quarta-feira, 13 de outubro de 2021

O filme a Guerra do Fogo e a disciplina de Teoria e História da Arquitetura 1 (THA 1)

A manutenção da brasa acesa como única forma
de domínio do fogo
Nesse segundo período do ano de 2021 estarei ministrando para os alunos da Escola de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal Fluminense (EAU-UFF) a disciplina de História e Teoria da Arquitetura 1 (HTArq-1), em função da aposentadoria do professor Juarez Duayer. Tal tarefa, tem demandado um esforço de estudo e de sistematização da minha parte, que vem sendo auxiliado pelo professor Juarez, que disponibilizou suas anotações, programas e sistematizações de forma generosa. O período histórico da disciplina HTArq-1 abarca desde a pré história até o Renascimento no século XVI, um marco temporal ao qual ainda não tinha me dedicado de forma sistemática. A ênfase da disciplina recai sobre a antiguidade clássica, Grécia e Roma, seguida da Idade Média, chegando ao Renascimento dos século XV e XVI. Mas a pré história e as sociedades da antiguidade oriental devem ser abordadas para que se reduza o caráter eminentemente Euro cêntrico da nossa construção histórica, que aliás também é reduzida pela menção nas aulas do Professor Juarez da arquitetura pré colombiana e dos povos originários da América. Na minha trajetória, na EAU-UFF, como professor de projeto com concentração em história e teoria da arquitetura e do urbanismo já havia me dedicado a disciplina de HTArq-3, que aborda o modernismo e a contemporaneidade. Portanto, esse texto se insere nesse esforço de estudo de se apropriar de um período histórico distante, de forma que ele faça sentido para os estudantes do século XXI da EAU-UFF, no ano de 2021. Aqui, cabe um alerta em nome da sinceridade, no campo da história e da teoria considero impossível a divisão entre abrigo e cidade, ou arquitetura e urbanismo que os cursos de arquitetura no Brasil adotam. O fenômeno da ocupação do espaço pelo homem não distingue interior de exterior, moradia de cidade, intenção e projeto, arquitetura de urbanismo, àqueles que discordam apresento a definição de cidade de Leon Battista Alberti no De re adificatória de 1485. Livros I a IV 

"A cidade segundo sentença dos filósofos é como uma casa grande, e vice versa, a casa é uma pequena cidade... As coisas públicas pertencem a todos os cidadãos; é sabido que a importância e a razão de fazer cidades deve ser esta: que os habitantes vivam em paz, e dentro do possível livre de incômodos, livres de toda moléstia. E sem dúvida se deverá considerar e novamente examinar desde o princípio em que lugar, em que situação e com que muralhas se deve fazer." PATETA 1997 página77 

A tomada de consciência da formulação de
utensílios humanos a partir do barro
Assim, devo a escolha do filme a Guerra do Fogo, lançado em 1981, do diretor Jean Jacques Annaud, numa produção franco-canadense também ao professor Juarez, como abordagem inicial da problemática da relação do gênero humano com a natureza e com nosso planeta. E, nesse texto pretendo destacar os aspectos levantados no filme a respeito do habitat do homem e das diversas formas de ocupação do território do nosso planeta pelo ser humano. Um ser, que intrinsecamente não reconhece como dado no planeta terra, a sua casa, mas que modifica a natureza para adequá-la a suas necessidades, essa premissa, que não é exclusiva da humanidade, pois; castores, joãos de barro, abelhas e outros também a promovem, modificações notáveis para otimizar a reprodução de suas espécies. Nos manuais de história a pré-história é qualificada como o período de 200.000 antes de Cristo, datação da provável aparição do homo sapiens, até 4.000 antes de Cristo, quando ocorre a descoberta da escrita nas sociedades do Oriente Próximo. Tal situação, determina que esse imenso período seja lido e descrito a partir de pinturas, registros gráficos, arqueologia, e outros, o que determina uma ampliação das suas possibilidades, e da capacidade de interpretação da nossa contemporaneidade. A história será sempre uma apropriação do tempo passado por uma contemporaneidade, que avalia os fatos ocorridos a partir de sua perspectiva, e diante dos dilemas vividos no seu tempo presente. Mas, a pré história por seu caráter ainda não auto documentado (ausência da escrita) enfatiza essa condição de interpretação e de apropriação do período pelas angústias do nosso tempo. Ao final, o patrimônio construído pela humanidade é dela própria, e deve ser entendido como "O Comum", que não é propriedade de ninguém especificamente, mas de todo gênero humano, aberto a novas narrativas e interpretações. É claro, no entanto, que essa história da eleição de um filme franco canadense, aqui apresentada possui uma matriz Euro Cêntrica, e portanto limitada aos pressupostos impostos por essa narrativa, mas que pretende trazer de forma despretenciosa o instrumental para sua descolonização por parte dos alunos. Afinal, o lugar onde está sendo formulada e construída, essa HTArq-1 é a cidade de Niterói, dentro da cidade metropolitana do Rio de Janeiro, no Brasil, um país latino americano, periférico ao sistema de domínio mundial denominado, Euro Atlântico e Estadounidense de nossa contemporaneidade.

"E finalmente ao eleger o sítio para construção da Vila deve se fazer todas aquelas considerações que se fizeram para eleger o sítio para a cidade: posto que a Cidade não é outra coisa que uma casa grande e, ao contrário, a casa é uma cidade pequena." Andrea Palladio Os quatro livros da Arquitetura 1570, página46 do livro II in PATETA 1997, página 77

A aglomeração de cabanas de uma tribo primitiva
 protegidas e resguardadas de inimigos
pelo pântano
O tema central do filme é o domínio da tecnologia de controle do fogo pela espécie humana, localizado num tempo arbitrário de aproximadamente 80.000 anos antes de Cristo, quando a humanidade encara o fogo como um objeto cercado de mistérios, que poucos grupos governavam na sua geração. Essa informação temporal é comunicada logo no início do filme através de um texto escrito que rola na tela, sendo a única informação textual e objetiva da experiência cinematográfica. Aliás, uma das virtudes da película é a ausência durante suas 1 hora e trinta e cinco minutos de duração, de qualquer diálogo inteligível pelo espectador. A linguagem oral, que já está presente entre os grupos humanos do filme é incompreensível para sua audiência, o que demanda dos atores um esforço maior para transmissão clara dos desejos e vontades dos personagens através do corporal. Tal decisão, enfatiza a comunicação da imagem e do cinema e da representação, e nos transporta a um mundo de absoluta supremacia da imagética, que coloca a audiência livre de uma descrição oral e literal precisa, acentuando nossa atenção a expressividade dos rostos e ao corporal dos atores. Além disso, o recurso abre a audiência uma ampla gama de interpretações, como numa obra aberta, onde as narrativas podem ser construídas a partir da livre associação de ideias e gestos, que ao final se constituem no texto objetivo do filme. Essa característica nos remete aos filmes mudos do começo da história do cinema, ou a cineastas como Alfred Hitchcok, que sempre lançaram mão em seus filmes de longos trechos sem diálogos ou legendas, enfatizando a ideia da comunicação direta apenas pela imagem, reforçando a ambiência da livre interpretação e da associação de ideias pelos expectadores. E, aqui é importante assinalar que o estudo dos objetos primitivos, enfim da arte primitiva não deve ser considerado um mero documento etnográfico mas como fato artístico vivo e atuante. Pois como disse Marc Bloch, não se faz história daquilo que não mais nos atinge, mas sim dos fenômenos que continuam atuando, como uma linha mestra da civilização, como enfatiza Giulio Carlo Argan sobre a atemporalidade dos objetos artísticos;

"De fato, cada obra não apenas resulta de um conjunto de relações, mas determina por sua vez todo um campo de relações que se estendem até o nosso tempo e o superam, uma vez que, assim como certos fatos salientes da arte exerceram uma influência determinante mesmo à distância de séculos, também não se pode excluir que sejam considerados como pontos de referência num futuro próximo e distante. Basta lembrar a arte pré-histórica e primitiva..." ARGAN 1992 página 15

Imagem da cabana da tribo sedentária do filme
A Guerra do Fogo, mostrando técnicas de 
vedação a partir do couro e do barro

Ao longo do filme também percebe-se diferentes tipos de clãs e grupos humanos, que além de guerrearem entre si também se relacionavam, inclusive sexualmente, com diferentes conotações, que denotam que o intercâmbio humano entre diferentes bio-tipos é a verdadeira fortuna da humanidade. De certa forma, essa característica que será enfatizada com o sedentarismo e a revolução agrícola, ocorrida segundo a periodização dominante entre 18.000 e 4.000 anos antes de Cristo. Essa tendência é anunciada pelo filme como uma presença já existente entre os grupos humanos, e que será claramente impulsionada pela posterior revolução urbana, 4.000 anos antes de Cristo. Particularmente, no episódio que levanta a hipótese de  cobrança e obrigatoriedade pelo grupo sedentário ao membro do grupo da caverna para que fertilize as suas mulheres mais gordas e avantajadas. Ao mesmo tempo, tal tendência está longe de ser romantizada pelo filme, como uma ética humana determinada naturalmente, pois há menção inclusive a práticas antropofágicas, que ocorreriam não entre os iguais, mas entre os diversos. Há, também uma certa diferenciação pré-conceituosa, no universo intra-comunidade, envolvendo portanto semelhantes no episódio, que claramente  mostra o tratamento diferenciado às mulheres mais magras do clã, que são preteridas na pretensa seleção reprodutiva da tribo sedentária. O fato é que o filme claramente apresenta a hipótese de busca por uma seleção reprodutiva controlada, por parte da comunidade sedentária, que visa o aprimoramento da constituição física e estrutural das futuras gerações. Será, que tal episódio pode ser comprovado pelos vestígios e rastros deixados por nossos antepassados, nos sítios arqueológicos existentes? Ou, como uma ética das relações humanas deve incluir sempre como premissa o livre arbítrio e a escolha do indivíduo, frente até as determinações do grupo? Importante, destacar que o argumento ou narrativa é plausível, mesmo que pendente de comprovação factual pelo sítio arqueológico ou vestígio, mostrando-nos que a história, seja pré escrita ou pós escrita está aberta as nossas leituras e narrativas.

"Direi agora brevemente, o que é que creio que seja a arquitetura. Arquitetura em sentido positivo, para mim, é uma criação inseparável da vida e da sociedade na qual se manifesta; em grande parte é um feito coletivo. Ao construir suas habitações, os primeiros homens realizaram um ambiente mais favorável para suas vidas ao construir-se um clima artificial, e construíram de acordo a uma intencionalidade estética. Iniciaram a arquitetura, junto com os primeiros indícios da cidade; de essa maneira, a arquitetura é co-natural com a formação da civilização, e é um feito permanente, universal e necessário. Seus caracteres estáveis são a criação de um ambiente mais propício a vida e a intencionalidade estética." ROSSI, in PATETA 1997 página75

Mas, além da comprovação o fato é que somos uma espécie, que claramente apresenta fragilidades com relação a sua reprodução e manutenção, frente ao mundo natural, que foram compensadas exatamente pelo compartilhamento de saberes e tecnologias. Efetivamente, o ser humano nasce extremamente dependente das gerações mais velhas, forjando sua independência natural a partir dos cinco anos de idade ou mais, afinal sua conformação cerebral, por exemplo, estará plenamente constituída apenas a partir dos dois anos de vida, e, na dependência da recepção adequada de alimentos e proteínas. Mas, o filme explora claramente a marcação das diferenças entre os grupos humanos, que é feita por diferentes sinais corporais e faciais, tais como; mais ou menos pêlos, a presença de um certo prognatismo de sobrancelha e queixo ou sua ausência, a utilização de vestiário ou não, dentre outros.  Esses grupos, dominam e possuem diferentes acessos a tecnologias de apropriação do fogo, mas também de construção de moradias e do seu agrupamento, bem como de sua defesa e do cultivo de plantas, frutos e sementes. É representativo da questão do domínio do território e da escolha do melhor local para a aglomeração de moradias - uma vila, ou mini cidade - no episódio da aproximação de um membro do grupo que vive em cavernas, do grupo, que já produz sua habitação, com uma estrutura de galhos flexíveis e vedação com peles, couros de animais e barro. O episódio nos mostra um representante de um grupo de estatura e compleição física mais avantajada (o grupo da caverna), que é capturado pelo pântano, e é submetido a uma sub imersão progressiva pelo alagado. Tal fato, denota o domínio da tecnologia da escolha do sítio para a aglomeração das barracas a partir de uma estratégia de defesa, a partir da utilização do alagado natural, que fragiliza os indesejados visitantes, desconhecedores das sutilezas do caminho seguro à vila. Como uma muralha da cidade medieval, ou como a Laguna da cidade de Veneza percebe-se a estratégia da escolha do lugar da aglomeração como um conhecimento, ou o domínio empírico experiencial da defesa da aldeia frente aos estranhos.

"A arquitetura consiste de algum modo em ordenar o ambiente que nos rodeia, oferecer melhores possibilidades ao assentamento humano, portanto, as relações que tem a missão de estabelecer são múltiplas, inter atuantes entre si; se referem ao controle do ambiente físico, a disposição de certas possibilidades de circulação, a organização das funções, de seu agrupamento ou segregação de suas relações; responde a certos critérios econômicos, se move em, e move, certas dimensões tecnológicas, provoca modificações na paisagem, etc... Mas organizar estas relações é algo completamente diferente de sua simples soma, é o significado que deriva do modo de lhe dar forma, é colocar-se dentro da tradição da arquitetura como disciplina, com um novo gesto de comunicação, com uma nova vontade de transformação da história." GREGOTTI in PATETA 1997 página 75

Enfim, o Filme a Guerra do Fogo coloca nos a questão de um debate fundamental inserido em nossa contemporaneidade; a quem pertence o desenvolvimento das técnicas, que criam um ambiente mais favorável a vida humana, com intencionalidade estética? A quem pertence o tijolo, a taipa de pilão, o solo cimento, a telha moderna de barro, a esquadria de madeira ou PVC, tecnologias, que assim como a geração do fogo foram gestadas pela humanidade num longo processo de compartilhamento. A arquitetura é um fato "permanente, universal e necessário", garantir que seu acesso seja universalizado a todos os membros da espécie humana, talvez seja o maior desafio colocado para o nosso ofício em nossos tempos contemporâneos. Tal objetivo é muito mais fácil de ser atingido, a partir da premissa da colaboração, solidariedade e do compartilhamento comunitário, do que pela competição desenfreada, ou pelo conflito de todos contra todos.


BIBLIOGRAFIA:

ARGAN, Giulio Carlo - História da Arte como História da Cidade - Editora Martins Fontes, São Paulo 1992

PATETA, Luciano - Historia de la Arquitectura, Antologia Critica - Editora Herman Blume, Madrid 1997