábricas como a FIAT e a LANCIA. Essa condição de subalterno no espaço social da Itália será uma das fontes mais profícuas do seu pensamento, a noção de um certo centro impulsionador do capital, constituído primeiro pela Inglaterra e depois pelos EUA. A subalternidade da Itália nesse sistema mundial, a minoridade da burguesia italiana frente a inglesa, americana e francesa, sua declaração de dependência do Estado Nacional, a fraqueza do liberalismo italiano frente a essas outras três nações. A posição da Sardenha e a parte meridional da Itália agrária, católica e arcaica, frente ao norte industrializado, urbano e moderno. A reflexão de Gramsci terá sempre esse componente histórico espacial e cultural, que identifica especificidades, mapeia suas potencialidades e problemas, buscando sempre a estratégia da transformação. Mantendo sempre um otimismo propositivo. Sua consciência do desenvolvimento capitalista, sempre nos remete ao confronto entre o arcaico e o moderno, aonde as duas condições não são apenas polos antagônicos, mas realidades que tomam conhecimento mútuo, e muitas vezes exploram sua proximidade de forma complementar.

"Em 1913, nos meses de interrupção da atividade universitária, Gramsci pode assistir na sua ilha à campanha para as primeiras eleições com sufrágio semiuniversal* e dela retirou uma impressão muito viva da eficácia da política como fator de mobilização e transformação das massas camponesas, admitidas pela primeira vez ao exercício do voto. Em setembro, na esteira das eleições, realizou seu primeiro ato político público, aderindo ao grupo de ação e propaganda dos interesses da Sardenha, de inspiração antiprotecionista, que se constituira  no verão**. São particularidades de certa importância, porque nos conduzem ao tema da desprovincialização e nos ajudam a entender a natureza do processo que se realizou no espírito do jovem sardo. A inscrição de Gramsci no PSI é parte integrante de sua nacionalização; com tal ato Gramsci não cortava as raizes territoriais, mas especificava a dimensão intelectual e política na qual buscaria a explicação e perseguiria a solução para as angústias e os problemas específicos da Sardenha, lugar originário e indelével da sua tomada de consciência dos antagonismos sociais." RAPONE 2014 páginas63 e 64

E, mais do que sua nacionalização, Gramsci toma consciência das interações no sistema capitalista entre as nações da Europa e dos EUA, hierarquizando suas histórias e constituições, definindo uma centralidade muito além da mera simplificação econômica. Mas logo após sua chegada a Turim, Gramsci circulava no meio sindical, como produtor de ensaios e textos para jornais ligados ao Partido Socialista Italiano (PSI), ao mesmo tempo, era demandado pela Faculdade de Letras de Turim para temas acadêmicos, como os estudos de glotologia*** do professor Matteo Bartolli, uma referência dos neolinguistas. Também a língua, sua evolução e seu desenvolvimento irão sempre constituir para Gramsci como um ordenamento estruturado de forma molecular e dispersa, e de baixo para cima, com transformações contínuas, que lhe permitiam analogias com a política. Além disso, a questão da língua sempre esteve nas reflexões de Gramsci relacionada à organização da cultura e à função dos intelectuais orgânicos das diferentes classes sociais. Gramsci também construirá um forte vínculo entre linguagem e forma de estruturar o pensamento, negando de forma enfática o naturalismo e o mecanicismo, que imperava nos meios marxista do início do século XX. Mas ao mesmo tempo valorizando de sobremaneira a forma como a linguagem se estrutura, possibilitando a criação, a reformulação e a revolução dentro de parâmetros e regulações socialmente introjetadas em cada indivíduo. Para Gramsci, o estudo e o aprofundamento no fenômeno da linguagem sempre será proveitoso, reunindo criatividade e compreensão socialmente compartilhada, que na verdade impulsionam um devir histórico real e apartado do idealismo.

"Mas aqui quem se pronuncia não é só o discípulo de Bartoli: é também o militante político para o qual opor-se ao esperanto equivale a declarar-se 'revolucionário' e 'historicista': de fato, significa afirmar que na base do devir histórico está 'a atividade das energias sociais livres', excluindo as utopias - isto é, a pretensão de buscar projetos abstratos, ao mesmo tempo arbitrários e ilusórios, sobrepostos ao agir dos homens - e combatendo a ideia de que o movimento da vida e da história, entendido por Gramsci como perpétuo 'fluir de matéria vulcânica liquefeita', possa atingir um estágio último e definitivo, porque hipoteticamente perfeito: 'Por isso abaixo o esperanto, tal como abaixo todos os privilégios, todas as mecanizações, todas as formas definitivas e enrijecidas de vida, cadáveres que empestam e agridem a vida em devir'"****RAPONE 2014 página57

Foi exatamente essa celebração do acaso no devir histórico, que sempre mobilizou a curiosidade de Gramsci, e sua capacidade de pensar estratégico, aonde a pretensão ao controle total, já denotava sua crítica aos processos revolucionários violentos. E, as formulações posteriores da distinção entre guerra de posição e guerra de manobras, e o próprio conceito de hegemonia, que dinamiza a ideologia como instrumento efetivo de ação no cotidiano. Mas, outro professor, que incentivou Gramsci ao ensaísmo foi Umberto Cosmo, livre-docente de Literatura Italiana, que incentivou-o a escrever sobre Maquiavel desde 1917, buscando uma ponte entre a cultura e a política, que tanto seduzia o jovem sardo. Nesse sentido, sua simpatia pela ação de ruptura das vanguardas culturais, que contaminavam o ambiente italiano do início do século XX é apontado sempre com destaque de sua vivacidade intelectual, além de um traço de pertencimento geracional. A revista La Voce de caráter burguês e L´Ordine nuovo fundado em 1919, da qual fazia parte mostram esse esforço de tentar dar agilidade e vivacidade à acadêmica e "balofa cultura italiana", nas palavras do próprio Gramsci. Percebe-se nas posições do filósofo da Sardenha, já na sua juventude um profundo vínculo com a cultura humanista italiana, que muito além da política constroe uma conexão entre vida cotidiana e estratégia de construção socialista. Uma continuidade didática, e que celebra na atividade política uma capacidade pedagógica de constante aperfeiçoamento, cada vez mais distante do idealismo, fazendo um enorme esforço em direção ao pragmatismo. Num exemplo dessa atitude embrionária, a partir de um discurso em 1916 de Filippo Turati, um socialista reformista, que declara ferrenha oposição a qualquer forma de sabotagem do esforço bélico italiano na primeira guerra, finalizando no seu texto com a expressão; "isto seria ao mesmo tempo idiota e nefando", Gramsci nas páginas do Avanti de janeiro de 1917 coloca a questão do léxico do líder reformista contra ele próprio;

"Pesemos as palavras. Idiota: palavra nobilíssima, de origem grega. Idiota significa, antes de mais nada, soldado simples, soldado que não tem galão. Significa em seguida: quem pensa com a própria cabeça, quem é peculiar, quem ainda não se submeteu à disciplina social vigente...Idiota é quem é diferente, quem pensa e fala diferentemente da maioria. Idiotismo é a palavra ou o modo de dizer próprio de uma região, e não usado na língua literária ou nacional... Nefando, palavra igualmente nobre, de origem latina. Significa: quem fala como a divindade proibiu que se falasse, quem faz afirmações proibidas pela lei. Duas palavras que têm um valor autenticamente democrático do ponto de vista social." RAPONE 2014 página55

Fica claro nesse posicionamento do jovem Gramsci, essa dimensão questionadora e fora dos parâmetros de uma zona de conforto cômoda, que esse pensamento nos propõe a nos levar, aonde a mentalidade solidária e socialista não se restringe a conquista do poder, mas permeia o agir diário. O livro de Leonardo Rapone, traduzido em 2014 destaca uma série de textos onde o jovem Gramsci, a partir da ironia e em torno do significado assumido pelas palavras em diferentes ocasiões e contextos fustiga seus opositores levantando a adaptação das palavras à diferentes realidades ideológicas e temporais. Gramsci sempre irá celebrar esse caráter indomável e avesso ao autoritarismo, que a língua carrega, como no caso da unidade linguística da Itália, proposta em seu tempo a partir do dialeto da toscana, proposta por Manzoni, ou no caso da adoção do Esperanto como facilitador da comunicação internacional. O linguista e filósofo sardo irá repelir com veemência a imposição de cima para baixo, sobre o argumento de que "a linguagem, ainda antes de mecanismo comunicativo, é produto em contínuo devir." RAPONE 2014 página56. Na questão da lingua internacional, o Esperanto, Gramsci sem dúvida já celebrava a internacionalização da solidariedade entre despossuídos, mas reafirmava a presença da necessidade pulverizada e molecular, que criaria as condições para a emergência da nova língua a partir do cotidiano, e não por decreto. Há nas referências linguísticas de Gramsci uma constante menção às energias sociais livres, que nunca irão parar de se desenvolver, fazendo pouco caso das narrativas que pensavam num estágio último e definitivo das contradições sociais, que para ele jamais cessariam. Assim como, a linguagem, a arquitetura, que é uma necessidade humana difundida e presente em toda a humanidade, afinal o homem em suas diversas culturas produz seu próprio abrigo, e não reconhece no planeta e no seu ambiente, tal qual está constituído, um acolhimento adequado. Afinal, existe a produção da arquitetura culta dos arquitetos, e aquela produzida pela auto construção, pela necessidade do abrigo, aonde as referências construtivas estão presentes, assim como na língua. Essa condição, de auto reprodução das técnicas de construção do sua própria sobrevivência se dissemina entre as pessoas conforme o vocabulário, que dominam, seja na materialidade disponível, ou na parcela aonde estão autorizados a realiza-la, o que vincula de forma definitiva, a linguagem à cultura do construir, que sempre tem profundos vínculos com o lugar e com o tempo. O que também está constituído na cidade, que nunca é a mesma, justamente em função das variações dessa linguagem do construir, tanto no espaço, como no tempo.

"O povo italiano, há cinquenta anos, não existia, era só uma expressão retórica, Não existia nenhuma unidade social na Itália, existia uma unidade geográfica. Existiam milhões de indivíduos dispersos no território italiano, cada qual vivendo para si mesmo, preso no seu torrão particular; ninguém sabia da Itália, cada qual falava um dialeto particular, acreditava que todo mundo estava limitado ao horizonte de sua aldeia. Conhecia o coletor de impostos, conhecia o carabineiro, conhecia o juiz e o tribunal: sua Itália. E, no entanto, esse indivíduo, muitos destes milhões de indivíduos superaram este estágio particularista, formaram uma unidade social, sentiram-se cidadãos, sentiram-se colaboradores de uma vida, que saia do horizonte da sua aldeia, que se estendia por espaços cada vez mais amplos do mundo, que se estendia ao mundo inteiro.... Ele fez com que um camponês da Puglia e um operário de Biella falassem a mesma língua, passassem, tão distantes, a se expressar de modo igual em relação ao mesmo fato, a dar um juízo igual sobre um acontecimento, um homem..." RAPONE 2014 páginas 66 e 67

Aqui há uma profunda vinculação entre espaço nacional, esforço particular e individual, construção de uma mentalidade coletiva solidária, identidade linguística e cultural, consciência e determinação, particularidades que também estarão presentes na arquitetura. Na verdade, os alicerces conceituais do jovem Gramsci são vários e diversificados, indo do socialista Benedeto Croce ao fascista Giovanni Gentile, ambos neo-idealistas e hegelianos, de Henri Bergson com sua construção da consciência, ao engenheiro sindicalista George Sorel, ambos detratores do positivismo. Sua filiação ao marxismo problematiza sempre a tendência a um certo economicismo, e reafirma a centralidade da cultura e a necessidade de atuação na revolução dos costumes cotidianos dos diversos agentes. Gramsci encara a teoria de Marx não como a elaboração de uma síntese fechada, baseada em ortodoxias, mas como um pensamento sistêmico que permite apropriações variadas em função das conjunturas históricas e espaciais específicas. A identificação da figura do intelectual como uma possibilidade acessível aos diversos extratos sociais, na construção do pensar orgânico, que por vivenciar uma determinada experiência carrega um conhecimento, que merece um espaço de narrativa a ser ouvida. Sua construção da cultura e do pensar humano sempre se afastou de um certo elitismo exclusivo, mirando numa prática cotidiana portadora de uma potência didática e reveladora da liberdade. Seu marxismo jamais tendeu a redução determinista e etapista, suas reflexões a partir do advento da revolução russa e seu ainda embrionário sistema capitalista, sempre enfatizaram a questão do indivíduo como impulsionador da história.

Enfim, o sistema gramsciano de pensamento está fortemente estruturado em torno das dimensões da linguagem, do conceito de centro e de hierarquia, bem como a ideia de espacialidade e temporalidade diversificadas, que geraram especificidades, que precisam ser estudadas. Tudo isso configura um instrumental importante para a compreensão da cidade e da arquitetura no nosso mundo contemporâneo.

NOTAS:

* O sufrágio universal masculino foi decretado em 1912, e apenas em 1945 admitiu a participação das mulheres.
** RAPONE 2014 página 64 destaca que a adesão de Gramsci foi publicada na Voce9 de outubro de 1913.
*** Glotologia, ciência que estuda comparativamente as diversas línguas, considerando suas origens e formação. (Sin.: glossologia, glótica.)
****RAPONE 2014 página57 destaca que Bartoli sempre destacava a mobilidade da vida da linguagem.

BIBLIOGRAFIA:

RAPONE, Leonardo - O jovem Gramsci: cinco anos que parecem séculos 1914-1919 - Editora Contraponto Rio de Janeiro 2014